outubro 26, 2005

Eternidade do Efémero


Escreve quando sente que tem de o fazer, à mão, como sempre. Foi jornalista, professor, e gosta de nadar desde que aprendeu no rio Ardila do seu Alentejo, ainda criança.
Após meio século debruçado sobre o papel, libertando a tinta nas palavras, e as ideias, os sonhos, em cada letra, Urbano sobrevive semeador de sensações, comunista sem ilusões, insubmisso desenhador de brisas fátuas, nas Máscaras Finais de uma Terra Ocupada só por si. Apesar da Hora de Incertezas, Nunca Diremos Quem Sois, mas nesta Estação Doirada que é a vida, reconhecemos quem É.

Onde escreveu pela primeira vez?
Foi precisamente em Moura, vila alentejana onde nasci, e que é para mim uma das mais belas terras do mundo, com o castelo, a mouraria…marcou a minha vida… lá escrevi a pela primeira vez, uma história de índios e cowboys, que acabei por deitar fora!
Aos 12 anos, vim para Lisboa, embora continuasse a ir para lá durante as férias de Natal e da Páscoa, e foi aliás num destes períodos que escrevi Bastardos do Sol, o meu primeiro romance, curioso…Lembro-me perfeitamente, era princípio de Verão, demorei 20 dias a escreve-lo, comecei em Moura e acabei em Sines, já noutro Alentejo.

E quando deixou de deitar para o lixo o que escrevia?
Por volta dos 17 anos, comecei a escrever coisas que guardei, mas também tive a sorte de encontrar um fantástico professor, que se tornou depois meu amigo, Jacinto do Prado Coelho, que me aconselhou e encaminhou e publicou o meu primeiro livro. Precisava desse estímulo, de alguém que me dissesse: “Você tem talento. Ainda está verde, ainda tem de descobrir tanta coisa, mas continue, que o seu caminho é esse!”. Devo-lhe muito.

Provavelmente, essa visão do mais nobre dos espíritos da docência tê-lo-á também encaminhado para vir a ser professor anos mais tarde, e porventura cumprir esse papel de “tutor literário” com alguns dos seus alunos?
Certamente que sim. Comecei como assistente do Vitorino Nemésio em Literatura Portuguesa. Depois ele foi para o Brasil e eu fiquei como regente dessa disciplina, o que me dava um bom ordenado para a época.
Há antigos alunos meus, como o João Rui Freire, a Joana Gorjão Henriques, hoje redactora do Público, e alguns outros que eu gosto de pensar que ajudei a revelar, sim.

Mas, por questões políticas, essa fase durou pouco tempo…
Com a campanha de Humberto Delgado, fui afastado, e acabei mesmo por ser proibido de ensinar, e só regressei à actividade com o 25 de Abril.

E depois dessa longa e negra cortina de repressão, como recebeu o 25 de Abril, como O Dia Último e o Primeiro, história que publicou em A Estação Dourada?
Esse era uma espécie de conto, que falava do fim de um romance de dois jovens enamorados, precisamente no dia 25 de Abril. Na realidade, esse foi um dia lindíssimo. Não só o vivi com uma grande alegria mas com um grande empenhamento. Recuando um pouco, trabalhava em dois jornais, no Diário de Lisboa e no Século, onde era o redactor da noite, o que fez com que estivesse muito próximo de tudo o que aconteceu. Eram três da manhã, fiz a barba à pressa e fui a correr para o Rádio Clube, e depois para a Rua do Arsenal, onde estive com as tropas, e depois para o Carmo, onde abracei tanta gente que não conhecia, e onde esperávamos todos pela transformação de que precisávamos.

