outubro 26, 2005

“Humor é contra-poder”


Com o “Disco do Benfiquista” percorre, uma vez mais na sua vida um corredor muitas vezes vedado às mulheres. Isolada numa comunidade quase que unicamente constituída por homens, na comédia assume o seu “dom de fazer rir”, esculpido por uma observadora visão de cada particularidade da sociedade em que todos vivemos.

Teatro, televisão, fundamentalmente humor, o que lhe vai na alma e que não consegue impedir de extravasar de quando em vez. De Maria Rueff podem conhecer-se muitas caras, com bigode, de óculos escuros e brilhantina fazendo lembrar outros tempos, ou domesticamente, de touca colorida, bisbilhotando vidas que não são suas, formal, casual, actriz no balanço final das contas.

“O Zé Manel meteu-se no seu táxi e foi bater de porta em porta para fazer um disco do seu clube”. É pois este o mote da conversa com a humorista, que conta assim a raiz da história que preenche o disco de um benfiquista de Alfama, e que ao longo de vinte faixas percorre os caminhos da poesia clubista, tão popularmente exibida em expressões como “lampião”, “glorioso”, e cujo expoente máximo se pode sentir ao ouvir a “Picardia com lagarto”, num dueto com Sérgio Godinho.

“As minhas referências... Monthy Pithon, Rowan Atkinson, Benny Hill, Herman José, são nomes que fui digerindo na minha maneira de actuar, tentando perseguir a escola de humor Britânica, mais subtil”. E é precisamente Herman José, um nome, uma personalidade, que não poderá ser nunca indissociada da carreira de Maria Rueff, “o Herman será sempre o maior, porque a todos nos influenciou”, explica.

O humor nacional, em concreto o conceito de “stand up comedy” agora utilizado em formatos televisivos, é para a actriz “ uma mera colagem de anedotas, que não são contudo fáceis de contar”, funcionando como que um paradigma da real situação da comédia em Portugal, mas algo mais para além disso, “para se fazer humor tem de se ter uma plateia informadíssima, e o que sinto é que em termos televisivos se regrediu nos últimos anos, andou-se para trás, cada vez mais se oferecem menos coisas para pensar”.

A disfunção, ou a distinção que por vezes se estabelece entre o actor, associado à encenação dramática, e o cómico, é para Maria Rueff inexistente, “nasci com o dom de fazer rir, mas não basta isso...é essencial trabalhar, muito, e depois utilizar a aprendizagem técnica que eu adquiri no conservatório, onde me preparei para poder ser actriz e poder utilizar com propriedade algumas das técnicas da tragédia ou do drama, nos bonecos que empersono” .

É de resto relevante para a artista a temática da formação específica de actores, “para mais numa época de chuvas de estrelas, onde qualquer um, desde que tenha jeito e uma cara bonita é actor”, ironizando, “se prendem falsos médicos, porque não fazê-lo com falsos actores...” .

Personagens, surgem tão frequentemente no seu discurso, como fazem parte da sua vida, “é uma tradição antiga, nos mais variados géneros artísticos, a transposição de géneros humanos, o seu exagero com o intuito de fazer rir, por vezes criticar, mas também reflectir”. Para a actriz, “ humor é contra-poder, e um escape de uma realidade cinzenta”.

Ser hoje uma e não um humorista, acarreta-lhe responsabilidades só possíveis, só visíveis “porque habitamos uma sociedade que ainda se afigura com carregados traços de machismo, estigmatizada, cheia de conceitos e preconceitos”.

“Ainda bem que era a caixa de óculos do liceu, porque se tivesse sido a vamp, a menina loura de madeixas, não teria ido para o humor”, revela, asseverando, “o meio social espera que a mulher seja aquele ser certinho, arranjadinho, que se preocupa com a postura e que não se masculiniza, algo que acontece por exemplo com as mulheres, as poucas, que estão no poder”.

Por,
Pedro Cativelos

Sem comentários: