fevereiro 11, 2008

Pública: José Reis, O Advogado do Diabo




Nasceu em Portugal mas é filho do sol quente e do mar salgado, da africana ilha de Santiago, em Cabo Verde. Baptizaram-no de Advogado do Diabo por ter alcançado a licenciatura em Direito, no tempo em que descansava das vitórias no kickboxing. E foram muitas, pelo mundo fora. Atingiu o topo do Olimpo e não caiu, apenas sentindo a vertigem do que poderia ter acontecido, se não tivesse sido. Continua ainda a lutar, em homenagem ao destino de gigante que foi crescendo sem querer, mas com muita vontade. Olhar no horizonte, passos no chão, esvoçaça como borboleta, desfere ferroadas de abelha, no ringue e fora dele, onde ajuda jovens como já foi “a perseguirem os sonhos” que sempre desenhou para si. Conheça a vida e a história de um homem que é tudo, e quer ser mais.

Texto
Pedro Cativelos

Fotografia
Patrícia Moreira


Tudo começou há mais ou menos 15 anos atrás. Ouvem-se cordas a saltar e a zurzir, socos em sacos de areia e napa vermelha e preta, urros de violência deliberada, controlada nos confins de uma sala transpirada de lutadores. Um menino observa, quieto, fascinado como criança que ainda é, abismado com o que viria um dia a ser. Mirasintra, 1992. Um bairro pobre, cinzento e degradado como tantos outros, da periferia de Lisboa, onde vivem milhares de emigrantes oriundos do decadente império ultramarino. Bastardos da lusofonia, sentem-se, sem lhes chamarem isso. O primeiro contacto com o kickboxing aconteceu assim. Bem... os filmes de acção que o seu pai consumia como “verdadeiro fanático" também ajudaram, conta no clube desportivo do Cacém, onde ainda diariamente se treina, rotina que mantém, de então para cá. Na rua, arranjava brigas, “nunca muitas”, mas faziam parte do dia a dia. Mudaria sem se aperceber, a sua vida, naquele momento, em que abria a porta e via nos espelhos da parede, as cordas que lhe delimitariam o futuro. Haveria de tornar-se como eles, os que de fato de treino e luvas calçadas ali moldavam o corpo e a mente antes de ir para o emprego, um lutador.

Hoje, José tem 30 anos e o que começou por encarar como uma escapatória da realidade evoluiu para uma profissão amiga de quase todas as horas. Se o destino por vezes parece traçado, noutras até pode nem ser bem assim. “Apesar de ser difícil, fugir a realidades duras, há que dar o melhor. Depois, é a vida a decidir”, lança, num piscar de olho.

Reconhecido como um dos maiores representantes do Kickboxing em Portugal, já travou combates nos quatro cantos do mundo. Ganhou mais vezes do que perdeu, mas saiu sempre com um sorriso. “Bem... nem sempre, por vezes somos roubados, mas faz parte”, sorri. Mas não esquece uma verdade que lhe foi ensinada, pelo peso do tempo. “Há maiores vitórias que aquelas que se conseguem no tapete, e há combates que esses sim, precisam de ser ganhos, logo desde pequenos, quando temos o espírito bem aberto e a vida pela frente”.



Lutador por Direito

Tem assim início, a história da sua outra faceta, que ultrapassa as luvas de couro e as protecções, abandona os pavilhões e ganha enquadramento nas ruas sujas e abandonadas, nas famílias destruídas, nas infâncias perdidas, sem rumo e perspectivas de ser mais e melhor.

José Reis é licenciado em Direito. Acabou o curso em 2004 na Lusófona, caso raro entre os lutadores, ou mesmo desportistas deste ou qualquer outro desporto. Muitas vezes por falta de tempo, ou simplesmente má avaliação daquilo que pode trazer o futuro, desistem dos estudos e colocam a escola fora do curso.

Partilhava os treinos com a faculdade. Dividia o dia e a noite, queimava as sobrancelhas enchameadas dos treinos diários no ginásio. “Foi uma altura complicada para mim mas... valeu a pena! Sempre tive a necessidade, porque sempre achei que gostaria de poder fazer mais, e para isso é preciso estudar. E ambas as coisas acabam por se complementar em mim”, realça.

