abril 22, 2009

Notícias Magazine: Rita Guerra

“Nunca tive a pretensão de ir para o estrangeiro”


Canta quase tão naturalmente como vai percorrendo os episódios da sua história, gravada nas faixas de uma carreira que se vai acrescentando com “paixão” pela “única vocação” que descobriu criança ainda. Vinte e cinco anos depois, do velho piano antigo cheio de memórias da avó, aos palcos de madeira desgastada dos bares onde se iniciou ao vivo, dos espectáculos no Preto e Prata do Casino aos primeiros lugares dos tops de vendas, Rita Guerra continua a ser como é e prepara os dois grandes espectáculos nos Coliseus de Lisboa e do Porto, a 20 e 21 de Março, “corolário” de uma época da sua vida preenchida por canções, as suas, entoadas por um coro de vozes que se alastra e multiplica à velocidade das emoções que propaga na voz, de norte a sul do país.

Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira



Se o mote para esta entrevista são os vinte cinco anos de carreira que agora concretiza, comecemos então pelo princípio. Tem noção do momento em que se inicia verdadeiramente a sua vida artística, ou pelo menos de quando começa a desenhar no pensamento a ideia de seguir profissionalmente uma carreira na música?
Tinha para aí dez anos, quando me sentei ao piano que a minha avó tinha em casa e vi que estava afinada… Pronto, foi assim que comecei a ir para a entrada do prédio que tinha uma acústica espectacular colocar toda a gente a bater nas paredes para me calar, mas não conseguiram! De forma profissional e assumida apareço enquanto artista alguns anos depois, a cantar ao vivo, no circuito dos bares, aos dezasseis, creio eu. De lá até cá foi um pulinho.

Passou depressa foi?
Muito, demais, mas interessa-me mais o presente, esse é que é preciso aproveitar.

Olhando-se para si, custa a acreditar que já leva um quarto de século de carreira… E disse-o assim para acrescentar peso ao tempo!
(Lança uma gargalhada) É bastante de facto! Acabam por ser assim tantos porque considero que a minha carreira se inicia precisamente no primeiro espectáculo em que fui remunerada.

Lembra-se da primeira música que cantou ao vivo?
Hum… (começa a cantar) I dont wanna talk about it…

Rod Stewart?
Sim, sim, mas a primeira mesmo não foi essa. Deixe-me ver… Foi quando tinha doze anos, num dia da mãe na base das Lajes onde o meu pai estava na altura, quando ganhei até o meu primeiro cachet, 15 dólares na altura, com um tema da Kim Carnes chamado My Old Pals. A seguir cantei o Love Song do Elton John: (recomeça a entoar)“Its a litlle bit funny…”

E nunca teve dúvidas de que seria esse o seu futuro?
Estava decidida mesmo, era isso que queria fazer e nunca me desviei do objectivo, principalmente depois de ter deixado o ballet que me fez optar então decisivamente pela música.

Em “O Melhor de Rita Guerra Acústico”, rememora precisamente essas duas décadas e meia. Calculo que então aí, o turbilhão de memórias tenha sido ainda maior…
Engraçado isso... Por acaso estava constipada quando gravámos, o nosso pior inimigo, mas acabou por correr tudo bem. Já tínhamos feito vários espectáculos, a banda estava rodada, tínhamos tudo bem preparado. Tivemos várias sessões de ensaio sério, havia segurança, boa disposição, nada de fretes, somos uma banda, um grupo de amigos que se entrega de corpo e alma a isto que gostamos de fazer. Em cima do palco, foi começar a cantar e pronto, foi a nossa noite, senti-me quase como se estivesse na sala de estar lá de casa, rodeada de amigos e caras conhecidas.

E o resultado final, como o vê?
Acontece-me quando estou a ouvir o disco, dar por mim a enviar mensagens aos meus amigos a dizer-lhes para ouvirem isto ou aquilo, que na altura nem me apercebi, ainda por cima quando o mais natural é procurarmos defeitos depois de algo estar acabado.
Um acústico tem sempre algumas imperfeições próprias do formato, mas talvez isso lhe dê também uma identidade única. Deu-me um prazer enorme fazê-lo, ainda maior pela aceitação que tem tido.

Tquando a ouça falar, dá-me toda ideia de que de facto acredita e sente que nasceu para isto…
Para cantar?! Claro, é o que sei, o que gosto, sei que é o meu maior, talvez único talento!

E se não tivesse descoberto a música, ou vice-versa, por onde teria seguido a sua vida, tem noção?
Talvez decoradora que é uma coisa feminina! (Sorri)

Decoradora?!
Ou motorista, também gostaria de o ter sido porque adoro carros e gosto de conduzir! Muitas vezes quero levar a carrinha com os músicos todos, mas a minha manager não me deixa, diz que tenho de descansar para os espectáculos!

Antes de começarmos a conversar, pude ver que dançava e cantava ao som da música ambiente… Fale-me dessa sua paixão pela música que, pelo menos à primeira vista, a liberta de tal forma.
É paixão mesmo! Herdei-a dos meus pais, e desde muito pequenina convivi com isto porque vivemos sempre numa casa cheia de música, em que esse sentimento era partilhado tanto com os meus pais como com os meus quatro irmãos.

O que gosta a Rita Guerra de ouvir?
Gosto de tudo, um pouco consoante a minha disposição… Tenho sempre música a tocar em casa, da Lara Fabian aos Linkin Park, passando pelas várias sinfonias do Beethoven por exemplo! Sou a mais nova de cinco, e toda a gente em casa sempre me habituou a ouvir todo o tipo de música, principalmente clássica. Depois foi estudar, aprender, aperfeiçoar.

Muita diversidade nos gostos…
Sim, entra-me tudo, desde que goste, não tenho quaisquer preconceitos musicais sabe, e, para dizer a verdade, acho que poucos terei noutros aspectos da vida!

Clássica também…? Como sem palavras se consegue transmitir tanta emoção, extraordinário, não lhe parece?
É mesmo, porque as emoções são universais, não têm nacionalidade, ou linguagem própria! Acontece-me por vezes ir no carro, fechar os vidros e começar a ouvir música clássica… Eleva-nos a um plano superior!

No entanto, em termos de carreira aproxima-se de outros modelos musicais, talvez mais para a Lara Fabian…
Sim, gosto dela de facto, como da Celine Dion, como da Oleta Adams que tenho ouvido muito nos últimos tempos, por exemplo, em que o predomínio da voz na canção se faz notar sobremaneira e talvez seja esse o ponto em que encontro maior proximidade com elas.

A Rita revê-se nesse perfil de cantora, em que a potência e qualidade vocal se sobrepõe muitas vezes à qualidade da própria composição?
Sei que não é só preciso ter voz, mas também saber usá-la! Numa boa canção é tudo importante.

Continua a não compor, porquê?
Acho que é por ter informação a mais no cérebro, ouço muita música e acabo sempre por cair em algo que não é novo, a seguir a linha de algo que já ouvi, mesmo que não saiba de onde é. Acho que não nasci para isso, ao contrário do Paulo Martins, o meu ex-marido que compôs grande parte do meu repertório, e que realmente é muito bom a fazê-lo.

Nos seus inúmeros clubes de fãs, não é incomum encontrar a palavra diva associada a si…
Não, não, me considero nenhuma diva! Sinceramente, apenas vivo com a preocupação de dar o meu melhor, ao público e a mim mesma. Mas fico obviamente muito satisfeita, por saber que agrado tanto ao ponto de receber elogios destes. São muito bons e aumentam-nos também a responsabilidade, a vontade de dar sempre mais e melhor.

E que mensagens lhe fazem mais habitualmente chegar?
Tanta coisa… Sou atenta a isso, por respeito ao carinho que têm por mim. Sabe que não é raro dizerem-me que foi ao som da minha música que deram o primeiro beijo, que se amaram a primeira vez, que foram felizes, que se casaram até… Acho isso lindo, deixa-me orgulhosa poder com a minha música estar presente dessa forma na vida de tantas pessoas. Acho lindo.

Tem noção das centenas de milhares de vezes que o Brincando com o Fogo (mais conhecida por Cavaleiro Andante) terá sido cantado nos bares de karaoke de todo o país?
(Sorri) Eu sei, eu sei… Mas sabe que mais? Nunca fui a um bar de karaoke!

Nunca?
Não mesmo!

Mas é impossível dissociar essa música da ascensão que a sua carreira em termos de reconhecimento, depois de ter sido editada, não acha?
Reconheço que sim, são coisas que acontecem e por vezes não se percebe bem porquê. A canção é orelhuda, surgiu como genérico final de uma novela que se chamava ´Por Amor` porque tinham pedido ao Jan Van Dyke uma canção e tínhamos essa maqueta gravada. Assim foi, quase por acaso que de repente o Cavaleiro Andante que era para ir para a gaveta se tornou um mega sucesso.

Ia para a gaveta, a sério?
Sim, era uma boa canção mas não tinha onde a colocar. Por vezes isto acontece, gravamos algo que pensamos que vai ter muito sucesso e depois nada acontece, e o contrário também porque o meu gosto, na maior parte das vezes, não vai de encontro à realidade do top nacional. Gostos são isso mesmo, variam muito e há sempre surpresas.

Encara pela primeira vez nessa altura, a fama de ser uma das mais reconhecidas cantoras portuguesas. Como lida com isso, hoje em dia?
É algo que me responsabiliza, que me deixa mais motivada ainda, se preciso fosse. Não ando aqui para ver os outros, nem para aquecer, se o trabalho que se faz, o trajecto que se escolhe estão de acordo com o que o público pretende e gosta, fantástico, significa que estou no caminho certo

Encontrou o seu caminho então?
Isso mesmo, eu que andei tantos anos a fazer tanta coisa, descobri que é por aqui mesmo, por todas essas razões.



Presumo que não voltará ao Casino tão cedo, depois dos mais de dez anos que lá passou…
Sim, é verdade, foram quase duas décadas da minha vida ali. Saudades?! Nenhumas, chegava a estar três anos a cantar a mesma coisa todos os dias, muitas vezes para públicos que não o mereciam, quase a dar pérolas a porcos! Chegávamos ao fim de certos números e muitas vezes nem aplausos recebíamos, para além das discussões na sala, das pessoas aos gritos… Não! Agora tenho o meu público que me vai ver porque quer, que me procura e a quem dou o meu melhor em retribuição a esse esforço que fazem por mim, e que agradeço profundamente.

Parece diferente o mercado nacional de venda de discos, pelo menos se olharmos para os mais vendidos do ano passado, e dos primeiros meses deste novo ano, em que se podem encontrar, ao contrário de há alguns anos atrás, vários artistas portugueses.
Penso que há lugar para todos, porque também o público é tão distinto que existe procura suficiente para a maior variedade que vai aparecendo, e isso é um bom sinal.

Mais tarde na sua carreira, voltou a surpreender muita gente com o dueto com o britânico Ronan Keating, como aconteceu isso?
Gosto muito dele, foi uma experiência diferente pelo facto de ser um artista internacionalmente reconhecido e porque aconteceu através de um convite directo do próprio colega, o que é sempre recompensador. Mas acabou por ser incrível chegar à conclusão que havia um grande entrosamento, talvez porque apesar de sermos pessoas diferentes, temos o mesmo tipo de referências musicais. E julgo que foi isso que nos levou a partilhar, com tanta facilidade e tanta energia positiva, uma canção como aquela que teve todo aquele êxito há dois anos atrás.

Tem algum outro dueto dos seus sonhos?
Sim, o George Michael. Penso que era a pessoa com quem mais gostava de cantar! Sensibiliza-me imenso, escreve lindamente, tem uma afectividade na interpretação que me arrepia sempre que o ouço.

Não chegou nessa altura a pensar em internacionalizar a sua carreira?
Foi uma ideia que me passou pela cabeça, claro que sim, mas nunca tive grande pretensão a ir para o estrangeiro. Aquela coisa de andar de hotel em hotel a fazer digressões de seis meses foi coisa que nunca me atraiu. Vou quando tenho espectáculos nas comunidades emigrantes e gosto. Tenho a minha casa, os meus filhos, as minhas coisas, as minhas cadelas, assim estou muito bem!

Não a via assim tão caseira…
Mas sou! Apesar de noctívaga, não saio muito, não vou a discotecas, nem a locais com demasiada gente. Sou um pouco avessa às cidades grandes desde que estive nos Açores, em pequena. Gosto da minha zona de facto, moro em Mafra, que é calmíssima… E acordar de manhã, ir tomar o pequeno-almoço ao cafezito do costume, passear até à praia, tratar da minha casa, que não tenho empregados por opção, fazer jantaradas para os amigos, lavar a loiça…

É pessoa para ter muitos amigos?
Não, tenho poucos amigos no verdadeiro sentido da palavra, mas são os necessários. Com a vida percebemos que podemos contar mais com uns de quem não esperávamos tanto, enquanto outros ficam pelo caminho. Não sei quem diz que ´se queres ver quem são os teus inimigos, dá uma festa, se queres ver quem são os teus amigos, fica doente`. É assim mesmo, mas felizmente, os que tenho são de facto verdadeiros, já o senti.

É comum em vários artistas, esse apego às pequenas rotinas do dia-a-dia. Para não perder o contacto com a normalidade quotidiana do cidadão comum que encontravam antes do sucesso, quase como forma terapêutica, é por aí?
Talvez… A verdade é que isto não são tudo rosas! Hoje és muito bom e amanhã não existes, aprendi isso com esta vida. A crise está para todos, não sou empregada efectiva de ninguém, nem tenho quaisquer garantias de uma velhice confortável, não tenho mesmo! Eu trabalho a recibos verdes, tenho uma poupança reforma, e tenho cuidado comigo, tem de ser, portanto tenho é de trabalhar, preservar-me e continuar a procurar agradar-me a mim e a quem gosta do meu trabalho.

Transmite a ideia de uma pessoa positiva, embora realista, determinada, confiante, é verdade?
Sim, para mim não há problemas, mas soluções. A minha vida não foi tão fácil como se possa pensar, tive de aprender a dar um murro na mesa, a ser determinada, focada no que quero, no que tem de ser.

É hoje aquilo que desejava ser, enquanto pessoa?
Se calhar em relação a algumas coisas fiquei mais sensível, mais permeável, mais paciente, enquanto que em relação a outras me tornei absolutamente intransigente porque não há dúvidas que há momentos em que um ´não` pode ser determinante e inabalável.

É hoje então uma mulher sem medos?
Sim, por causa disso levei sempre por tabela, fiquei sempre eu mal, mas aprendi. De qualquer forma, estou cá para as curvas, é o que interessa.

Sei que costuma ser abordada por cantores mais jovens, o que creio ser natural, devido ao destaque e à já relativa longevidade da sua carreira. O que lhes costuma dizer?
Sem qualquer pretensão, também lhe digo que isso não acontece com tanta frequência assim, mas de uma forma geral os conselhos que dou, que vêm da minha própria experiência têm muito a ver com o facto de se dever ser verdadeiro no que faz. Um estilo e uma postura consistentes nunca passam de moda. E depois, claro, os cuidados com a voz e o corpo porque a vida artística exige muito de nós e por mais energia e vontade que tivermos, não fazemos nada sem cuidar bem da nossa saúde.

Teve sempre todos esses cuidados e preocupações, ou também por vezes caiu no ditado do ´faz o que eu digo…`
(Sorri) Fumei dois maços por dia durante 15 anos, mas parei. Não bebo álcool nem coisas com gelo, nem café… Bebo muita água, tenho sempre gengibre à mão, que é bom para a garganta… Penso que ninguém está livre de sofrer um problema nas cordas vocais… É preciso ter cuidado porque a idade toca a todos. Olha, o Elton John de quem sou fã, perdeu tanto com os anos!

Com uma vida tão cheia, como a sua, o que lhe falta ainda?
Sei lá… Estou hoje rodeada de coisas boas que, ao longo da minha vida nem sempre tive. Tenho amigos, os meus filhos, a minha carreira, tudo coisas maravilhosas. O que quero sinceramente é continuar a ter saúde! Hoje procuro apenas o bom da vida, o que é mau afasto e ponho de parte, já não perco tempo com isso.

Não a preocupa, ainda por cima no seu caso, que um dia a voz lhe falhe, a idade, e todos os outros efeitos da passagem do tempo perturbem a sequência da sua carreira?
Tenho o maior orgulho nos meus quarenta e um anos! Como dizia há pouco, há que ser genuíno. Preocupo-me comigo e com o meu instrumento mas há que saber envelhecer, e ter alguma sorte também. Conto andar por cá enquanto me deixarem e eu souber que o posso fazer na plenitude do que posso e sei.