Imaginou, nessas horas, o que seríamos hoje?
O que vejo, é que chegámos a um ponto em que estamos completamente dependentes da Europa. Hoje seria impossível uma coisa como o 25 de Abril em qualquer país da União Europeia.
Atravessamos uma situação preocupante… Não sou nenhuma Padeira de Aljubarrota, mas não consigo aceitar de animo leve a simples sugestão que por aí se vai configurando, de um estado Ibérico. Há uma insurreição dentro de mim quando penso nisto. Mas a verdade é que economicamente dominam Portugal…

E a Esquerda, em concreto o seu Partido Comunista, onde se encontra?
Julgo ser necessário um relacionamento profundo entre intelectuais, sindicalistas e trabalhadores, para que se caminhe para a Europa dos Cidadãos e não para a Europa das transnacionais.
Não gosto de sectarismos, e não gostei de algumas coisas que se passaram no meu partido e contra as quais me opus e me oponho. Com o caldeamento de proveniências que sempre foi Portugal, com grandes benefícios para o nosso desenvolvimento enquanto nação pluri-cultural, torna-se urgente observar que os mais excluídos não são hoje os operários mas sim os imigrantes que sobrevivem em condições deploráveis, desumanas mesmo. Se o PC souber acompanhar estas novas realidades, como me parece que está acontecer, poderá sem dúvida crescer, e fazer acreditar ser possível atingir uma democracia a caminho do socialismo, com crítica, com vigilância, com vontade de fazer melhor. Acredito numa leitura Marxista da história.

Ainda no campo das revoluções, das manifestações humanas, das mais simples às mais complexas, pressente-se a falta de espontaneidade nas sociedades modernas. Há ainda espaço para a liberdade individual?
Somos cada vez mais controlados por uma espécie de Big Brother, que é o próprio mundo da imagem, da informação, dos ficheiros, onde cada vez mais se nota a perda da autonomia, do gosto pela vida. Estamos hoje, e sem nos darmos conta disso, culturalmente colonizados, e não só nós, como toda a Europa. Este tipo de sociedade, do ´salve-se quem puder` aprisiona precisamente a espontaneidade, de sermos e existiremos como indivíduos. As desigualdades sociais, a falta de emprego, e tantos outros problemas, levaram a que se tenha perdido muito em originalidade, efectividade e intervenção.

Sobrevivemos num mundo de homens imperfeitos, de oprimidos e opressores?
Sim, um mundo de guerras. Na minha juventude sonhava num mundo diferente, que os homens aprenderiam a viver de uma outra maneira. Isso ainda não é verdade... e não sei se algum dia será...

Mas é um optimista desiludido, ou apenas um crente na esperança…?!
Até certo ponto sinto-me desiludido, sim, mas não deixo de acreditar que é possível conseguir melhor do que aquilo que temos. Existem ainda alguns movimentos de orgulho colectivos como os festejos do Europeu de futebol, ou a grande corrente de solidariedade por Timor, em que de facto, tal como em Abril, fomos ouvidos em todo o mundo, e com resultados práticos na vida daquelas pessoas que ali agora vivem, apesar de todas as dificuldades, a democracia.

Nota-se em Portugal um certo cinzentismo, um certo silêncio entre as pessoas, na rua, nos transportes públicos… Como ilustrador de personagens, como observa as personalidades da vida quotidiana, as pessoas que fazem o nosso país?
Os portugueses são por natureza hospitaleiros, mas a nossa vida é tão cinzenta e difícil que nos tornámos todos mais recolhidos e defensivos, porventura um pouco tristes.

Retomando os caminhos da literatura, depois de 50 anos de vida de escritor, o que lhe vai na alma?
É verdade, é muito tempo, uma vida... de outras coisas também, mas sobretudo de escrita. Quando penso nisso olho para trás e vejo vários períodos da minha existência, da minha produção literária e…, mas nenhum escritor está contente com aquilo que fez. Gostaria de ter composto o grande livro da minha vida e nunca o fiz. Por vezes, ao escrever um romance, penso que “este sim, será o meu grande romance!”, mas depois resulto sempre insatisfeito, não consigo sentir-me feliz com o que escrevi.
O Eça, que foi muito maior escritor do que eu, considerava-se um vencido da vida. Creio que normalmente somos todos vencidos da vida e da obra.

Consegue definir as diversas fases da sua vida literária?
Aquela a que chamaram existencialista foi a primeira. Uma visão do mundo influenciada pela filosofia da existência, de Sartre, de Camus, de André Malreaux e de outros autores que eu tinha lido muito, mas também pela minha própria experiência.
No regresso de França, uma fase diferente, tornando-se a minha literatura mais acentuadamente de resistência, à luz da consciência de que o escritor deveria contribuir para o derrube do fascismo através da revelação crítica da realidade.
Mas como no fundo eu sou mais um escritor do desvendamento da alma, das profundidades do ser humano, do que de inquéritos sociais, as duas coisas misturavam-se.
E então o entusiasmo de Abril, e uma literatura de esperança, muito acentuada neste tão breve, quanto a Revolução, terceiro período.
Chego depois a um certo tempo de inquietação e de luto, observando o fracasso de uma forma de socialismo, o chamado socialismo real. Eu tinha consciência de que as coisas estavam mal na União Soviética e noutros países socialistas...