É então que começa a nascer o epíteto que ainda hoje o persegue. Advogado do Diabo, chamam-lhe, numa alusão ao filme de Al Pacino, película de Hollywood que até aprecia. “Não sei bem como apareceu sabe?! Mas agrada-me claro! Mete respeito, mas é só uma brincadeira, por causa do curso. E são duas coisas muito difíceis de serem conjugadas... Advocacia e Kickboxing, que confusão”, humoriza. Mais a sério, e “olhando para trás, não consigo imaginar como teria sido a minha vida se não tivesse tido aquela curiosidade para começar a praticar a modalidade. A luta deu-me disciplina, força e coragem para continuar a seguir em frente e realizar os meus outros sonhos, mesmo com todas as dificuldades que foram surgindo pelo caminho, passo a passo”.

Com o curso no curriculum, trabalha agora como técnico profissional de reinserção social num centro educativo tutelado pelo Ministério da Justiça, para miúdos problemáticos entre os 12 e 16 anos. “O meu trabalho é ser o seu tutor, o pai que eles muitas vezes não têm, a referência que ainda não conheceram, para os voltar a por na linha, porque são ainda muito novos! Ainda há esperança para eles...”. O olhar solta-se num brilho intenso, abandona o local e percorre momentos que não são ditos, ficam soltos e presos no seu dono.




O outro lado

O Advogado do Diabo, tem várias facetas. É lutador, advogado, tutor, e até rapper nos “Da Blazz” desde 1994. “As nossas rimas têm a ver com tudo o que se passa no mundo pois sabemos que estamos muito envolvidos no nosso meio e por isso damos-lhe voz, som e poesia à nossa maneira”. A música causa a sensação dos miúdos que, também por isso, o observam como figura de referência.
Homem sem grandes medos, presta-lhes no entanto, o devido respeito. “O Medo é importante, até para estarmos atentos ao que de mau nos espera, em qualquer momento mais traiçoeiro que a vida nos costuma reservar”.

Mas de tudo o que faz, aquilo que mais o preenche e alivia, mesmo das maiores dores do corpo, depois de um grande combate é o serviço social. Aquele que lhe traz as maiores vitórias, mesmo que essas não se façam acompanhar de medalhas, cheques, ou meninas bonitas anunciando o round seguinte. “Sempre tive alguma aptidão para o serviço social. Eu gostava muito de trabalhar com miúdos e acabei por descobrir que realmente tinha jeito para fazer o que faço e... é isto que quero ser para toda a vida. José não se esgota no entanto em nenhuma das suas várias lutas, e arranja sempre lugar para mais uma, mesmo que por vezes desigual. “Muitas vezes, os resultados não são tão bons como gostaríamos, porque sabemos que quando eles voltam para os bairros, têm uma grande pressão para voltar a cometer crimes para se afirmarem nos grupos a que pertencem”. Apesar dessa consciência, não desiste. “Isso nunca. E à parte da minha profissão, ainda desenvolvi com a ajuda de amigos e familiares uma associação recreativa para os jovens do meu bairro em Mira Sintra, a maioria cabo-verdianos, para passarem os tempos livres, para ocuparem o seu tempo a ler, a estudar, a praticar desporto”, conta.

A sua vida, a privada e a social é assim em grande parte passada na monitorização dos mais novos. Para que não façam batota e abandonem o combate na primeira pancada. “Estes rapazes, durante o seu dia a dia têm muito pouco e não deveria ser assim. Estou aqui, no canto, para os motivar, naquele preciso momento em que baixarem os braços, erguer-lhos-ei novamente”.

Olha-os como que se recordasse o seu reflexo transportado a um passado não muito distante, que entrega de volta a si próprio. “Eu fui assim sabe?! Fiz pela vida e tive sorte. O que fazemos é reeducá-los, dar-lhes a noção do que é certo e errado, criamos condições para que também eles tenham alguma dessa sorte que faz, em certos momentos toda a diferença entre o bem e o mal”.

