fevereiro 24, 2008

Diário de Notícias: Herman José: “Tenho obrigação de me reinventar”






O passado, o presente e o futuro de um homem que faz rir em cada inspiração. Senhor feliz, apenas contente por vezes, olha os Gatos com “nostalgia”, agradece-lhes a “energia” para continuar a Ser. Conta memórias, revela sonhos e prazeres, e medos também de uma vida de palcos e planos feitos no improviso, como gosta e onde melhor se movimenta no seu humor de perdição.

Por,
Pedro Cativelos


Depois de muitos anos de televisão, foi regressando aos palcos, ao contacto com o público. Sente-se a voltar atrás, ou a iniciar um novo ciclo?
Comecei a fazer espectáculos no início da minha carreira, quando o que se ganhava em televisão não chegava para as despesas. Era um sacrifício, um sofrimento, ficava quase doente uma semana.
Nos anos 90, deixei os espectáculos, quase por vingança.
Depois, acabam por ressurgir na minha carreira com o Café Café, onde começo a fazer umas brincadeiras para ajudar a pagar os ordenados, as dívidas do negócio. E começo a redescobrir isto de outra forma, vou-me divertir, não vou trabalhar!

E hoje em dia, como encara a actuação ao vivo?
Tenho aos 50 anos um imenso prazer antes de cada espectáculo e é até onde dou mais rendimento!
Tenho uma visão fria sobre mim, sou muito desconfiado sobre tudo o que faço mas acho que tenho dos espectáculos aos vivo mais divertidos de que me lembre, mesmo como espectador. Divirto-me que nem um macaco!

Como se sente observado pelo público actualmente?
Tenho muito material, transversal a todas as gerações, tenho militantes de 14 anos. E esta história dos Gatos também me beneficiou, curiosamente. Porque eles conseguiram uma coisa que eu nunca tinha tido, foram líderes de audiências, enquanto eu fui sempre trabalhador para minorias. Mesmo no Herman Enciclopédia, que todo o país conhecia, não era líder de audiências.

Está a dizer-me que os Gatos até o beneficiaram?
Eles tornaram-se num produto de grande consumo e sem saberem, e porque são muito queridos, pessoas bem formadas de respeito e carinho, abriram sem querer uma porta para que produtos meus menos conhecidos regressassem agora um pouco, como os Crimes da Pensão Estrelinha ou o Tal Cana que vai sair agora em DVD fossem agora mais procurados e observados um pouco na sequência do trabalho deles. Até porque há 10 anos que ando em talk-shows e muita gente nova não conhece o meu historial de humorista.

Como os observa, enquanto espectador e humorista?
Eles têm uma energia muito gira que me leva a olhar para o êxito deles com uma certa nostalgia o que não deixa de ser empolgante. E sinto que levei uma injecção de energia ao ver a própria energia e seriedade deles, intelectual e de trabalho. E tudo isto descambou num tipo de... É como se de repente as coisas voltassem ao sitio! Como se me tivessem desarrumado a vida e a casa com uma violência inenarrável chamada processo Casa Pia que está por explicar, por contar...Gostava de saber o que me aconteceu. Fui arrastado para uma coisa sem saber nada, sem conhecer ninguém.

Foi uma altura difícil para si, calculo...
Tecnicamente é o pior que se pode fazer uma marca. Comparativamente com outras pessoas, ainda fui o mais beneficiado, mas fez-me uma mossa gigantesca da qual só agora estou a recuperar. Ainda para mais junto de uma classe etária onde sempre tive os meus maiores apoiantes! Foi violento...um tipo de maldade que ainda hoje não percebo como se consegue ir tão longe.


Tudo numa altura em que o próprio Herman SIC caía a pique!

Foi uma fase complicada, o programa pecou pelo excesso de tentativas para salvar as audiências, perdeu a identidade, levou com o Big Brother em cima, foi abastardado...

Não lhe parece que a determinada altura a sua imagem começou a ficar desgastada?
Isso foi culpa minha, assumo! Gostava do Manuel da Fonseca, queria que tivéssemos sucesso, mas a certa altura, com menos dinheiro já tínhamos entrevistado toda a gente, já tínhamos experimentado tudo! Acho que esta paragem televisiva me vai fazer bem!

Daqui para a frente, humor em sketch ou em formato talk show?
Já não tenho pele, como o Jô Soares ou o Jay Leno, para colar bigodes, nem convicção. Como aquelas miúdas que fazem table dance e depois passam a empresárias. Há uma altura para estarmos agarrados ao varão em biquini. E depois há fases em que se está melhor no sofá com um tailleur Channel. Ser puta na mesma mas estar no hotel com uma florzinha na mesa!

Depreendo da analogia, que talk show, um formato que até faz falta à televisão portuguesa...
Com a experiência de vida que já tenho, com as pessoas que já entrevistei, com a cultura generalista que possuo acho que sou um interlocutor privilegiado para um tipo de coisas destas e acho que o posso fazer bem. E é isso que quero e me sinto bem a fazer agora.

E o seu novo programa?
Em termos de televisão estou em paragem absoluta. Vou regressar depois das férias, já tenho um projecto, estou em sintonia com o Nuno Santos, desde o tempo em que estive para ir para a RTP. Mas não posso dizer mais nada, porque ele me pediu!

Não me diga que se está a preparar uma bomba de audiências e vai fazer um programa de humor com os Gatos?
Seria um desperdício! Encontramo-nos a meio as vezes que for preciso. Não faz sentido ter uma lagosta fresca e um belo bife de lombo e de repente fazer uma caldeirada de lombo e lagosta! Se calhar estraga uma coisa e outra. Isto partindo do princípio que sou um bife de lombo...

Pensava que era a lagosta...
(gargalhada) Neste momento são eles!

Dão-se bem todos?
Uma paixão mesmo. Somos muito elevados como seres humanos, numa relação que dura há muitos anos, e nunca houve um minuto que não fosse de simpatia, de brincadeira, de aprendizagem e isso não tem preço. Em contraponto com muitas das relações que estabelecemos neste mundo do espectáculo, onde se joga sujo e há muita gente hipócrita, nós funcionamos a um nível civilizacional tal que a nossa relação é indestrutível!

Tem muitos amigos?
Conheço muita gente, mas a amizade implica muita coisa, por isso são poucos os amigos que tenho. E até tenho alguns amigos com quem não me dou, como o Nicolau porque as nossas vidas não são compatíveis... Mas se me disserem que o mundo vai acabar e tivesse de escolher duas pessoas para meter num bunker... Ía buscá-lo a ele e mais duas ou três, como a Rueff por exemplo, que até levava balas por mim se fosse preciso! Mas qualquer uma das minhas relações de amizade não é uma coisa de grande continuidade, não! Se calhar a minha amiga mais contínua é capaz de ser a minha mãe porque tento estar com ela o maior tempo possível!


O que se passou com o seu último programa?

Não há nada mais triste do que dizer mal da Maria Antonieta depois de ter sido decapitada. Não me apetece lavar roupa suja com a anterior direcção de programas. Percebo que a pressão é enorme, não houve serenidade nem tempo para deixar que o produto se impusesse. Ganhámos o horário, começamos a estabilizar, comecei a ver os sinais na rua, “temos homens ou não temos homens”, e quando comecei a sentir que aquilo começava a crescer a direcção achou que deviamos ir para o Horário dos Gatos que estavam no auge da audiência e no penúltimo episódio. Lembro-me de ter pedido para pelo menos me garantirem quatro semanas naquele horário, para pegar.

Não resultou...
Tivemos um share péssimo, e na semana seguinte começou o descalabro, duas da manhã, três, por aí fora. Sabe que quando o público percebe que o próprio vendedor do produto não o respeita desinteressa-se. Até na Feira de Carcavelos o rapazito que está a vender as suas imitações Lacoste, vende-as com militância e não anda a dizer que com uma lavagem lhes salta o crocodilo! Acho que me aconteceu isso involuntariamente porque eram bons seres humanos que gostavam de mim, mas deixaram a pressão e a instabilidade saírem cá para fora.