Quais os livros que recorda e que estiveram presentes na composição da sua vasta obra, e porventura da sua vida?
Quando era miúdo lia os livros da biblioteca do meu pai. Por volta dos 10, 11 anos, A Ilha Misteriosa do Júlio Verne, Os Três Mosqueteiros, A Rainha Margot… Mais tarde descobri os autores portugueses, o Aquilino Ribeiro, o Eça de Queiroz, o Pessoa, o David Mourão Ferreira, a minha amiga Sophia, Eugénio de Andrade, o Alexandre Herculano, o Teixeira Gomes, que foi amigo do meu pai.
Como vivia perto da fronteira, falava espanhol desde cedo, descobri o Cervantes e outros escritores castelhanos que nos eram trazidos pelos homens de barba negra, comprida, desgrenhada, refugiados do exército republicano derrotado por Franco, que ficavam escondidos no monte onde vivíamos.
Já em Lisboa, o Dostoievski já o conhecia, mas depois li tudo, o Gorki, o Tolstoy, Pushkin, mas por outro lado comprava os romancistas norte-americanos, o Hemingway, o Faulkner…

Ainda se recorda de todos os seus livros, que são tantos…?
Não, lembro-me mais dos de ficção É curioso, quanto mais imagino e me afasto de mim, mais vou fundo na compreensão do Ser Humano, porque me liberto, até de mim, e então torna-se mais universal aquilo que se escreve, como em Nunca Diremos Quem Sois, ou mesmo o próprio Bastardos do Sol. Há livros que estão muito mais perto de mim, sem serem autobiográficos, como A Hora da Incerteza, Exílio Perturbado.

O que procura nas palavras?
Aquilo que sempre me preocupou mais foi a compreensão do Ser Humano, na tentativa de descer ao mais profundo dos seus significados, e ao mesmo tempo da sua relação com os outros.
E como sofri uma grande influência na minha juventude, da filosofia existencialista, acontece que os meus livros estão quase todos marcados pela suspeita, pela dúvida, pela própria incerteza, que no fundo caracterizam o ser humano, nas suas contradições, e nas suas perplexidades, mas também pela esperança, o desejo e a convicção de que atingiremos um grau de civilização superior, onde haverá maior fraternidade e conciliação entre liberdade e justiça social.

Procurar a essência da Humanidade através do quase infinito universo das letras…
Há sempre em todos os comportamentos humanos a procura da autenticidade, e a dúvida sobre quando se é verdadeiramente autêntico ou não. Tenho ainda outra preocupação, o amor da palavra, uma certa vontade de explorar todos os seus sentidos, e ainda de os subverter, numa linha estética, não no sentido surrealista, de seguir o ditado do inconsciente, mas ainda assim permanecer ligado ao onírico.

Como descreveria o escritor Urbano, na urbanidade do seu dia-a-dia?
Por um lado, profundamente subjectivo, por outro, muito ligado ao mundo dos outros. Parece contraditório, mas bem no fundo possuo essas duas direcções.
Não posso escrever ao computador por um problema de olhos, faço-o à mão, principalmente de manhã, mas só quando o sinto… Hoje por exemplo fui nadar para a piscina aqui perto de minha casa. Aprendi pequeno, no rio Ardila, fiz parte da equipa da Faculdade de Letras, mas hoje a saúde já não mo deixa fazer quando quero.

Urbano existiria apenas como escritor, ou pode imaginar-se numa outra qualquer forma de vida?
Como falávamos, fui professor, jornalista, redactor de publicidade, mas tudo relacionado com as palavra, pois era aquilo que sabia fazer. Mas quando era muito jovem tinha vocação para a matemática, e as notas do colégio equilibravam-na inclusivamente com as disciplinas de literatura, língua portuguesa…Até o meu primeiro exame para aferir a vocação profissional indicava a matemática como a minha principal inclinação! Mas, porque gostava muito de ler, sabia que não era! E fui para Letras.