Biografia
Rita Guerra nasceu em Lisboa, a 22 de Outubro de 1967. Assinou o primeiro contrato discográfico aos 22 anos, que lhe valeu a gravação, em 1990 do álbum de estreia "Pormenores Sem a Mínima Importância", apadrinhado por Rui Veloso.
Seguiu-se "Independence Day" (1995), totalmente cantado em inglês e "Desencontros" cinco anos depois, no início do novo século e de uma nova fase na sua vida. O álbum de duetos com Beto, confirmou a crescente popularidade junto do grande público, arrebatando um esmagador e duradouro sucesso de vendas e airplay, principalmente com o tema Cavaleiro Andante, ainda hoje um marco na sua carreira e porventura a sua música mais emblemática.
"Da Gama", um álbum étnico lançado em 2001, marcou uma nova viragem na carreira. Produzido pelo maestro Pedro Osório, assinalou o primeiro encontro profissional da cantora com Paulo de Carvalho, outro dos participantes no disco.
Em 2002, no auge do sucesso da primeira edição do programa 'Operação Triunfo', Rita Guerra é convidada pela RTP para representar Portugal no Festival Eurovisão da Canção. Em Riga, na Letónia, cantou "Deixa-me Sonhar (Só mais uma vez)".
O álbum "Rita", lançado em 2005, marcou a consagração definitiva. Escrito e produzido por Paulo Martins, o disco é uma colecção de canções elegantes que potenciam a voz que a define desde cedo. Edição da Farol Música, atingiu em Março de 2006 a marca da dupla platina, correspondente a mais de 40 mil unidades vendidas, tendo estado nos lugares cimeiros do top nacional, ao longo de dez meses.
Continuou entretanto a ser uma das vozes Portuguesas da Disney. "Hércules", "O Príncipe do Egipto", "Rei Leão", "A Pequena Sereia", "Branca de Neve" e "Tarzan" são alguns dos filmes onde pode ouvir-se a sua presença vocal.
Ao vivo, e ao longo de mais de dez anos, cantou todas as noites, integrada no elenco do espectáculo do Salão Preto e Prata do Casino do Estoril. Teve ainda tempo para embarcar em duas digressões nacionais de enorme sucesso, com os espectáculos "As Canções do Século" (com Lena D'Agua e Helena Vieira, um trabalho também convertido em disco) e "POPera" (com Beto e Helena Vieira).
Em Março de 2006, e dando sequência ao crescimento que a sua carreira vinha tendo nos últimos anos, realiza no Coliseu dos Recreios o primeiro grande espectáculo a solo em 10 anos. O concerto marcou o regresso à estrada, numa digressão nacional de grande sucesso e inúmeras solicitações, para salas e recintos sempre esgotados e assistências médias de 5.000 pessoas.
Depois de "Sentimento", lançado em 2007, regressa então em 2009, acústica, revisitando os maiores êxitos da vida artística em “O Melhor de Rita Guerra”, com espectáculos marcados para 20 e 21 de Março, nos Coliseus de Lisboa e do Porto.

Notícias Magazine, Abril de 2009

Notícias Sábado: Liliana Santos

“Sou sensual à minha maneira”


Começou na publicidade, passou pela moda, licenciou-se em sociologia, e “num acaso da vida” a televisão fez com que descobrisse a “verdadeira” vocação. Pragmática impulsiva, sensual com traços de timidez, confessa-se “feliz e agradecida”, mas ainda com “quase tudo para aprender” e “ainda mais” para viver. Entre a menina recatada e comedida que se estreava há quatro anos nos Morangos com Açúcar, e a mulher fatal, sem pudores nem preconceitos, na qual transparece a figura erótica e corpo desnudo em Second Life, poderá então encontrar-se o verdadeiro lugar de Liliana Santos, talvez porque, como assume, nunca se desprenda completamente de todos os pedaços das personagens que vão passando por si enquanto actriz.



Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


Tem-se falado muito de si desde a estreia de Second Life. Aparece agora como nunca antes fora vista, como começou tudo isto?
Bom, a personagem é uma mulher desinibida, sem complexos ou temores em relação ao que os outros pensam, alguém que é sensual em tudo o que faz, que seduz toda a gente à sua volta sem qualquer problema moral. Como é óbvio não me revejo nisso, nem sou assim! Demorei três meses a compor a personagem, cheguei até a ir a bares de strip tease para perceber como as dançarinas conseguem tornar-se tão sexuais, como atraem os homens, quando dançam, quando se movem em frente a eles, e até quando andam... Essas cenas de que se tem falado, encarei-as da forma mais natural possível porque é o meu trabalho e um actor pode ter pudor como pessoa, mas não o deve ter enquanto profissional.

As cenas de sexo com Sandra Cóias, o lap dance com Luís Figo têm sido muito utilizadas na divulgação do filme...
São cenas muito sensuais, bem filmadas de facto. A Raquel, a minha personagem, é uma mulher livre de preconceitos, muito atenta ao detalhe que a pode favorecer e percebe logo que a Liza, que é a personagem desempenhada pela Sandra Cóias, poderia ser uma presa fácil para o seu pequeno jogo de sedução, uma mulher cheia de carências, que estava a viver um problema conjugal. Ela aproveita-se dessa situação porque é isso que ela faz. Já a cena com o Luís Figo é diferente. Passa-se em Itália, ele é um realizador que está a fazer um casting e a Raquel, claro, não deixa de o seduzir, e faz-lhe um lap dance... (sorri)

Pressenti algum embaraço, enquanto me contava essa história...
A questão é essa... Ela é capaz de coisas que eu não sou, uma mulher que faz de tudo para conseguir o que quer, sem olhar a meios e consequências, nem a quem magoa pelo caminho!
Uma cabra portanto...
Uma cabra, exactamente!

Já lhe aconteceu estar a ver-se num ecrã, e não se reconhecer, pelo menos durante alguns segundos?
Engraçado falar nisso, mas já de facto. Esta personagem é um exemplo disso, mas aconteceu também noutras ocasiões, até porque sou quase sempre a vilã das histórias onde entro!

Regressando aqui um pouco à cena de que mais se tem falado, desde a estreia do filme, e pelo que me dizia, devem ter-se divertido bastante...
Tento explicar às pessoas que é uma cena com uma mulher, feita de uma forma sensual... Nunca sequer cheguei a estar completamente despida! Claro que não é hábito estas cenas acontecerem no cinema português, e calculo que por isso se tenha falado tanto disto! Mas depois da gravação, talvez pela intimidade do momento, ficámos amigas!

Tinha a noção de que este papel, pelo carácter da personagem e pela forma como o assumiu, provavelmente lhe trariam uma notoriedade diferente da que estava habituada?
Sim, tinha essa noção, claro! Quando falamos de preconceitos, cada um tem os seus, claro. Mas se quero ser uma actriz cada vez melhor, não posso levar os meus para a cena, o que só me vai criar limitações. Tenho por princípio que os actores têm de estar preparados para tudo!

Calculo que lhe tenham falado muito de Soraia Chaves nos últimos tempos...
(Sorri) Claro que sim, é natural porque ela entrou em alguns dos filmes mais vistos dos últimos anos. Sem querer entrar em polémicas nem em comparações, eu já fiz alguns outros papéis antes deste e não tenho receio nenhum de fazer este tipo de papéis mais ousados, desde que ache que são adequados para mim enquanto actriz.

E não receia que a partir de agora, a passem a convidar apenas para mostrar o corpo, ou que, de uma outra forma, os espectadores a procurem apenas pelo seu aspecto físico?
Há pessoas que vão ver o filme apenas por causa de uma cena, e há outras que pensam nisto como um todo. Eu tento é fazer o meu trabalho o melhor que posso e sei, com a intenção de aprender, melhorar...

Como é que uma actriz se prepara para uma cena em que vai expor o seu corpo, como o faz neste filme?
O ambiente de gravações é diferente, quando se estão a gravar cenas em que temos de nos expor um pouco mais, o ambiente no estúdio muda, há um certo nervosismo, claro, a equipa é reduzida ao mínimo, para nos proporcionar um maior à vontade, para encontrarmos ângulos seguros para certas partes do nosso corpo...

Sem querer estar a ser moralista, longe disso, como reagiram os seus familiares mais próximos à estreia do filme?
A minha mãe e toda a família já estavam prevenidos e devidamente informados, e devo dizer que nunca tomo uma grande decisão sem a ajuda deles! Já tinha até discutido o guião com a minha mãe e ela sabe que se fosse algo de errado eu nunca o faria. Claro que teve de confiar em mim mas, felizmente, os meus pais percebem que isto é o meu trabalho e felicitaram-me logo no final da antestreia.

E a Liliana, o que acha do filme?
Em termos de fotografia acho que está brutal, assim como a banda sonora. Em apenas quatro dias já ia quase em trinta mil espectadores, o que é muito bom!

Tendo no elenco alguns ´actores` como Carlos Malato, Fátima Lopes, Luís Filipe Borges e Figo, como decorreram as gravações?
Foi uma experiência maravilhosa sabe?! Estiveram todos bem, quer eles, quer os outros colegas que participaram. Trabalhámos durante os meses de Verão, estivemos juntos todo aquele tempo, foi fantástico, ficámos quase todos amigos!

Mas fala-se muito em rivalidades neste mundo artístico, principalmente entre as novas gerações de actores...
Sim, claro que isso existe, até porque faz parte do dia a dia, do nosso e de todos, está relacionado com o quotidiano, mas nada que não se possa ultrapassar...

Tem actores de referência de que goste particularmente?
Gosto muito da Meryl Streep, do Russel Crowe... sei lá... de tantos outros! Vejo muitos filmes, dos clássicos aos mais actuais, é importante para a construção das personagens, para aprender, até porque não tenho uma formação académica de representação e tenho de absorver informação de todo o lado, dos técnicos aos colegas, passando pelo que vejo, por tudo que me rodeia...

E não tendo esse formação de que me fala, é fácil para si separar-se das suas personagens, no final das gravações?
Não, nunca o é, nada mesmo.., Mas opto por guardar o que cada uma tem de bom, e assim mais valias delas passam assim a fazer parte da minha personalidade, enriquecem-me, ajudam-me a crescer.

No caso concreto desta, o que lhe trouxe ela a si, enquanto Liliana Santos?
A segurança na atitude, na postura... Aquela sensualidade feroz provém dessa confiança, e no final, acabei por ficar com um pouco disso em mim, e passei a conhecer-me um pouco melhor.