Mas na sua opinião, era ou não um bom programa?

Tenho a certeza absoluta, que pelo trabalho e seriedade que pusemos nele, daqui a dez anos será muito mais bem visto. Ainda no outro dia no Youtube tinha um sketch com quase 200 mil visionamentos e um dos comentários era, “que saudades destes bons velhos tempos do Herman”, quando na realidade o que aconteceu foi que por a andar a saltitar de horário não tiveram foi acesso a ele!

Mas tem noção que há várias pessoas que dizem isso, que o Herman, já passou...
É difícil gerir isso. Não há nada mais destruidor que o tempo. Como nos romances, a tristeza com que as pessoas se separam, rodeadas de boas recordações, de noites de sexo louco, de viagens maravilhosas... tudo no passado. Mas na carreira temos de nos reinventar e assumir humildemente esse fenómeno. Agora tenho pessoas apaixonadas pela minha versão dos anos 80, mas as pessoas olham para aquele Herman como outro... Eu também, já não sou aquele Herman.


E como se ultrapassa isso?

É só olhar para o lado. Basta ver o que aconteceu com o Sinatra, que estava em todo o lado, caía na sopa. Cansaram-se dele, inventaram coisas... Um dia ressurgiu porque as pessoas estavam com saudades. Há uns anos fiz um espectáculo com ele no Porto que é um dos pontos mais altos da minha vida artística. Há que ter essa humildade e pensar em reavaliar a situação, partir para a frente. O Nicolau por exemplo, queria ser humorista... acabou por se reinventar e tornar-se um grande actor sério. Eu tenho obrigação de me reinventar também! Quando voltar, quero fazê-lo mais denso, mais profissional, menos desleixado...


Como se faz isso no dia a dia.

Basta viajar. Damos valor a muita coisa, por exemplo ao estatuto que temos no próprio país.

Nunca lhe apeteceu não regressar?
Para lá ficar teria de ser recepcionista de hotel, ou director de restaurante, não artista! Em Nova Yorque encontram-se os melhores artistas do mundo em cada esquina! São lições de humildade que nos obrigam a não perder essa normalidade! Até porque quando isso acontece vem a decadência. Um dia um gajo acorda com a sensação que é muito bom, começa a encarnar a Greta Garbo, a Maria Callas, o James Dean... E Portugal está cheio de James Deans e Callas formidáveis na sua decadência...


Chegou a pensar numa carreira internacional?

A certa altura podia ter apanhado o comboio sim. Há um momento em que começo a filmar muito para fora, tinha aceitação em muitos mercados! Tive convites para França, Alemanha e até um, feito pelo próprio Merv Grifith, para apresentar a Roda da Sorte em Los Angeles, nas férias do apresentador. Mas não aceitei por qualquer forma de preguiça ou segurança que me fez ficar aqui.


Qual é o seu maior prazer?

São pequenas fotografias do momento, dou-lhe alguns... Estar num fim de tarde no Algarve, a ver o Bullets Over Broadway... Ou por exemplo, quando pego na minha lancha rápida, já me deixei dos elefantes brancos, que foram bons para perder os complexos e saber que podia ter coisas como os ricos, e vou para o meio do mar. Paro, deito-me, ponho música e deixo-me estar. Ou acabar de ver uma peça num domingo à tarde na Broadway com a Katleen Turner... Quem tem medo de Virginia Woolf, sair, andar a pé com um batido de morango na mão, a ver as montras, com os reflexos do sol, em Nova Yorke...

Mas era capaz de pegar em algum desses momentos e prolongá-lo até ao final da vida?
Não! São belos porque são efémeros, pedaços ricos para os sentidos, perfeitos, que apenas servem para nos apoiar quando estamos mais longe deles.

E daqui a vinte anos, onde estará, Herman?
Gostava de estar na TV2 a fazer um programa de entrevistas, sério e chatérrimo! (sorriso)

É feliz?
Sou! Mas assusta-me a perspectiva de que um dia tudo isto vai acabar!