Não podem ser dissociáveis a leitura e a escrita, ou haverá algum escritor que não goste de ler?
Ambas estão ligadas à palavra, são coisas interdependentes. Preocupo-me quando dou aulas, a ensinar os meus alunos a lerem melhor, para se puderem expressar melhor no domínio da escrita, e é assim que por vezes me deparo com autênticos talentos.

É bom ou mau para a escrita, que os vastíssimos recursos que a língua proporciona sejam por vezes tão parcamente utilizados?
Nós temos uma linguagem que é de todos. Creio que é assim que se começa, e a pouco e pouco, quando se é escritor, quando se sente isso, vai-se procurando escrever de uma maneira que seja mais rica, original e por fim, que seja nossa. A literatura a que se chama fácil, tem o mérito de ser muito lida, o que é bom, mas não perdura na memória, não permanece.
Quando abrimos uma página da Maria Velho da Costa, sabemos que é dela, e quando falamos dela falamos do Miguel Torga e de tantos, tantos outros que atingiram esse patamar.

Uma forma de assinatura…
È a individualidade artística da pessoa.

Por,
Pedro Cativelos

Fado Universal


“Ao vivo no CCB”, do jazz ao soul, navegando nos ritos e ritmos de um fado que não mais é feito de fados.
A aventureira guitarra de mestre António Chainho, dedilhada em trastes de um sentimentalismo e de uma saudade reinventada, embala as memórias de cada uma das acetinadas palavras cantadas na voz de Marta Dias.

A já extensa carreira de António Chainho carrega consigo todo um passado de histórias e múltiplos trajectos, fundamentalmente retratados em noites iluminadas por vozes, como as de Amália, Carlos do Carmo ou Hermínia Silva.

A sua guitarra, tão Lisboeta quanto as sonoridades que foi exalando ao longo das últimas décadas, perfumando palcos, relembrando públicos desavindos de lembranças esquecidas, transporta saudades, que liberta ao pequeno toque requerido por cada nota musical.

“A vivo no CCB”, é o último dos trilhos desta caminhada. O espectáculo decorreu no passado mês de Janeiro, e origina agora um álbum, onde para além de António Chainho e da voz de Marta Dias, também Rão Kyao e Fernando Alvim à viola, assinalam presença de realce.

Há muito, que o mestre da guitarra Portuguesa procura a fusão do seu instrumento e da forma expressiva que representa, com outras dialécticas culturais, por forma a conferir-lhe uma outra dimensão, bem distante das casas de fados lisboetas, colonizadoras das errantes madrugadas bairristas.

“Tentei pegar no fado e transportá-lo para algo diferente, fazendo a ponte com a morna, com o corridinho, mantendo no entanto a sua estrutura”, explica António Chainho, até porque “o nosso fado está a começar a sua viagem pelo Universo, e tem de criar laços com outras culturas, para originar ambiências diversas”, revelando a importância de Marta Dias, proveniente de uma área musical relacionada principalmente com a “soul”, na arte criativa que o conduziu à composição, “depois de a conhecer bem, comecei a fazer música para homenagear não só a sua voz mas também as suas raízes Africanas”.

O nascimento da ideia sustentatória da realização do espectáculo e da posterior gravação do álbum, “aconteceu logo que nos conhecemos, aquando da celebração dos meus trinta anos de carreira”, revela o guitarrista, “ao que se seguiram colaborações da Marta em “A guitarra e outras mulheres”, e em algumas outras ocasiões”, rememorando o momento em que decidiram gravar um espectáculo, em prol de o construírem em estúdio, “a Marta disse-me que se sentia melhor a cantar defronte de uma audiência, e eu gostei da ideia, até porque as grandes vozes arrepiam-me e acabo por me transcender”.

“Todos os Portugueses têm fado dentro de si”

A recente maior visibilidade a que o fado tem estado sujeito nos últimos meses, tem para Marta Dias relação com “o aparecimento de algumas novas vozes, que aproveitam o espaço criado por Amália, Dulce Pontes, ou mais recentemente a Mariza”, levando-o a gradualmente abandonar “as ruelas de Lisboa, e a tornar-se uma forma expressiva nacional, cada vez mais com influência e visibilidade Universal”.