Mas não se sentia antes, uma mulher sensual?
Acho que podemos ser sensuais de muitas formas, sem isso ser de tal forma explícito, como é na personagem. Sou sensual à minha maneira, de acordo com aquilo que gosto em mim por dentro e por fora.

Mas não me vai dizer que só se preocupa com o interior...
Não, claro que não! Acho que é o conjunto que torna a pessoa bonita, cuido-me por fora, com a alimentação, vou ao ginásio quando posso, mas também nunca me esqueço do interior que se vai igualmente estimando e construindo no dia a dia.

Ao contrário da sua personagem, parece-me mais pragmática, não tão impulsiva...
Depende das situações, sabe?! Há coisas que vamos moderando com a idade, com a aprendizagem... Sou de facto impulsiva, embora tenha aprendido a controlar-me!

Não tem receio da fama?
Temos de pensar que temos de nos valorizar a nós próprios pelo que fazemos, pelo que somos. É bom sentirmo-nos bem quando fazemos algo bom, mas não creio que o caminho seja o de acharmos que somos melhores que o outro, porque ninguém é insubstituível. É difícil o caminho, é preciso ir criando uma base segura para não deitar tudo a perder. O Ruy de Carvalho, a Eunice Muñoz por exemplo, e outros como eles, esses sim, já estão num patamar diferente, só temos a aprender com eles.

O que lhe parece, enquanto actriz, que os filmes mais vistos de sempre do cinema português, como aconteceu em O Crime do Padre Amaro e Call Girl por exemplo, ou como está a acontecer com este Second Life, sejam promovidos com base em cenas mais arrojadas, utilizando o sexo como chamariz do espectadores?
Não tenho nada contra, são apenas estratégias de promoção que resultam! Sabemos que existem determinadas condicionantes que chamam o público às salas de cinema, isso é inquestionável, mas não é apenas um fenómeno português, pelo contrário!

Sei que anda a ter aulas de inglês, é um objectivo para si construir uma carreira internacional?
Gostava, claro que sim, em termos de carreira é algo em que penso, mas ao nível pessoal há laços familiares que me custariam deixar para trás e não sei se alguma vez o irei fazer. É uma questão que decidirei com o passar do tempo.

Consegue encontrar as principais diferenças entre a Liliana que apareceu nos Morangos há quatro anos, e a Liliana de hoje, que aos vinte e oito anos começa a ter um sucesso que se calhar nesse tempo, não esperaria?
Acho que amadureci enquanto pessoa de facto... Quantos mais trabalhos fazemos, mais conhecimentos adquirimos, é assim esta vida, retirando sempre o que é bom, deixando o mau para trás! Mas o que diz, é verdade, não o esperava, de todo. Tudo me aconteceu por acaso, quando estava na faculdade a estudar e me convidaram para um casting dos Morangos. Acabei por ir, durante as férias de Verão, já depois de ter acabado o curso. Quando acabaram as gravações, não pensava continuar, mas passados poucos dias convidaram-me para uma outra novela. E assim começou!

Começou?
Foi nessa altura que descobri verdadeiramente que queria ser actriz, algo em que nunca tinha pensado verdadeiramente, apesar de fazer publicidade e alguns trabalhos de moda desde os quinze anos.

Os Morangos com Açúcar foram a sua rampa de lançamento, assim como de outros colegas seus. Como vê o fenómeno?
Sim, de facto aconteceu comigo, como com tantos outros jovens actores... A verdade é que aquilo acaba por ser um casting aberto ao país, como alguém já disse. As pessoas surgem e depois, algumas acabam por ter a oportunidade de avançar, e isso é bom.

Chegou então a licenciar-se, mas nunca exerceu, é assim?
É de facto verdade, mas acho que também nunca pensei verdadeiramente em fazê-lo! Queria ser professora, investigadora, sei lá...

Actualmente integra o elenco da novela Podia acabar o Mundo, da SIC. Como descreve a sua personagem?
Faço o papel de uma advogada, a Marta, que é extremamente ambiciosa e não olha a meios para atingir os fins. Tem um objectivo muito marcado, subir na vida, e por isso deita-se com o patrão e mantém relacionamentos que lhe tragam vantagens.

Lá está... de novo a vilã!
(Sorri) Não sei de facto porque me convidam normalmente para fazer papeis de má da fita! Não sei mesmo! Talvez porque a primeira personagem que fiz deste género, tenha sido convincente, ou tenham achado que tinha esse perfil, talvez...

Pelo menos, é habitual os actores dizerem que esse tipo de papéis é mais desafiante, o que lhe parece?
Sim, é verdade... É mesmo.

Consegue imaginar-se daqui a dez, quinze anos, com um livro escrito, uma árvore plantada e uma família para criar, ou não é por aí?
Claro que sim, e uma carreira cheia de coisas boas, feitas e por fazer também. A árvore de resto já plantei, um pessegueiro na quinta biológica dos Olivais, e quanto ao livro, bem, também já tenho um, sobre culinária... Adoro cozinhar aliás, o meu domingo mais habitual é passar o dia inteiro ao fogão a fazer bacalhau com broa, cabrito, empada de aves, doces de todo o tipo...! Quanto à família para criar, sim, sem dúvida claro, também quero ter filhos daqui a algum tempo, é um dos meus sonhos.

Aos vinte e oito anos, e sendo uma mulher bonita, já pensou alguma vez sobre os efeitos do tempo e da idade, pessoalmente ou em termos de carreira?
Ainda não pensei muito profundamente sobre isso, de facto, mas talvez sinta de vez em quando, nos aniversários uma certa nostalgia, não sei... Espero evoluir, saber envelhecer com graciosidade, até porque se perdemos por um lado ganhamos de outra forma. Acima de tudo quero continuar a dar valor às coisas boas, mesmo que para isso tenha que passar pelas más, até porque são elas que nos ajudam a valorizar e a dar uma medida certa a tudo o que nos vai acontecendo ao longo da vida.

A apresentação ficou de lado depois do "Factor M" e do TOP + ou gostaria de regressar também a essa área?
Adorei as experiências que tive como apresentadora mas na realidade, descobri que o que me dá mesmo prazer é representar!

Sente-se hoje, uma mulher realizada?
Sinto sim que é isto que quero ser, mas sei que ainda tenho um longo caminho a percorrer, tenho de aperfeiçoar a voz, a expressão corporal, a presença, gostava de experimentar o teatro... Não sei quando isso irá acontecer, nem se alguma vez lá chegarei! E depois, há também a parte pessoal, preciso ainda de viajar, passar uns tempos no Oriente, aprofundar o meu conhecimento de outras culturas, de mim própria, tanta coisa que falta ainda, tanta... Mas apesar de tudo, digo que hoje, sou uma mulher feliz, sim!

É raro ouvir-se dizer isso assim, de forma tão aberta e com esse sorriso...
Sim, eu sei... Naqueles dias em que acordo mais mal disposta, ou sem paciência para nada, obrigo-me a pensar que é um privilégio poder fazer o que gosto e me dá prazer, e penso naquelas pessoas, tantas, que não têm esse privilégio. Tenho de estar agradecida por isso.



Perfil
Liliana Santos nasceu em Lisboa, em Setembro de 1980. Começou como manequim ainda adolescente e só há quatro anos apostou na televisão, e se assumiu enquanto actriz. Depois de ter sido escolhida para assumir a imagem de algumas das maiores marcas portuguesas, entre a publicidade e a ficção o salto tornou-se inevitável. Apesar de se ter estreado como actriz, na série juvenil da TVI, Morangos com Açúcar, em 2005, foi no entanto, nos ecrãs da SIC que Liliana apareceu ao público pela primeira vez, no então reality show, Acorrentados, na altura ainda sem o protagonismo que a levaria, anos mais tarde a regressar aos ecrãs da estação de Carnaxide, englobada no novo projecto de Nuno Santos para o Canal, e na aposta assumida na produção nacional.
Para trás ficaram participações como figurante em Inspector Max, Queridas Feras e Maré Alta, e mais tarde, já como actriz de pleno direito em Ninguém com Tu, Câmara Café, Estranho, Floribella, Chiquititas, Resistirei, Liberdade 21 e em Podia acabar o Mundo que agora lhe ocupa os dias de trabalho.
Estreia-se agora no cinema com Second Life de Alexandre Valente, produtor de Corrupção e Crime do Padre Amaro.

Notícias Sábado, Fevereiro de 2009

Notícias Sábado: A nossa Tropa de Elite


Pela primeira vez, uma equipa de reportagem visitou as cinco unidades que constituem a Unidade Especial de Polícia. A NS mostra-lhe o treino rigoroso, o equipamento ultramoderno, as simulações com fogo real e todos os pormenores do dia a dia da verdadeira tropa de elite portuguesa.



Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


As cancelas estão fechadas ainda. Os últimos instantes da madrugada, na Quinta das Águas Livres, em Belas, o quartel general da Unidade Especial de Polícia, são inundados pelo movimento contínuo de veículos a entrar e a sair. Partem os que estiveram de sobreaviso durante a noite, iniciam o dia, aqueles que se preparam para entrar ao “serviço dos cidadãos”, expressão que se vai repartindo por várias bocas e respostas. Sucedem-se as saudações aos agentes que asseguram a segurança do recinto, “já nos conhecemos todos”, comentam, com o som dos tiros ao longe, a fazer de cortina sonora de fundo, para lá da neblina gelada a que os muitos homens e poucas mulheres que por aqui trabalham já se habituaram por falta de outro remédio, no campo de tiro que mais logo, haveríamos de visitar.
A Unidade Especial de Polícia nunca dorme, mas desperta bem cedo. Criada em 2007 no âmbito da Lei Orgânica da PSP, a UEP inclui sob um mesmo comando, chefiado pelo intendente Augusto Magina da Silva, o Grupo de Operações Especiais, o Corpo de Intervenção (aguardam a transferência para Belas, estando ainda na Ajuda, em Belém), o Centro de Inactivação de Explosivos e Segurança em Subsolo, o Corpo de Segurança Pessoal e o Grupo Operacional Cinotécnico (binómios de agentes e cães). Da sua actividade habitual, consta igualmente o acolhimento a forças especiais de outros países, “numa perspectiva de troca de conhecimentos e experiências, normal entre forças de segurança”, havendo registo e memória de passagens das SÃS inglesas (que deram a formação aos primeiros elementos do GOE na década de oitenta), da Delta Force americana, da GSG-9 da Alemanha, de Unidades Anti-Terroristas da Guardia Civil de Espanha e de Israel, para além da famosa, pelo filme e não só, Tropa de Elite brasileira. “Se gostávamos que um dia que fizessem um filme sobre nós? Aquilo é boa gente, é o que lhe posso dizer, bons companheiros de profissão. Mas o Brasil não é Portugal e além disso, não trabalhamos para aparecer em filmes...”, reitera o comandante.
Esta unidade, e devido às várias forças que concentrou por debaixo da teoria mas também da prática, nos cinquenta hectares da Quinta das Águas Livres, está assim vocacionada para os mais diversos serviços de segurança. Operações de manutenção e restabelecimento da ordem pública, resolução de incidentes críticos, intervenção táctica em situações de violência concertada, segurança de instalações sensíveis e de grandes eventos, segurança pessoal dos membros dos órgãos de soberania e de altas entidades, inactivação de explosivos e segurança em subsolo e aprontamento e projecção de forças para missões internacionais... Por aqui, não há qualquer mal que não tenha remédio, ou pelo menos uma cura menos dolorosa...
Apesar de autónomas, as cinco subunidades podem intervir conjuntamente em qualquer cenário de risco ou, então, o comando pode indicar missões específicas a cada uma das forças, como explica o intendente Magina da Silva, comandante da UEP. “As cinco unidades que já antes eram de qualidade, deram um salto ainda maior resultante da articulação e coordenação que aqui existe. Uma unidade que concentra todas estas forças só tem a ganhar com o facto de estar sob a alçada de um único comando, e no mesmo espaço o que facilita também muito do trabalho de cada uma delas e da coordenação entre todas", sublinha.
Desde que Magina da Silva tomou posse, em Maio do ano passado, a UEP interveio inúmeras vezes. “Sim, quase todos os dias temos trabalho. Depende das ocorrências”, considera.
A mais falada de todas, terá sido, porventura, a noite longa do assalto à dependência do Banco Espírito Santo de Campolide, em Lisboa. Oito horas de espera, muitos nervos, suor, lágrimas e... sangue, num final de noite que elevou a UEP, os snipers e os negociadores, à categoria de heróis conhecidos do grande público. “É verdade que se calhar, e pela exposição mediática do caso, acabou por se falar muito de nós nessa noite. Mas como verão, o treino prepara os homens para momentos de stress como aqueles, e acabam por encarar todas as situações em que se vêm envolvidos com o mesmo espírito e mentalidade. Quanto a essa noite em particular, não podemos falar muito sobre isso que está em segredo de justiça, mas o que é facto é que o trabalho foi cumprido, com uma perda humana que se lamenta sempre, mas assinalando que o objectivo principal foi atingido, e os reféns foram libertados”, assinala.

Sete e meia da manhã. Está na hora da formatura da mais famosa unidade de segurança portuguesa. Nas fardas pretas encobertas pelos coletes à prova de bala, assinaladas com a identificação numérica de cada um dos seus setenta e quatro elementos, podem ler-se as iniciais que a baptizam. O GOE, Grupo de Operações especiais, que completa agora trinta anos de existência, teve origem no Corpo de Intervenção da PSP, apesar de só ter começado a actuar em cenários reais, apenas em finais de 1982. De então para cá, desde a primeira missão, ainda em 1983, quando um Comando Arménio, usando carros alugados, invadiu a residência do embaixador da Turquia matando um agente da PSP que fazia parte da equipa de segurança da embaixada, ordenada pelo então primeiro-ministro Mário Soares, actuaram em centenas de cenários de perigo, em Portugal e no exterior. Desse tempo, no entanto, já restam poucos. “Sim, a média de idades está entre os vinte e os trinta anos. Muitos deles, transferem-se depois para outras unidades, onde utilizam a experiência que adquiriram aqui para outro tipo de missões”, explica o comissário Malheiro, um dos responsáveis pela unidade.
Não são de muitas palavras, nem podem, por razões de segurança, revelar os traços da identidade. Não abdicam por isso, das máscaras negras, “por esse motivo, mas também uma questão de impacto visual, também”, explica-se. Medo, é igualmente uma palavra que por aqui não se pronuncia, silenciada pelo estrépito ensurdecedor das pistolas-metralhadoras, HK MP-5, com que se fazem acompanhar durante a maior parte do tempo. “Estão aqui apenas os melhores, provenientes de outras forças especiais, que são treinados apenas para actuarem em cenários de perigo eminente para os cidadãos. Rituais?! Carregar as armas, algo que só fazemos quando estamos na carrinha, a caminho do serviço”, complementa.
O treino físico é regular e intenso. Caminhadas, natação, percursos de risco, passagem de liana em liana, escalada de imóveis, exercícios de descida rápida de helicópteros, rappel e ginásio. Depois dos treinos físicos da manhã, hoje o grupo é dividido pelas várias salas do ginásio, em que se pratica um misto de artes marciais que vai do Krav Maga ao Kickboxing. Mais tarde, um treino com fogo real, para aguçar os sentidos e despertar os reflexos. O intendente Magina presencia o exercício, que se passa num armazém que se parece quase como um estúdio de televisão, em que as divisões não têm tecto, e que, visto de cima, proporciona o acompanhamento de toda a acção que se desenrola debaixo dos nossos pés. “Neste caso, existem reféns dentro da casa e temos de os resgatar”, explica Silvestre, outro dos comandantes da Unidade. Depois da primeira explosão, do lançamento de gás para confundir os potenciais perpetradores, de muitos tiros, e portas arrombadas, conseguem fazê-lo, sem danos visíveis para os desenhos de pessoas inocentes que preenchiam os recantos do cenário. E recomeça tudo uma outra vez, “para que se eliminem as falhas, e se corrijam os erros”, ouve-se.
Os atiradores de precisão, mais conhecidos por snipers, não estão no entanto por aqui. Olhando com mais atenção para o segundo andar de um dos edifícios da quinta, consegue ver-se uma mira telescópica, apontando para um alvo a duzentos metros. Mais de perto percebe-se. Ocuparam um dos pisos, equiparam-no com redes e camuflagens próprias de uma qualquer situação real de perigo público em que tivessem de intervir sem serem detectados. Permanecem deitados, têm medidores de distância, da intensidade do vento, estão serenos, sem no entanto retirar o indicador do gatilho, ou o olhar da mira. Não emitem um único som, sequer audível a curta distância, e quase nem se pressente a sua respiração. “Durante o curso, procuramos determinadas características em cada um deles, para que no final, sejam incluídos de acordo com as suas capacidades e as nossas necessidades um determinado serviço. Para se ser um atirador de precisão são necessárias algumas capacidades inatas, para além da boa pontaria. A paciência e a concentração são determinantes em cenários de elevada pressão psicológica para quem tem esta responsabilidade”, explica o comissário Malheiro.
“Se já matei? Sim já aconteceu. Mas não podemos ficar a pensar muito nisso, faz parte do trabalho e estamos organizados enquanto grupo para superar todas essas coisas, para não ficarem marcas em nenhum de nós”, explica um dos atiradores, segundos antes de disparar, e atingir com sucesso, o alvo, a mais de duzentos e cinquenta metros.
Na rua, uma outra demonstração se vai preparando, menos bélica, como se pressente pela forma comos as coisas se preparam, assim como pelos elementos envolvidos. Cabelos grisalhos, caras destapadas, comunicação directa, com o olhar, com a palavra, com os gestos. São os sete investigadores do núcelo central de investigação, que pertence também ao GOE. Chegam entretanto duas carrinhas que parecem estúdios de realização sobre rodas, equipadas com câmaras, e antenas de transmissão por satélite. “São os veículos de negociação”, apontam, explicando ser ali, nas cadeiras, em frente aos vários televisores, telefones, e quadros de apontamentos, que este grupo de homens, na casa dos quarenta anos, costuma passar horas “intermináveis, mas que quase sempre resultam bem”, recordam com orgulho. Não se podem identificar, mas explicam o seu trabalho, sem grandes problemas em desvelar segredos profissionais que possam ajudar os criminosos. “Não somos psicólogos como tanta gente pensa... Andamos é há muitos anos nisto! Obviamente que há certos truques, mas cada caso é um caso. Normalmente entramos nós primeiro em contacto com o sequestrador. Depois, levamos-lhe um telefone, comunicamos, mantemos a comunicação.... Como já todos passámos pelo GOE e estivemos no terreno, tentamos facilitar o trabalho deles, e em grande parte das situações nem é preciso recorrer à força ”, adverte Faria, há 25 anos na PSP, negociador há três.