Mas sempre teve essa consciência?
Comecei a tê-la no dia em que o meu pai morreu, sabe?! Estava no topo das suas faculdades, da sua experiência, no seu melhor... Assusta-me isso, o facto de sentir que quando estamos no máximo da nossa evolução pessoal, quando podemos começar a contribuir e a partilhar o melhor de nós, o corpo já não nos acompanhe.

E até lá?
Vou-me divertindo! Como a música dos Monthy Python, (Começa a cantar) Always Look at the bright side of life...!


Diário de Notícias,
Fevereiro, 2008

Imagem da autoria de Pedro Leitão

fevereiro 11, 2008

NS: Kabul, O Último Regimento




A NS acompanhou o exercício das tropas especiais que integram o último contingente nacional que partiu para o Afeganistão no passado dia 11 de Fevereiro.

Texto
Pedro Cativelos

Fotografia
António Valente


Teatro de operações. O termo soa a militar, mas é menos assustador que dizer batalha, imaginar um campo minado, ou pensar num lugar de muito perigo. A vida de soldado é assim. Sem esconder o medo, corre-se para o desconhecido, “porque tem de ser”. Poucos dias antes de partir pela última vez para o Afeganistão, os 150 militares da Brigada de Reacção Rápida das Forças Armadas que se vão integrar na Internacional Security Assistance Force da Nato, deixam transparecer em cada olhar, a angústia de um destino que desconhecem. Sentem já a ansiedade de pisar o árido terreno afegão, na adrenalina que lhes incutem, das camaratas aos dias de campo que se prolongam para lá da resistência humana natural. “Andamos há uns meses a treinar e agora está quase a ser a sério”, conta um dos soldados, com o olhar nas colinas, como lhe ensinaram a fazer para precaver o perigo.

As condições recriadas neste último exercício antes da partida, são semelhantes às que irão encontrar em Kandahar, região do sul afegão, o pior dos cenários que se podem encontrar à face da terra. Pelo menos, tentou-se isso. Mas estamos ainda no Alentejo, em Beja, nos terrenos anexos ao regimento de infantaria número 8. Pisa-se a lama, sente-se o frio, pressente-se o risco.


Cenário real

Depois do briefing matinal, a coluna abandona o quartel na lenta rotação dos motores. Silêncio de expectativa. Saem homens de cada viatura numa vigia que se dissipa com um toque de capacete, sinal ensaiado para assinalar que se pode prosseguir. Simular-se-á uma situação de emboscada. Por agora já se sabe que ela vai acontecer, mas desconhece-se o seu paradeiro e como irão os insurgentes desferir o ataque. A tensão é palpápel, no silêncio rompido por comunicações encriptadas, nos olhares bem dispertos, dispersos num vazio trabalhado para afugentar emoções inimigas, nas G3´s em riste, carregadas de cartuxos sem pólvora para matar.

Um pequeno riacho preenchido pela chuva dos últimos dias divide amigos, camaradas e inimigos por agora. De súbito, do meio de um nada que soava a estranho por ser tão demorado... Explosão! Ouvidos feridos, salpicos de água que encharcam a vista, pânico controlado. Hora de combate.

Tiros de metralhadora, obuzes, ruído brutal que lança chamas e ateia os ânimos. “Fogo, fogo, fogo”, grita-se como se não houvesse amanhã. Não se vê o “inimigo”, disfarçado nos arbustos da colina adjacente e no fumo colorido que é lançado para mascarar a sua localização. Registam-se baixas. Neste tipo de “profissão”, esse é um risco factual, o maior de todos, o derradeiro, para o qual tem de se estar preparado. “É verdade. Já lá estive e é assim mas faz parte do trabalho”, explica João Bernardino, Major responsável pelas Comunicações Operacionais que já perdeu a conta às missões que integrou. Por isso, é muito procurado pelos mais jovens. “Sim, eles têm-me algum respeito, vêm ter comigo para me poderem perguntar pela minha experiência no terreno e terem uma melhor ideia do que os espera”, conta. Desta vez não vai para o Afeganistão, está aqui para isso mesmo, como conselheiro de batalha, enquanto prepara os seus homens para outro cenário de risco, o Kosovo. “Compreendo que estejam ansiosos, mais de metade já lá estiveram, mas para muitos é a primeira vez. Se já tive medo da morte? Temos de aprender a conviver com isso e é bom para termos mais atenção, principalmente com os nossos camaradas. Lembro-me que morreu um homem logo na minha primeira missãio, há mais de vinte anos... Foi duro. Desde aí prometi que isso nunca mais iria acontecer, mesmo que me custasse a vida e não voltasse a ver as minhas duas filhas. Não aconteceu!”, suspira.