Inicialmente originária de uma área musical diversa daquela em que agora abarca , a cantora não se considera “fadista”, explicando, “ o que me interessa no fado é o sentimento, não o fatalismo e a dor existentes no nosso mundo, algo que a cantar quero ultrapassar, ignorando a resignação, caminhando em direcção à esperança”.
Para António Chainho, “fado é algo próprio dos Portugueses, revelador ao longo de muitos anos de um sentimentalismo mas também de uma saudade extravasada em letras dramáticas e tristes”, todavia a mais lusitana das formas de expressão está para o mestre da guitarra de Lisboa, em transformação, “como tudo na vida o fado está em evolução, mas mantém as suas essenciais características, até porque qualquer pessoa nascida em Portugal tem fado dentro de si e isso nunca irá alterar-se”.

Por,
Pedro Cativelos

“Humor é contra-poder”


Com o “Disco do Benfiquista” percorre, uma vez mais na sua vida um corredor muitas vezes vedado às mulheres. Isolada numa comunidade quase que unicamente constituída por homens, na comédia assume o seu “dom de fazer rir”, esculpido por uma observadora visão de cada particularidade da sociedade em que todos vivemos.

Teatro, televisão, fundamentalmente humor, o que lhe vai na alma e que não consegue impedir de extravasar de quando em vez. De Maria Rueff podem conhecer-se muitas caras, com bigode, de óculos escuros e brilhantina fazendo lembrar outros tempos, ou domesticamente, de touca colorida, bisbilhotando vidas que não são suas, formal, casual, actriz no balanço final das contas.

“O Zé Manel meteu-se no seu táxi e foi bater de porta em porta para fazer um disco do seu clube”. É pois este o mote da conversa com a humorista, que conta assim a raiz da história que preenche o disco de um benfiquista de Alfama, e que ao longo de vinte faixas percorre os caminhos da poesia clubista, tão popularmente exibida em expressões como “lampião”, “glorioso”, e cujo expoente máximo se pode sentir ao ouvir a “Picardia com lagarto”, num dueto com Sérgio Godinho.

“As minhas referências... Monthy Pithon, Rowan Atkinson, Benny Hill, Herman José, são nomes que fui digerindo na minha maneira de actuar, tentando perseguir a escola de humor Britânica, mais subtil”. E é precisamente Herman José, um nome, uma personalidade, que não poderá ser nunca indissociada da carreira de Maria Rueff, “o Herman será sempre o maior, porque a todos nos influenciou”, explica.

O humor nacional, em concreto o conceito de “stand up comedy” agora utilizado em formatos televisivos, é para a actriz “ uma mera colagem de anedotas, que não são contudo fáceis de contar”, funcionando como que um paradigma da real situação da comédia em Portugal, mas algo mais para além disso, “para se fazer humor tem de se ter uma plateia informadíssima, e o que sinto é que em termos televisivos se regrediu nos últimos anos, andou-se para trás, cada vez mais se oferecem menos coisas para pensar”.

A disfunção, ou a distinção que por vezes se estabelece entre o actor, associado à encenação dramática, e o cómico, é para Maria Rueff inexistente, “nasci com o dom de fazer rir, mas não basta isso...é essencial trabalhar, muito, e depois utilizar a aprendizagem técnica que eu adquiri no conservatório, onde me preparei para poder ser actriz e poder utilizar com propriedade algumas das técnicas da tragédia ou do drama, nos bonecos que empersono” .

É de resto relevante para a artista a temática da formação específica de actores, “para mais numa época de chuvas de estrelas, onde qualquer um, desde que tenha jeito e uma cara bonita é actor”, ironizando, “se prendem falsos médicos, porque não fazê-lo com falsos actores...” .

Personagens, surgem tão frequentemente no seu discurso, como fazem parte da sua vida, “é uma tradição antiga, nos mais variados géneros artísticos, a transposição de géneros humanos, o seu exagero com o intuito de fazer rir, por vezes criticar, mas também reflectir”. Para a actriz, “ humor é contra-poder, e um escape de uma realidade cinzenta”.

Ser hoje uma e não um humorista, acarreta-lhe responsabilidades só possíveis, só visíveis “porque habitamos uma sociedade que ainda se afigura com carregados traços de machismo, estigmatizada, cheia de conceitos e preconceitos”.