No caminho que escolheu, as luvas almofadadas tiveram o mérito de o encorajar. Com tantas personalidades, não seria também ele suficiente para uma terra só. Luso-caboverdiano, chama-se a si mesmo. “Sinto-me abençoado por pertencer a estas duas culturas e não vejo o que pode ter isso de negativo. Só é preciso saber aproveitar o melhor de cada uma delas. Como na vida, pegar nas oportunidades que cada uma nos dá e construir alguma coisa a partir daí”.

Combate em família

Em 2004, num torneio de K1, uma das variantes mais importantes do Kickboxing, José Reis e o seu irmão, Luís Reis, alguns anos mais novo, tiveram uma grande surpresa, que ainda hoje é recordada nos bastidores do desporto. Meias finais decisivas para ambos. E lutavam um, contra o outro, irmão contra irmão. “Não era suposto lutarmos os dois mas como fomos apurados tivemos de ir para o ringue”, recorda. Tiveram tanta dificuldade em combater que o árbitro chegou a marcar-lhes faltas, enquanto o público gritava em reprovação à escolha do combate.

Apesar de treinarem juntos desde crianças, Luís, hoje mais velho e já também campeão em vários escalões conta como passou aqueles momentos. “Nós aqui treinamos os dois e batemos a sério, mas ali é estranho, estão pessoas a ver, não combatemos, estivemos a engonhar um bocado e depois acabei por desistir, porque ele tinha mais hipóteses do que eu de ser campeão”. E foi, ganhando a final alguns dias depois. Luís é mais calado, passa a maioria do tempo dos seus olhares, pelo chão. Vive num mundo de silêncio, onde as palavras surgem apenas a intervalar os seus pensamentos. Bate com mais força que o irmão diz quem entende. Mas o eco do elogio desperta-lhe um sorriso de embaraço e afugenta-o para dentro de si. A consolação de Luís viria no ano seguinte, quando no mesmo torneio, sagrar-se-ia também ele campeão, mais outro na família Reis.

Quando anuncia o fim da carreira na modalidade para daqui a dois anos, as memórias parecem invadi-lo, por momentos. As lutas e as razões de tudo... Sorri, como sempre que não tem algo a dizer, mas que diz tudo, apenas em gesto. Regressa. Na soma de um total inacabado, o simples resultado. Trabalho.

“Eu sempre levei a sério o treino, o combate e depois tive sorte por ter começado a treinar desde o princípio com os meus professores que me indicaram o caminho”. Inocêncio Ramos, mestre do Clube Atlético do Cacém “há já tantos anos” que lhes perdeu a conta, lembra ainda o momento em que viu José pela primeira vez. “Era um puto, vinha lá do Bairro de Mira Sintra com alguns amigos, queria era lutar. Quem diria que passados quinze anos seria o homem que hoje é. E sabe que mais, lá fora, no estrangeiro, a todos s sítios que vamos, ele é uma bandeira do nosso país, toda a gente o conhece!”. Ainda hoje, depois de tanto tempo, lhe chegam jovens assim, cheios de sonhos grandiosos. “E nós estamos cá para os receber e encaminhar, e espero lembrá-los daqui a outros quinze anos, acima de tudo pelos homens que se tornarão”, augura, com boa fé na dose de palavras.

José, está com o olhar distante. “Apesar de só há cinco anos atrás se ter começado a falar de mim, desde o princípio que me esforçei muito e nunca desisti. Acho que esse é o segredo de tudo sabe?!”. Até porque agora, tem uma série de filhos adoptivos que o olham como referência das suas próprias conquistas. “O meu trabalho é uma responsabilidade muito grande para mim, porque tenho de corresponder aos ideais dos rapazes. Eu gosto de mostrar aos miúdos que nada é impossível. E se eu consigo ganhar campeonatos, eles também podem conseguir passar de ano no escola”. Nem todos conseguem, mas alguns. “Já faz toda a diferença não é?”.

Revista Pública
Fevereiro de 2008

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