Dias do Fim


Ordens cruzadas, por detrás da barreira formada pelos todo-o-terreno. Como no teatro, todos conhecem a sua posição, e automatizados no gesto, enfrentam os “talibãs” do exercício Kabul 081, por enquanto militares descaracterizados. A salvo, no topo da outra colina, a Inspecção Geral do Exército acompanha as operações. Têm de assinar o aval à saída do contingente para o cenário de guerra real e detectar o que não está de acordo com o necessário para a partida, tanto como para o regresso “em total segurança”, como explica o Major General Carlos Jerónimo, encarregado pelas operações a partir de Portugal.

A missão é de manutenção de paz, mas terão de operar por todo o Afeganistão. “Onde houverem problemas”, graceja o tenente de infantaria António Coutinho. Será esta a última vez que um contingente português partirá para terras Afegãs. O primeiro voo levanta no dia 11 de Fevereiro. No dia 28, parte o seguinte que regressará apenas em Junho próximo. Depois, a presença portuguesa ficará reduzida a um avião C130 da Força Aérea e a alguns elementos com funções de assessoria às forças locais.

Passam-se largos minutos. O tiroteio intensifica-se e a ambulância militar entre em cena, atravessando o campo pejado de cartuxos queimados e alguns homens tombados. A sirene está ligada e quase que se funde com o fragor das balas, banda sonora a que os ouvidos começam a ficar alheios. Lança-se o pedido para o apoio aéreo, sinal de que a operação está perto do fim.

Explosão, uma outra, e outra ainda. Revolta controlada, insurrectos em fuga. Gritos de vitória. Ganhou-se uma batalha, quando a guerra ainda nem começou, pelo menos para eles, e nem tem meio de acabar, mesmo após o seu regresso. Já morreram no Afeganistão alguns milhares de homens de várias nacionalidades. Portugueses, foram dois, o último em Novembro passado. É o tempo do presente, feito de diferenças erradas. “Se acredito que podemos mudar alguma coisa? Tenho fé nos meus companheiros, sei que posso morrer ao lado deles. Em prol de quê?! De uma missão que nos foi atribuída e que temos de cumprir. Haverá sempre guerras no mundo, e a nossa vida faz-se no meio delas, em qualquer lado onde se estejam a cometer atrocidades ou atropelos aos direitos humanos”, explica Jerónimo, nome de luta, e um dos soldados que pela primeira vez vai embarcar para uma luta que não entende muito bem ainda.

Entre os gritos de vitória e os urras de festejo, o pedido de uma foto muito especial. “Aqui, para a minha mãe que está um pouco assustada com a minha partida. Vai correr tudo bem”, garante o soldado. Vários outros companheiros juntam-se ao jovem de 20 anos num até breve que pode ser sempre adeus não anunciado. São ainda rapazes, feitos homens à pressa. Retiram as rações de combate, alimentam o cansaço com uma barra de cerais, bebem água fresca e colocam as mochilas para regressarem ao mato raso da planície, para continuar o trabalho. Para nós a guerra fica por aqui. Para eles, está quase a começar. Num derradeiro piscar de olho, interrompe-se a despedida... “Nada disso, é só um passeio lá para longe. No Verão já cá estamos, não se preocupem”. Sabem que não é assim e partirão no próximo dia 11 de Fevereiro.