Será porventura a mais romanceada imagem de força policial que existe. Cabelos curtos, bem penteados com gel, óculos escuros que não deixam descobrir para onde se direcciona o olhar, fato ou tailleur (para as agentes, que existem nesta unidade, ao contrário de todas as outras) bem aprumados. O Corpo de Segurança Pessoal da PSP aparenta-se com a imagem ficcional dos guarda costas, mas apenas durante breves segundos, até os canos das armas começarem a flamejar, despejando fogo contra o inimigo em forma de alvo estático. “Este exercício, entre muitos outros, tem o objectivo de os focalizar para a protecção de entidades públicas de importância de Estado”. O chefe Teixeira, que lidera a unidade, explica o exercício aos homens que hoje vieram praticar. No total, são mais de duzentos e setenta os operacionais, que se dividem entre as mais variadas tarefas de protecção e acompanhamento de individualidades. “Nem todos andam assim vestidos, depende da ocasião. Podem estar a acompanhar o primeiro ministro, ou o presidente da republica, por exemplo, mas se estiverem a proteger uma testemunha num processo judicial, não se trajam assim, adequam-se à circunstância porque a descrição é fundamental neste tipo de actuação”.
Alguns veículos de alta cilindrada, pertença da unidade, aproximam-se. “Estamos a simular o ataque a viaturas oficiais”. De repente, um tiro furtivo impulsiona a adrenalina, tomam posições esquematizadas durante a formação, e retribuem o fogo, retomam aos veículos, e abandonam a cena, a grande velocidade. Poucos segundos depois, do sucedido, apenas cápsulas de bala esmiuçadas (trabalha-se sempre com munição real), e marcas de borracha queimada no asfalto. “Receio?! Somos carne para canhão, treinamos para nos esquecermos de nós, e nos preocuparmos apenas com a integridade plena da pessoa que nos destinaram proteger... Bom trabalho”, solta, em direcção aos seus homens.

“Se tudo se resumisse ao famosos fios vermelho e preto, não seria preciso andarmos tantos anos a aprender e a praticar para fazer isto não é?!”. O tom humorado pertence ao chefe Soares, quando fala do “seu” Centro de Inactivação de Explosivos e Segurança em Subsolo, que reúne dez homens que conhecem explosivos, químicos, ameaças radioactivas em terra e no mar, como se da própria família se tratassem. Perigos com que afinal acabam por ter de lidar diariamente aqui, durante os testes, “para conhecermos aquilo que podemos ter de encontrar na realidade, o que mais tarde ou mais cedo acontecerá. Claro que todo este risco, esta profissão, não é a que um miúdo sonha quando está a brincar com os amigos, mas alguém tem de o fazer, e sentimo-nos bem por sermos nós”.
Dos equipamentos utilizados, ressalta um fato em kevlar, material resistente ao fogo, que pesa mais de cinquenta quilos, utilizado para desactivar engenhos explosivos, e a menina dos olhos da equipa, um robot ultramoderno de mais de 150 mil euros, que assume a dianteira da missão, sempre que o caso se afigura mais complicado. “Sim, é verdade, entra em todo o lado, tem três câmaras que nos permitem acompanhar tudo como se estivéssemos lá, um braço mecânico extensível para ter contacto com o engenho, e acaba também por ser uma forma de precaver a segurança dos nossos homens porque podemos fazer tudo a uma distância segura”, explica, enquanto vai demonstrando, através do controlo remoto, como funciona o dispositivo.

“Busca”. As palavras mais associadas aos cães, fazem-se também acompanhar de outras. Salvamento, recuperação de pessoas, detecção de armas, explosivos e estupefacientes. O Grupo Operacional Cinotécnico, comandado pelo sub-intendente Fernando Pacheco, extravasa as relações humanas até ao mundo animal. Se o cão é conhecido como o melhor amigo do homem, é também reconhecido como o melhor ajudante dos polícias. Há sete anos ligado ao GOC, não são ocasionais os momentos em que depois de um exercício reconhece ser “um admirador confesso destes animais”, comenta, enquanto se preparam algumas demonstrações das suas potencialidades que, não raras vezes, acabam por atrair espectadores de outras unidades, a fazerem de plateia ocasional às habilidades dos agentes caninos. “Um cão destes, trabalha connosco desde pequeno, até aos oito, nove anos. Depois, vai para a reforma, é oferecido ao tratador, ou a outro membro da polícia. Reconhecemo-los como parceiros no nosso trabalho, proporcionamos-lhes carinho, respeito, e acompanhamos a evolução da sua personalidade o que também acaba por depender um pouco da raça. Temos pastores belgas e alemães, para patrulha e ordem publica, retrivers labradores para farejar, e por aí fora... Embora a raça não seja essencial para o tipo de trabalho que melhor sabem fazer, há condicionantes genéticas de cada espécie que facilitam uma melhor aprendizagem do serviço e temos de ter isso em conta logo desde o momento em que os começamos a treinar, avaliar aquilo em que o cão é melhor”.
Ao redor da nossa conversa, todos os cães estão sentados ao lado do tratador, serenos, apesar de nos olharem com alguma desconfiança. De vez em quando impacientam-se, e começam a ladrar, demonstrando uma ferocidade que, com a ausência de trela se tornaria... complicada, ou até dolorosa. “Não, nada disso! Você olhou-o foi nos olhos e ele não gosta. Está na casa dele, no seu território, e com a personalidade que estes cães adquirem não gostam nada que venham aqui olhá-los de frente... Não se preocupe que eles só atacam quando lhes dizemos para o fazer”. O agente Rui Troca, acompanhado do seu pastor belga Malinois, o Peters que não retira os olhos de cima de nós, decide então aliviar-lhe a energia, e pô-lo a correr. “Estou com ele há alguns anos já... Acabamos por desenvolver uma relação de respeito um pelo outro porque evoluímos e aprendemos um com o outro”. Depois, sim, uma demonstração das suas capacidades, para além do ladrar, que já se tinha mostrado tão estridente, quanto dissuasor... “Temos estado a trabalhá-los recentemente para detectarem armas de fogo, o que não se fazia até há bem pouco tempo”, explicam-nos. E ele fá-lo, em poucos segundos apenas, começando a patinhar na zona do porta luvas, onde o revolver tinha sido previamente escondido. E seguem-se outros, encontram tudo aquilo para o que foram treinados, e recebem sempre um prémio no final, uma espécie de saco almofadado, que é atirado e que ele aproveita para morder e libertar a tensão. “Faz parte do treino e da nossa forma de os entender e acarinhar, dar-lhes este brinde no final, para eles libertarem a adrenalina e descomprimirem”, releva Fernando Pacheco.

Acção musculada... Sinónimo de Corpo de Intervenção, apesar da associação não ser inteiramente do agrado do comandante Ferreira, que lidera a sub-unidade há cinco meses. Aos trinta e sete anos, e proveniente do Centro de Inactivação de Explosivos e Segurança, reconhece ser essa uma das atribuições primordiais do CI, mas não só. “Ao contrário do que a maioria das pessoas pensam não andamos aqui para bater, mas para manter a ordem pública. Já houve casos, e isso é natural, em que temos de entrar em acção, sempre com atenção e na proporção exigida pela medida do problema para o qual somos solicitados a intervir”, esclarece. Os cerca de seiscentos agentes que integram a unidade, ainda situada na Ajuda, em Belém, “enquanto não se finalizam os preparativos para o já previsto deslocamento da base para Belas, juntando-se às outras unidades da UEP”, cumprem assim a rotina habitual, entre o ginásio, a formação, e os diversos treinos, da luta corpo a corpo à prática de tiro (apesar de apenas utilizarem, mesmo em cenário real, balas de borracha). “Nem sempre as nossas rotinas, são assim tão rotineiras, porque temos de estar sempre de prevenção com um grupo constantemente preparado para sair para a rua”.
Não existem mulheres no corpo de intervenção. “Não é proibida, claro que não, a entrada de mulheres. O que acontece é que já há muito poucas candidatas, creio que houve apenas uma ou duas até hoje a terminarem o curso. Depois, não estabelecemos, e creio que isso se passa aqui e em todas as subunidades, critérios diferentes para homens e mulheres, todos têm de possuir os mesmos requisitos para serem inseridos nas várias equipas”.
Na formação de final de tarde, toda a unidade se junta na praça principal do aquartelamento. Os escudos em plástico reforçado, as viseiras protectoras, os capacetes negros e todas as protecções brilham enquanto o sol se pões sobre o Tejo, numa imagem serena, tranquila, contrastante com o poder do momento visual. “Como vejo tudo isto? É um serviço para os cidadãos, é o nosso trabalho e gostamos de o fazer bem”.



