novembro 05, 2007

Pública: Entroncamento... Na terra dos sonhos




Para começar têm dois, três, demasiadas figuras paternas. Nem uma mãe... Poderia também ter Jonhy Depp esta história, e ainda Tim Burton, Linch, Lewis Carrol... mas numa outra dimensão, tê-los-á conhecido, à sua maneira, a história dos fenómenos que se espalharam de boca em boca, pelo país e pelo tempo. Na estação onde as verdadeiras viagens começam, mesmo que sejam pela imaginação, vai permanecendo um mundo onde cada vez menos coisas deixam de ter explicação, a realidade ocupa o espaço da fantasia, o despertar emancipa-se cada vez mais, e o sonho perde o lugar. Na terra do padre Borga, onde Carlos Paredes actuou em vida pela última vez, já não há cantigas nem histórias de fazer sorrir. Apenas linhas de ferro em memórias para lembrar.


Texto
Pedro Cativelos

Fotografia
Patrícia Moreira


Mil novecentos e trinta. Três da tarde. Cheira a carvão nos vapores do Outono que se avizinha. O comboio que vem de Lisboa abastece as fornalhas cansadas. O ferro está quente, e os suores dos passageiros bem trajados, também.
Entroncamento, deve o baptismo ao emaranhado de linhas que ali se amontoam desde o século passado, uma espécie de capital do caminho-de-ferro, charneira das ligações com o Leste e a Beira Baixa, a estação representou durante décadas, ponto de paragem obrigatória para quem mudava de linha, quando o comboio era o meio de transporte mais utilizado. Nesse tempo, muitos viajantes ilustres vindos da Europa pela Linha do Leste, ou fazendo o percurso inverso, almoçaram ou jantaram no restaurante da estação. Nas suas obras literárias, vários escritores se lhe referiram, de Hans Christian Andersen, a Ramalho Ortigão, passando por Eça ou Alberto Pimentel.
Numa montra próxima da gare, um mostrengo em forma de abóbora com mais de 50 quilos. “Jesus!”, terão murmurado algumas das senhoras da sociedade da época. “Fenomenal”, terão pronunciado os senhores que por ali passavam, esperando o próximo comboio.
E assim acontece. Durante os anos seguintes, a moda pegou e foram entrando em exposição na montra da tabacaria Luanda, outros legumes e frutos ditos “fenomenais', pelo tamanho ou pelas formas sugestivas, frequentemente antropomórficas, eróticas, erógenas, pecaminosas, suscitadoras de sorrisos, como se um malvado diabrete se escondesse nas terras de cultivo com o intuito de brincar com a imaginação malandra e fértil de quem se situava calado para não pecar no Portugal anterior a Abril de setenta e quatro. A lenda cresceu, cresceu, cresceu... e desapareceu. Hoje só já resta a expressão que todos conhecem e que colocou o nome desta localidade igual a tantas outras eternamente alojado numa das citações mais recorrentes do léxico popular português. Às coisas mais bizarras não há hoje quem resista a baptizá-las logo como fenómenos... do Entroncamento.





Cá pelo Burgo

Apenas concelho em 1945 (não deixa de ser um fenómeno para uma estação de comboio com algumas habitações em redor), conta-se que até Salazar sorria (outro fenómeno!), quando lia no jornal mais um dos acontecimentos estranhos daquela terra ribatejana.
Mas, e como nem tudo tem de ter um princípio comum, Eduardo Brito, foi um dos pais dos fenómenos. Era um seguidor das circenses bizarrias americanas, os freak shows de homens com escamas, mulheres de bigode, anões com duas cabeças, que por cá já iam fazendo notícia. Achava que "estes poderiam ser óptimos exemplos para divulgar um lugar onde apenas se cruzavam linhas e comboios", explica. Sendo assim, procurou o invulgar, e encontrou-o. Todavia, mas a uma outra escala, bem menos americanizada. Um raro melro branco. Depressa lhe começaram a levar galinhas com quatro patas ou carneiros com chifres demais...
A palavra fenómeno espalhava-se em cada passageiro em viagem e entrava assim nas páginas dos jornais de Lisboa, e sempre indissociável de uma outra, Entroncamento. "Todas as lendas ou contos populares começam assim, com um determinado facto histórico que depois é explorado e exponenciado" assinala o escritor, agora com noventa e cinco anos de vida, setenta e cinco passados a sublinhar a evolução das histórias do inimaginável ao longo dos tempos numa crónica a que chamou à época, Cá Pelo Burgo. “Depois, bem, a imaginação das pessoas fazia o resto e quem as conta acrescenta sempre mais um ponto não é verdade?!. Às vezes até há várias versões da mesma lenda e aliás, defendo que nestas coisas, neste tipo de assuntos que nos fazem bem até, podemos e devemos intervir à vontade".

Há alguma coisa como um fenómeno?
Pode dizer-se que os portugueses têm uma atracção especial para os fenómenos e uma muito exponenciada relação com os superlativos exagerados. Mania das grandezas ou outra coisa qualquer, porventura bem expressa no livro dos recordes do Guiness e na quantidade de grandiosos feitos que por lá estão identificados em português de Portugal. Em Vila de Rei existe uma cabra com uns cornos com 2,15m, em Vila Verde, na tradicional Festa das Colheitas, bateu-se há tempos o recorde de 645 tocadores de concertina em sinfonia, em Esposende o mesmo homem foi sepultado em dois cemitérios diferentes, em Oeiras o recorde mundial da mais longa cadeia de relógios foi quebrado com um total de 1382 relógios, e mais para o interior, os Viseenses fizeram uma broa de milho com 402 metros de comprimento!
Quanto ao Entroncamento, por lá as abóboras são descomunais, os tomates contra natura, os pepinos avantajados, os marmelos rechonchudos, as batatas têm formas de Buda, as alfaces crescem aos três metros, e há pintos, cães e outros animais com duas cabeças... Houve. Ouve-se e sempre se ouviu que sim. Não entraram para o Guiness, mas entraram para o imaginário nacional que desde então reserva à localidade ribatejana o lugar de sítio estranho onde tudo pode de facto acontecer.