Notícias Sábado,
Fevereiro de 2008

Pública: José Reis, O Advogado do Diabo




Nasceu em Portugal mas é filho do sol quente e do mar salgado, da africana ilha de Santiago, em Cabo Verde. Baptizaram-no de Advogado do Diabo por ter alcançado a licenciatura em Direito, no tempo em que descansava das vitórias no kickboxing. E foram muitas, pelo mundo fora. Atingiu o topo do Olimpo e não caiu, apenas sentindo a vertigem do que poderia ter acontecido, se não tivesse sido. Continua ainda a lutar, em homenagem ao destino de gigante que foi crescendo sem querer, mas com muita vontade. Olhar no horizonte, passos no chão, esvoçaça como borboleta, desfere ferroadas de abelha, no ringue e fora dele, onde ajuda jovens como já foi “a perseguirem os sonhos” que sempre desenhou para si. Conheça a vida e a história de um homem que é tudo, e quer ser mais.

Texto
Pedro Cativelos

Fotografia
Patrícia Moreira


Tudo começou há mais ou menos 15 anos atrás. Ouvem-se cordas a saltar e a zurzir, socos em sacos de areia e napa vermelha e preta, urros de violência deliberada, controlada nos confins de uma sala transpirada de lutadores. Um menino observa, quieto, fascinado como criança que ainda é, abismado com o que viria um dia a ser. Mirasintra, 1992. Um bairro pobre, cinzento e degradado como tantos outros, da periferia de Lisboa, onde vivem milhares de emigrantes oriundos do decadente império ultramarino. Bastardos da lusofonia, sentem-se, sem lhes chamarem isso. O primeiro contacto com o kickboxing aconteceu assim. Bem... os filmes de acção que o seu pai consumia como “verdadeiro fanático" também ajudaram, conta no clube desportivo do Cacém, onde ainda diariamente se treina, rotina que mantém, de então para cá. Na rua, arranjava brigas, “nunca muitas”, mas faziam parte do dia a dia. Mudaria sem se aperceber, a sua vida, naquele momento, em que abria a porta e via nos espelhos da parede, as cordas que lhe delimitariam o futuro. Haveria de tornar-se como eles, os que de fato de treino e luvas calçadas ali moldavam o corpo e a mente antes de ir para o emprego, um lutador.

Hoje, José tem 30 anos e o que começou por encarar como uma escapatória da realidade evoluiu para uma profissão amiga de quase todas as horas. Se o destino por vezes parece traçado, noutras até pode nem ser bem assim. “Apesar de ser difícil, fugir a realidades duras, há que dar o melhor. Depois, é a vida a decidir”, lança, num piscar de olho.

Reconhecido como um dos maiores representantes do Kickboxing em Portugal, já travou combates nos quatro cantos do mundo. Ganhou mais vezes do que perdeu, mas saiu sempre com um sorriso. “Bem... nem sempre, por vezes somos roubados, mas faz parte”, sorri. Mas não esquece uma verdade que lhe foi ensinada, pelo peso do tempo. “Há maiores vitórias que aquelas que se conseguem no tapete, e há combates que esses sim, precisam de ser ganhos, logo desde pequenos, quando temos o espírito bem aberto e a vida pela frente”.



Lutador por Direito

Tem assim início, a história da sua outra faceta, que ultrapassa as luvas de couro e as protecções, abandona os pavilhões e ganha enquadramento nas ruas sujas e abandonadas, nas famílias destruídas, nas infâncias perdidas, sem rumo e perspectivas de ser mais e melhor.

José Reis é licenciado em Direito. Acabou o curso em 2004 na Lusófona, caso raro entre os lutadores, ou mesmo desportistas deste ou qualquer outro desporto. Muitas vezes por falta de tempo, ou simplesmente má avaliação daquilo que pode trazer o futuro, desistem dos estudos e colocam a escola fora do curso.

Partilhava os treinos com a faculdade. Dividia o dia e a noite, queimava as sobrancelhas enchameadas dos treinos diários no ginásio. “Foi uma altura complicada para mim mas... valeu a pena! Sempre tive a necessidade, porque sempre achei que gostaria de poder fazer mais, e para isso é preciso estudar. E ambas as coisas acabam por se complementar em mim”, realça.