“Ainda bem que era a caixa de óculos do liceu, porque se tivesse sido a vamp, a menina loura de madeixas, não teria ido para o humor”, revela, asseverando, “o meio social espera que a mulher seja aquele ser certinho, arranjadinho, que se preocupa com a postura e que não se masculiniza, algo que acontece por exemplo com as mulheres, as poucas, que estão no poder”.

Por,
Pedro Cativelos

outubro 22, 2005

“A minha essência é a Bossa Nova”


Maria da Graça Costa, o nome por detrás de uma voz tão quente, tão tropicalista. Todavia Gal, é também João Gilberto que conheceu criança pelo rádio a pilhas, é Caetano, Bethânia, Gil, com quem mais tarde cresceu, nas amizades de uma vida vivida pelos ritmos precisos e intimistas da Bossa Nova, aquela tocada num velho violão, conduzindo letras e melodias de outros tempos.

“Gal Bossa Tropical” é o álbum, o mais recente de Gal Costa. Dos espectáculos em Portugal para a apresentação do novo disco, ao reviver de memórias, algumas antigas, outras bem mais recentes, as emoções que proporcionou à medida que o tempo foi passando por si. “As time goes by”, é aliás um dos marcantes clássicos interpretados numa das faixas da compilação musical.

Interiorizado, sereno, adjectivos que poderiam servir para qualificar o seu recém editado trabalho, “não houve uma intenção pré-determinada na sua concepção, fui seleccionando músicas, fui gravando, eliminando, e só quando cheguei ao final me apercebi que haviam canções de todas as épocas, de todos os tempos, interpretadas por um pequeno grupo de músicos, mais instrumentalizado no fundo”.

Em Gal Costa remistura-se o presente, mas também o passado. Referência da Bossa Nova, na batida compassada do violão de João Gilberto descobriu a própria voz, a sua, “quando pequena ouvia muito a rádio, e um dia escutei “Chega de Saudade” de João Gilberto, e a partir desse momento mudei a minha maneira de cantar... a minha verdadeira essência é a Bossa Nova”.

È indissociável da sua história, como da história da própria musicalidade brasileira a relação existente entre Caetano Veloso e sua irmã, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Gal Costa “somos amigos, começámos juntos, mas hoje as nossas carreiras separam-nos... somos no entanto uma irmandade espiritual, com um amor comum, a música”.

Filhos de um estilo musical, Caetano Veloso, Gilberto Gil reinventam algumas das mais antigas e tradicionais formas de arte musical. Nascia o Tropicalismo, que viria a congregar um movimento de renovação na sociedade brasileira dos anos sessenta, tempos de opressiva ditadura, que os transportou ao exílio, bem como a tantos outros membros de uma emergente gesta de músicos , “quando eles o fizeram não existia a intenção de criar um movimento político, mas todavia era revolucionário, pelo aspecto da transformação ocorrida nas poesias, nos instrumentos, nas roupas, que acabaram por se tornar uma forte ameaça para o regime”.

Gal tornar-se-ia pois na voz do Tropicalismo, “quando eles estiveram exilados em Londres, durante um período de quatro anos, eu fiquei no Brasil a cantar o que eles compunham, defendendo a nossa música”, acreditando ter sido o destino “que não me deixou ir embora”.

È no entanto diferente o Brasil presente, preenchido com a esperança embora ainda translúcida, transparecida pela simbólica vitória de Luís Inácio Lula da Silva, apoiado pela grande maioria dos artistas brasileiros nas últimas eleições, “é um homem do nordeste, um homem do povo que viveu a pobreza, conseguiu ir para São Paulo e tornar-se Presidente”.

Algo de marcante nas lembranças de uma geração mais antiga, a interpretação do principal tema da novela televisiva “Gabriela”, algo que tem para a cantora brasileira um significado mais abrangente do que o próprio reconhecimento do público pela sua interpretação, duas décadas que foram entretanto percorridas, “foi aí que Portugal e Brasil começaram a entender-se, porque antes disso os dois povos, que falam a mesma língua não se percebiam um ao outro”, considerando esse como um primeiro passo para a situação que actualmente se verifica, “existe hoje um grande intercâmbio de músicos e artistas entre Portugal e Brasil”.