Um sorriso vale mais que mil fenómenos
As histórias do Entroncamento são um pouco como aquelas brincadeiras de criança ou de alguns adultos, da caça aos “gambuzinos” ou do homem do saco. Todas as localidades têm a sua, todas possuem um fundo de verdade ou de lição, comparado com a carga de galhofa que ostentam. Basta perguntar por um fenómeno em qualquer café da região, e o sorriso comprometedor não se faz esperar, como que se revelasse logo ali um segredo apenas guardado a quem sempre esteve por perto. Todas as lendas são assim, só se tornam épicas fora do local onde realmente aconteceram. Aos oitenta e três anos, Antero Fernandes, é outra das figuras paternas dos fenómenos. “Comecei novo, trabalhava na C.P. e como tinha facilidade em viajar e ia a Lisboa frequentemente, acabei por começar a escrever para vários jornais, mais na área desportiva. Depois, e quando reportei o primeiro facto estranho, as pessoas começaram a vir ter comigo para me trazerem abóboras gigantes, cenouras com formas esquisitas e...até um pinto com quatro patas e outras tantas asas”, conta.
E que destino tinham estes fenómenos, para além de propalados nas páginas do Correio da Manhã onde escreveu desde o primeiro número? “Bem, trazia-os onde podiam ser vistos por toda a gente que passava, a tabacaria Luanda”, que durante anos serviu de museu ao sobrenatural mundano que por aqui se passeava. “Claro que na maioria dos casos puxava um pouco à brincadeira... marmelos gigantes, melões gémeos... o que fazia sorrir as pessoas e tornava a coisa engraçada”, lembra.
Nos anos quarenta do século passado, o Entroncamento era, depois do Barreiro, o segundo meio operário do país, representando os trabalhadores dos caminhos-de-ferro mais de metade da sua população. A CP criou bairros para os empregados, uma escola e um armazém de víveres, mas... faltava o resto. Na verdade, a história dos fenómenos passa na sua quase totalidade pela brincadeira popular, de um povoado de gente proveniente dos quatro cantos do país e, onde o único contacto com o meio onde residiam e com o mundo para lá dos horizontes era a linha do comboio. “O Entroncamento é uma terra especial, composta de muitas gentes de várias proveniências, com muita imaginação, também fomentada pela inexistência de grandes notícias e outros atractivos que por aqui sempre foram escassos”. O pároco do Entroncamento, (que se considera em tons de brincadeira também ele um verdadeiro fenómeno, pois dirige as paróquias do Entroncamento com o padre Luís Borga, igualmente natural da região, e ele próprio um fenómeno de popularidade, e partilha com ele uma similitude curiosa, ambos têm irmãos gémeos) explica também que “tudo nunca passou de uma distracção à normalidade que acabou por unir uma verdadeira salada russa de muitas proveniências diferentes”.
Mas, e estando Fátima a poucos quilómetros, nunca terá surgido uma associação mais religiosa, a estes fenómenos mais, mundanos? Padre Vicente, aclara. “Não, porque não é nem nunca foi essa a génese destes acontecimentos. As pessoas daqui são muito criativas sabe, e estas coisas sempre aconteceram como forma de ilustrar a rotina de vida e não de entrar nos caminhos da fé ou do sobrenatural. Nunca se falou em fantasmas nem em espíritos, santos ou não!”, revela, com humor.

O tempo, não volta para trás
De apeadeiro até concelho com vinte mil habitantes num século diferente. Hoje, os comboios já não se alimentam de carvão, a maioria das famílias não trabalha na CP, e muitos comboios nem travam quando se aproximam da estação. A sombra dos aviões que esvoaçam e do TGV que há de passar a correr vão pendendo num tempo onde a ciência também ganhou todas as corridas. Sobra pouco espaço às histórias, e mesmo por aqui, entre a febre da construção de cores berrantes e o trânsito de final de tarde, para lá das tépidas conversas em bancos de jardim repletos de sobreviventes de outros tempos, já vai escasseando tempo para pensar e sorrir sobre as pequenas coisas do dia a dia.
Os motards Fenómenos do Entroncamento e a firma de mudanças Transfenómeno são os últimos resquícios visíveis de uma identidade que nunca o foi verdadeiramente e a última situação verdadeiramente estranha registada aconteceu já há alguns anos. Pouco tempo após a inauguração, o túnel que passa por debaixo da linha do comboio foi palco de um acidente tão trágico quanto invulgar. Dois homens chocaram precisamente a meio do túnel. Ambos morreram, ambos iam de bicicleta, à mesma hora, no mesmo local, na mesma trajectória. Insólito, mas demasiado sinistro para a boa disposição dos descobridores de fenómenos.
Pela cidade, um museu das aberrações chegou a ser falado, anunciado até, mas nunca viria a acontecer por falta de “matéria-prima”. De então para cá, os contadores de histórias como Eurico ou Antero envelheceram, reformaram-se, e apesar das terras continuarem férteis, as pessoas não vêm mais na imaginação as formas que lhes traziam à memória mais um bom tema de conversa, mais uma sonora gargalhada, mais uma história diferente de uma vida de formas sempre iguais.

Pública,
Outubro de 2007

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