É então que começa a nascer o epíteto que ainda hoje o persegue. Advogado do Diabo, chamam-lhe, numa alusão ao filme de Al Pacino, película de Hollywood que até aprecia. “Não sei bem como apareceu sabe?! Mas agrada-me claro! Mete respeito, mas é só uma brincadeira, por causa do curso. E são duas coisas muito difíceis de serem conjugadas... Advocacia e Kickboxing, que confusão”, humoriza. Mais a sério, e “olhando para trás, não consigo imaginar como teria sido a minha vida se não tivesse tido aquela curiosidade para começar a praticar a modalidade. A luta deu-me disciplina, força e coragem para continuar a seguir em frente e realizar os meus outros sonhos, mesmo com todas as dificuldades que foram surgindo pelo caminho, passo a passo”.

Com o curso no curriculum, trabalha agora como técnico profissional de reinserção social num centro educativo tutelado pelo Ministério da Justiça, para miúdos problemáticos entre os 12 e 16 anos. “O meu trabalho é ser o seu tutor, o pai que eles muitas vezes não têm, a referência que ainda não conheceram, para os voltar a por na linha, porque são ainda muito novos! Ainda há esperança para eles...”. O olhar solta-se num brilho intenso, abandona o local e percorre momentos que não são ditos, ficam soltos e presos no seu dono.




O outro lado

O Advogado do Diabo, tem várias facetas. É lutador, advogado, tutor, e até rapper nos “Da Blazz” desde 1994. “As nossas rimas têm a ver com tudo o que se passa no mundo pois sabemos que estamos muito envolvidos no nosso meio e por isso damos-lhe voz, som e poesia à nossa maneira”. A música causa a sensação dos miúdos que, também por isso, o observam como figura de referência.
Homem sem grandes medos, presta-lhes no entanto, o devido respeito. “O Medo é importante, até para estarmos atentos ao que de mau nos espera, em qualquer momento mais traiçoeiro que a vida nos costuma reservar”.

Mas de tudo o que faz, aquilo que mais o preenche e alivia, mesmo das maiores dores do corpo, depois de um grande combate é o serviço social. Aquele que lhe traz as maiores vitórias, mesmo que essas não se façam acompanhar de medalhas, cheques, ou meninas bonitas anunciando o round seguinte. “Sempre tive alguma aptidão para o serviço social. Eu gostava muito de trabalhar com miúdos e acabei por descobrir que realmente tinha jeito para fazer o que faço e... é isto que quero ser para toda a vida. José não se esgota no entanto em nenhuma das suas várias lutas, e arranja sempre lugar para mais uma, mesmo que por vezes desigual. “Muitas vezes, os resultados não são tão bons como gostaríamos, porque sabemos que quando eles voltam para os bairros, têm uma grande pressão para voltar a cometer crimes para se afirmarem nos grupos a que pertencem”. Apesar dessa consciência, não desiste. “Isso nunca. E à parte da minha profissão, ainda desenvolvi com a ajuda de amigos e familiares uma associação recreativa para os jovens do meu bairro em Mira Sintra, a maioria cabo-verdianos, para passarem os tempos livres, para ocuparem o seu tempo a ler, a estudar, a praticar desporto”, conta.

A sua vida, a privada e a social é assim em grande parte passada na monitorização dos mais novos. Para que não façam batota e abandonem o combate na primeira pancada. “Estes rapazes, durante o seu dia a dia têm muito pouco e não deveria ser assim. Estou aqui, no canto, para os motivar, naquele preciso momento em que baixarem os braços, erguer-lhos-ei novamente”.

Olha-os como que se recordasse o seu reflexo transportado a um passado não muito distante, que entrega de volta a si próprio. “Eu fui assim sabe?! Fiz pela vida e tive sorte. O que fazemos é reeducá-los, dar-lhes a noção do que é certo e errado, criamos condições para que também eles tenham alguma dessa sorte que faz, em certos momentos toda a diferença entre o bem e o mal”.