Caixa:

Destaques:

Factos dos GOE
O GOE hoje é um dos grupos anti-terroristas mais eficazes de todo o mundo. Nas várias provas em que participou, em conjunto outras forças especiais ocidentais, em 50 grupos que participantes, ficou em 4º lugar.

Depois de ter passado os testes físicos, de aptidão, tiro e luta corpo a corpo, o voluntário enfrenta um período de treino de 8 meses. O recrutamento tem lugar de dois em dois anos. Em média, de entre mil voluntários, apenas vinte finalizam o curso como elementos operacionais.

Duas vezes por ano, submetem-se a testes físicos e psíquicos para aferir da manutenção das capacidades para permanecer no seio da unidade.

O seu treino mais famoso é o Face a Face. Dois grupos de homens, frente a frente, e com uma distância de dois metros do parceiro do lado. No intervalo, um alvo que, ao sinal de fogo, é alvejado pelo colega do lado oposto. O interesse do exercício é o de que “permite verificar o auto-controlo de cada um, e treinar para uma operação de tiro cruzado”, explica Magina da Silva.

Notícias Sábado, Janeiro de 2009

Notícias Sábado: Duplos à portuguesa



Nunca se lhes vêm as caras e se passar por eles na rua, não os reconhecerá. São homens e mulheres que não gostam do perigo real, mas que têm de conviver com ele para poder trabalhar. Arriscar a vida para a poder ganhar, procurando nos seus limites a melhor proeza visual possível.


Texto
Pedro Coimbra do Amaral
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


No ruído ensurdecedor de travões a roçar no alcatrão quente, por entre a nuvem de poeira que se forma e o extremo odor a borracha queimada que paira no ar... Os vidros partidos na alta rotação de um carro virado do avesso, encostado de pernas para o ar de encontro a uma árvore que não estava prevista no guião mas que tornou a cena ainda mais bem conseguida. Aplausos da equipa de produção. Expira-se fundo por fim, depois de segundos de silêncio expectante. A porta de chapa amassada abre-se. “Mais uma, já está”.
Último episódio da novela Resistirei. Sérgio Grilo, duplo profissional “desde o berço”, é o condutor do Wolksagen Golf comprado propositadamente para ser capotado. “Já teve o seu momento de televisão”, sorri, enquanto lhe dá umas palmadas no chassis amolgado. Sérgio também. Todos lhe dão os parabéns, até os actores pararam para ver a cena, a mais marcante da novela, em termos visuais. Apesar disso, e depois da edição, ninguém o irá reconhecer. “Apesar de também ser actor e fazer publicidade, aqui estou noutro papel. Neste caso, o meu trabalho é apenas proporcionar ao realizador aquilo que ele me pediu, tornar a cena o mais espectacular possível, com o menor risco para mim”.

Atílio Silva é o pioneiro da figuração especializada em Portugal. Sérgio é... o seu filho. “Ele vai bem, vai sim senhor...”, comenta com um sorriso feito de orgulho, o maior duplo português de todos os tempos.
Antigo fuzileiro, ferido em combate por terras africanas, aos dezanove anos tornou-se intérprete e condutor de carros de luxo na Hertz. Convidaram-no para chefiar uma frota na Austrália. Foi e por lá ficou durante quinze anos. “Alugávamos uns veículos para filmes americanos que estavam a fazer lá perto. Quando fui às filmagens o coordenador pôs-me a experimentar e achou que fiquei perto. Depois, fiz o curso e nunca mais parei”. Participou então em filmes de sucesso, séries premiadas, como ‘Sangue e Honra’, ou os famosos ‘Mad Max I e II’ pela New Generation of Stunts, que pertencia a Mel Gibson. “Eram outros tempos, havia segurança mas não existiam os meios que há agora. Sempre fui um bocado aventureiro, fiei-me na sorte vezes de mais, isso custou-me algumas coisas, mas ganhei outras”, conta.
Foi por causa de uma dessas aventuras que acabou por regressar a Portugal. “Bati numa rocha e parti a perna em nove sítios! Vim então para cá e abri a Charlot Filmes. Porquê este nome? Porque ele foi o primeiro duplo de si próprio e sempre fui um admirador seu”.
Aos cinquenta e oito anos, os mais de mil atropelamentos e quedas de penhascos, foram-lhe preenchendo uma ficha clínica tão extensa no papel, como nas cicatrizes que lhe ficaram marcadas pelo corpo. Um pé infectado devido a má irrigação, dois AVC , uma operação à aorta, e outras tantas maleitas cujos resquícios ainda hoje lhe apoquentam a rotina diária, agora mais serena. “tem de ser não é?!”. Com mais de trinta e sete anos de carreira, reformou-se há cerca de dois, depois de coordenar ‘O Filme da Treta’ mas continua ligado à empresa que fundou há 18 anos. “Adorava esta vida sabe?”, explica com saudade na voz, o decano dos duplos em Portugal.
Sérgio sorri. Seguiu-lhe as passadas e agora lidera o negócio da família. “Hoje já conseguimos viver disto sim, apesar não sermos uma equipa muito grande, cerca de seis homens e duas mulheres, estas em part-time”. O pai interrompe. “Ele é mais organizado que eu, e lida bem com os realizadores, é bom coordenador”. Quanto a Atílio, dedica-se à gestão da e nos tempos livres vai dando formação aos jovens que querem dar os ossos ao conhecimento do ofício.
Mulher de armas. A “dobragem” de actores e actrizes é a parte mais tranquila do trabalho de um figurante especializado. “Depende do papel”, interrompe. Em Call Girl, Ana Margarette “fez” de Soraia Chaves, não nas cenas mais picantes, mas nas sequências de maior arrojo e audácia. Agora com 24 anos, desde os dez que se tornou perita em lançar-se de escadas, atirar-se de penhascos, ou simplesmente “dar uns murros quando é preciso”, humoriza a professora de informática e barmaid em part-time. “Conheço o Atílio e o Sérgio da minha rua. Precisavam de uma miúda assim mexida e sem grandes medos e fui ficando” . “Ela é terrível”, graceja Atílio. “Medo? Só durante uns segundos, antes de ouvir a palavra ´Acção`”, conta.
Segurança. Em “A Sombra dos Abutres”, começou outro nome conhecido no mundo dos duplos, João Gaspar. Na realidade, só existem em Portugal duas empresas profissionais (vivem exclusivamente da actividade) de figuração especializada. A Charlot Filmes e a B.I., JG Duplos, empresa de João Gaspar que trabalha com Teresa Leal, sua mulher e “braço direito” que também vai dando uma “perninha” na profissão que o marido escolheu há mais de quinze anos. “Fiz o curso de duplos com ele em Seattle, trabalhei na área da produção. Há alguns anos decidi entrar nisto com ele, e trato mais dos detalhes relacionados com a produção, apesar de também fazer algumas cenas” conta. João Gaspar é há anos, um dos duplos mais requisitados do meio audiovisual português. Tem até um curso pela renomada United Stuntemen’s Association, em 2004. “Decidi fazer essa formação por uma questão de actualização de conhecimentos, de troca de experiências que é sempre importante nesta área”.
“Calculamos o abismo, procuramos o limite, mas sempre longe ao perigo”. Apaixonado pela escalada, começou como assistente de realização passo primeiro que o empurraria, há década e meia para o mundo do audiovisual. “Essa experiência é importante porque aqui procuramos proporcionar veracidade às situações do ponto de vista da câmara. Posso dar-lhe um murro verdadeiro que pode não parecer real se filmado... A arte aqui é fazer o contrário, ou seja, não o magoar, mas fazer parecer que foi realmente um impacto violento”, explica.
Atropelamentos, explosões, homens em chamas. Já fez de tudo, ou...quase tudo. “Todas essas coisas se podem fazer, mas requerem um estudo prévio do que se quer, do que se pode ter, dos meios existentes, do orçamento disponível... Uma coisa é que não dispenso nunca, a segurança, a minha e a das pessoas que trabalham comigo, porque têm de confiar em mim para se poderem entregar completamente à cena, a sorte não é para aqui chamada”