No caminho que escolheu, as luvas almofadadas tiveram o mérito de o encorajar. Com tantas personalidades, não seria também ele suficiente para uma terra só. Luso-caboverdiano, chama-se a si mesmo. “Sinto-me abençoado por pertencer a estas duas culturas e não vejo o que pode ter isso de negativo. Só é preciso saber aproveitar o melhor de cada uma delas. Como na vida, pegar nas oportunidades que cada uma nos dá e construir alguma coisa a partir daí”.

Combate em família

Em 2004, num torneio de K1, uma das variantes mais importantes do Kickboxing, José Reis e o seu irmão, Luís Reis, alguns anos mais novo, tiveram uma grande surpresa, que ainda hoje é recordada nos bastidores do desporto. Meias finais decisivas para ambos. E lutavam um, contra o outro, irmão contra irmão. “Não era suposto lutarmos os dois mas como fomos apurados tivemos de ir para o ringue”, recorda. Tiveram tanta dificuldade em combater que o árbitro chegou a marcar-lhes faltas, enquanto o público gritava em reprovação à escolha do combate.

Apesar de treinarem juntos desde crianças, Luís, hoje mais velho e já também campeão em vários escalões conta como passou aqueles momentos. “Nós aqui treinamos os dois e batemos a sério, mas ali é estranho, estão pessoas a ver, não combatemos, estivemos a engonhar um bocado e depois acabei por desistir, porque ele tinha mais hipóteses do que eu de ser campeão”. E foi, ganhando a final alguns dias depois. Luís é mais calado, passa a maioria do tempo dos seus olhares, pelo chão. Vive num mundo de silêncio, onde as palavras surgem apenas a intervalar os seus pensamentos. Bate com mais força que o irmão diz quem entende. Mas o eco do elogio desperta-lhe um sorriso de embaraço e afugenta-o para dentro de si. A consolação de Luís viria no ano seguinte, quando no mesmo torneio, sagrar-se-ia também ele campeão, mais outro na família Reis.

Quando anuncia o fim da carreira na modalidade para daqui a dois anos, as memórias parecem invadi-lo, por momentos. As lutas e as razões de tudo... Sorri, como sempre que não tem algo a dizer, mas que diz tudo, apenas em gesto. Regressa. Na soma de um total inacabado, o simples resultado. Trabalho.

“Eu sempre levei a sério o treino, o combate e depois tive sorte por ter começado a treinar desde o princípio com os meus professores que me indicaram o caminho”. Inocêncio Ramos, mestre do Clube Atlético do Cacém “há já tantos anos” que lhes perdeu a conta, lembra ainda o momento em que viu José pela primeira vez. “Era um puto, vinha lá do Bairro de Mira Sintra com alguns amigos, queria era lutar. Quem diria que passados quinze anos seria o homem que hoje é. E sabe que mais, lá fora, no estrangeiro, a todos s sítios que vamos, ele é uma bandeira do nosso país, toda a gente o conhece!”. Ainda hoje, depois de tanto tempo, lhe chegam jovens assim, cheios de sonhos grandiosos. “E nós estamos cá para os receber e encaminhar, e espero lembrá-los daqui a outros quinze anos, acima de tudo pelos homens que se tornarão”, augura, com boa fé na dose de palavras.

José, está com o olhar distante. “Apesar de só há cinco anos atrás se ter começado a falar de mim, desde o princípio que me esforçei muito e nunca desisti. Acho que esse é o segredo de tudo sabe?!”. Até porque agora, tem uma série de filhos adoptivos que o olham como referência das suas próprias conquistas. “O meu trabalho é uma responsabilidade muito grande para mim, porque tenho de corresponder aos ideais dos rapazes. Eu gosto de mostrar aos miúdos que nada é impossível. E se eu consigo ganhar campeonatos, eles também podem conseguir passar de ano no escola”. Nem todos conseguem, mas alguns. “Já faz toda a diferença não é?”.

Revista Pública
Fevereiro de 2008