A palavra “segurança” surge inúmeras vezes no seu discurso. Orgulha-se das poucas lesões sofridas ao longo da carreira, e não gosta mesmo nada da habitual metáfora da “carne para canhão” que, invariavelmente acaba por aparecer, sempre que os duplos são assunto. “Prefiro recordar as cenas mais espectaculares, ao contrário das cicatrizes e dos ossos partidos, porque andamos aqui não para nos aleijar! Repare, se tiver de ser operado tenho de estar não sei quanto tempo sem ganhar dinheiro e não me posso dar a esse luxo”.
Gravação de “Casos da Vida”, série da TVI. São quase quatro horas da manhã e a equipa de produção continua a gravar os diversos takes de uma cena para a qual foi contratada a empresa de João Gaspar. O guião explica um atropelamento de uma criança de seis anos que caminha à beira da estrada acompanhada da sua mãe. A cara que aparecerá na filmagem será a da actriz Sofia Grilo, cuja filha, será atropelada por um Ricardo Carriço descontrolado ao volante. Na realidade, as coisas são bem diferentes. Daniela Macário, devidamente caracterizada, será a mãe que se atirará de uma ribanceira atrás da filha, que é na realidade...um crash test dummie. Quanto a Ricardo Carriço, nem sequer pega no carro, sendo substituído na cena por um duplo perito em condução defensiva.
Casada com Pedro Borges, um outro figurante especializado da Gen 21, uma empresa de duplos do Algarve que costuma trabalhar com João Gaspar, sempre gostou de desporto desde pequena. Da natação às artes marciais, passando pelo curso que está a concluir, “quem corre por gosto não cansa não é?!”, Daniela ainda tem tempo para se dedicar a “estas aventuras”. “Em casa?! Somos um casal normal, não andamos lá a fazer acrobacias. Na universidade é que me estão sempre a perguntar como é, se não me magoo, há uma grande curiosidade por parte das pessoas, ainda por cima sendo mulher”, lança com um sorriso. “Gosto desta vida, da aventura, não gosto de aparecer, nem quero ser reconhecida na rua, não tenho feitio para isso”, vai dizendo enquanto a preparam para se assemelhar com a actriz que vai “dobrar”.
João não vai entrar na cena. Reúne a equipa, dá as últimas instruções a cada um, mantém contacto permanente com o realizador “Trabalho com uma série de pessoas, peritos em acrobacias motorizadas e outro tipo de modalidades especializadas, consoante o serviço pedido e as especificidades da cena que teremos de fazer”, explica. “O nosso mercado não permite que haja duplos especializados, como nos Estados Unidos por exemplo, só em quedas ou em cenas de luta por isso temos de ir fazendo um pouco de tudo e recorrer ao know how que existe por aí. Gosto deste trabalho de coordenação de duplos. Quando corre tudo bem regressamos a casa felizes, bebemos um copo se não estivermos demasiadamente cansados ou moídos. É uma boa vida”.
Mercado a crescer, ou nem por isso... Depois de esgotado o filão das produções estrangeiras que escolhiam Portugal como cenário nos anos 90, o aparecimento em força da produção nacional nos últimos anos faria prever um crescimento do número e da qualidade deste tipo de trabalhos. “Com os filmes franceses que vinham cá rodar nos anos 90 ganhava-se bem, mas deixaram de vir, e hoje fazemos muita produção nacional, publicidade, filmes, novelas. No entanto é raro fazerem-se grandes cenas, porque são normalmente muito caras ainda para a nossa realidade”, explica Sérgio Grilo. João Gaspar tem a mesma opinião. “Pode parecer que há mais produção mas em Portugal as coisas ainda custam um pouco a andar. Na maioria dos casos há pouco dinheiro para investir em sequências de acção, falta uma série ou mais cinema que siga por este caminho, porque afinal, se reparar, as cenas que fazemos acabam sempre por ser as que servem de veículo promocional, por serem mais espectaculares, para chamarem espectadores”.
Apesar desta realidade, novos grupos de duplos vão aparecendo e conquistando cada vez mais trabalho apesar de ainda não se poderem dedicar exclusivamente à actividade, enquanto profissão de tempo inteiro. A Stunts & Co. Duplos e Figurantes Especializados, uma ´unidade` de cerca de vinte elementos constituída por antigos militares que procuram tornar a ficção muito mais próxima da realidade, nasceu durante a novela ‘Desencontros’, em 1993. Há um ano criaram a Associação de Duplos e Figurantes Especializados. Manuseio de armas, habilidades de artes marciais, passos de hip-hop ou acrobacias de ginástica e formação de actores para sequências de acção pura e dura. Nicolau Breyner escolheu-os para formarem Pedro Lima e Sofia Aparício, actores do seu primeiro filme enquanto realizador, ‘Contrato’, a estrear ainda este ano. “Colaboramos fisicamente ou apenas em termos coreográficos em cenas policiais, militares ou de combate corpo a corpo. Mas também damos formação a actores e figurantes para qualquer tipo de cena de acção, algo em que estamos agora a apostar com muita força. Depois é o trivial, conduzimos veículos ligeiros, motos e pesados com arrojo e audácia. Alugamos adereços do nosso guarda-roupa para cenas de polícia ou de forças especiais e também prestamos consultoria às produtoras, em armamento, tácticas de combate e outras coisas que nos peçam”, releva um dos responsáveis pela equipa”, explica Nuno Arrojado, um dos fundadores da Associação.
Vida...dupla. Para lá das luzes da luzes da ribalta, é muito provável que já se tenha deparado com um duplo português num restaurante, num supermercado ou num qualquer departamento do Metropolitano de Lisboa. É o caso de Nuno Arrojado. E se existem casos em que o nome próprio de alguém se ajusta à personalidade ou actividade da pessoa, este é um deles. “Pois... Dizem-mo várias vezes!”, graceja. No entanto, o humor esbate-se quando se fala na fama e na fortuna, esperanças vãs que não podem ainda acarretar, pelo menos para já. “À parte da empresa do Atílio Silva que é o nosso mestre e referência nacional e que devido à sua carreira e grande experiência consegue viver desta actividade, e do João (Gaspar) que também o faz, é ainda impensável viver só disto porque o mercado não comporta muita gente nem grandes despesas com pessoas e feitos especiais, isto apesar de termos essa vontade e de estarmos agora a apostar em especialistas em artes marciais para futuras produções”, assinala.
A opinião é perfilhada por outro dos fundadores da Stunts, o topógrafo Filipe Carvalho. “Como em tudo o resto neste país, falta dinheiro!. Não podemos trabalhar ao preço dos figurantes dos programas da manhã. Se nos pedem coisas mais complicadas, isso custa dinheiro e os agentes do meio não têm por vezes a consciência do que é preciso para se fazer aquilo que nos pedem, com os materiais mais adequados, e em segurança. Se tenho o sonho de viver apenas disto? Isso seria mesmo perfeito, mas até lá vamos fazendo o que podemos”, assinala.
Nuno sorri. “Se gostaria que o meu filho fosse um duplo? Ainda só tem dois anos! Posso-lhe dizer que preferia que ele andasse aqui com segurança do que em outras coisas mais arriscadas, como andar na estrada por exemplo! Mas já o trago de vez em quando para os treinos e ele gosta de andar para aí aos saltos, será um sinal?”.

Efeitos especiais. Ricardo Reynaud é um dos técnicos de efeitos especiais que mais aparece na ficha técnica de muitas produções portuguesas. “Costumo testar os materiais e os efeitos num armazém. Depois é por em prática seguindo os resultados, aprendendo com os erros. Se uma bolsa de sangue não arrebenta, ou se por exemplo uma explosão não deflagra, perdemos tempo e dinheiro e isso é coisa que nesta área não existe assim com tanta abundância”, humoriza.
Enquanto fala, mostra as várias caixas de ferramentas forradas de adereços que encheriam de curiosidade os mais fanáticos pelas aventuras de bastidores do cinema de acção. “Compro os materiais a um fornecedor inglês credenciado para este tipo de finalidade e como não existem no nosso país muitos técnicos deste ramo, acabo por ter bastante trabalho”. Alguns dos seus trabalhos mais visíveis aconteceram em Vingança, Deixa-me Amar ou no Max e, na sua perspectiva, a tendência é de melhoria. “Começam cada vez mais a surgir produções com cada vez maiores ideias. Ainda agora num filme português, tive de fazer um dragão deitar fogo pela boca, e incendiar o braço de um dos actores! E tudo com segurança para ninguém se magoar”, recorda.
Começa muitas vezes aí o trabalho de proximidade com os duplos, alguns com quem já convive profissionalmente há “muitos” anos. “Normalmente o corpo em chamas, o tiro de pólvora seca, a explosão, passa-se ou com eles a darem o corpo ao manifesto! Por isso é que temos de trabalhar quase sempre em conjunto, passar horas a planear para que ninguém se magoe e possamos ir todos para casa ao final do dia felizes da vida”.



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Factos

. A primeira cena de um duplo já tem mais de um século de existência e aconteceu no primeiro western da história. Foi uma queda de cavalo no filme O Grande Assalto ao Comboio, de 1903.
. Rémy Julienne, destacado “louco” pelo rallycross e campeão francês de motocross é ainda hoje considerado pelos seus pares como o maior duplo de cenas com automóveis da história do cinema. Participou em mais de 100 filmes, incluindo seis ‘James Bond’. Os dois filhos Dominic e Michel seguiram-lhe as pisadas e tornaram-se também eles figurantes especializados.
. No mercado hollywoodesco, as remunerações chegam aos milhares de euros por produção e existem até cerimónias anuais criadas para distinguir as melhores acrobacias, as sequências de acção mais realistas, os maiores saltos e os profissionais mais completos do ramo. Fala-se mesmo há alguns anos numa nova categoria inserida na cerimónia dos Óscares que os distinga.
. Em Portugal, e dependendo do tipo de cena efectuada, um duplo ganha em média, cerca de 500 euros por dia de trabalho.

Notícias Sábado, Janeiro de 2009