Por,
Pedro CAtivelos, 2003

"Não dêem cabo do mundo"



A universalidade, costurada por contextualizações musicais provindas de culturas distantes, funciona naturalmente, nas melodias de uma Quadrilha, geneticamente baseada na pluralidade sonora.

Como plasticina colorida, os versos nascidos na mente do vocalista Sebastião Antunes, são moldados por instrumentos do mundo, étnicos na sua essência, dando côr à vontade expressa pela Quadrilha no seu mais recente trabalho discográfico. Síntese desta ideia, “A Côr da Vontade”, editada em álbum no passado mês de Outubro, fundamenta as suas razões pela verbalização de ideais interventivos. “Não dêem cabo do mundo”, ou “À força não hei-de ir”, são exemplos de canções recheadas de sobreavisos de relevância social, que circundam em redor de ideias chave, desmistificadas pelo uso exacerbado que delas é feito em tantos e tantos locais da sociedade da comunicação, mas que no caso particular surgem reconstruídas, e redireccionadas por uma perspectiva diferente.

Após a gravação de quatro álbuns, Sebastião Antunes revela a coloração da vontade que levou a Quadrilha a desenhar este quinto disco, com os traços com que o fez. “Ser músico... fazer música é um acto cuidado de composição, que após estar completo, pelo menos fisicamente, pertence a todos. A isso chama-se partilha, e isso, é tudo ”, explica o compositor, exalando nas palavras, “a alegria de sentir o álbum nas minhas mãos”, e acabando por fazer uma revelação. “De todos os discos da Quadrilha, este foi o que mais alegria me deu, pois derivou de uma meia-ruptura, de um recomeço, em relação ao trabalho que a banda vinha desenvolvendo, e também por convidados como Janita Salomé ou o grupo Segue-me à Capela”, deixa expresso.

A noção sensorial de simplicidade, que transborda dos pensamentos ao ouvir as melodias tocadas pela Quadrilha, é um tema abordado por Sebastião, “a música tal como a cultura, deve ser abordada e exposta de forma simples, pois cultura é a representação da arte secular de um povo, e não só como muitas vezes se quer fazer parecer, um abranger de pensamentos filosóficos sobre este ou aquele assunto”. Exemplo dessa forma de encarar a arte de criar sons, constituídos por palavras e instrumentalidades provindas de flautas andinas, congas árabes, o aborígene didjeridu, ou as já anteriormente utilizadas percussões celtas, indiciadores de uma noção de folia tão familiarmente próxima da Quadrilha, “a forma como o público, no início mais rural, agora mais jovem, mais urbano, dança e se diverte nos concertos”, consequência que atribui “a uma renovação que desenvolvemos... começámos por ser mais tradicionais, mas agora misturámos tudo, desde a música celta, às ambiências norte-africanas”. Algo com que travou conhecimento, “durante um período de quatro anos em que a banda estava parada, em que viajei, fiz recolhas, gravei coisas... assim conheci alguns músicos que tocam agora comigo, e isso influenciou-me ao fazer música”, conta.

A impressão das linhas ostentadoras de uma qualquer etnia, na sua composição musical, constitui-se aliás como uma das suas mais apelativas sensações. “A música do mundo está na moda. O conceito em si não significa mais do que um tipo de sonoridade próprio de uma etnia, consignado a uma determinada região”. Todavia, “estudo etno-musicologia, e encarando-a como uma ciência, é para mim uma infindável fonte de prazer”.

A miscigenação das palavras, cantadas, encantadas por histórias de mitos e misticismos, e a plural exposição dos sons, resulta como uma das indeléveis demarcações pautadas nas composições da Quadrilha, e da sua voz principal. De duendes, gnomos e papões, se fala a seguir. “Gosto particularmente das crenças antigas, da utilização do imaginário histórico-fantástico que emana da tradição própria de cada cultura. Em Portugal penso que deixámos esquecer a nossa mitologia infantil, toda a onecada que nos povoa os sonhos, e que tem um papel importante na nossa própria formação enquanto crianças”.

Por,
Pedro Cativelos

“Os portugueses estão tristes”


A África dos contrastes e das palavras. De um português escrito, mas pensado em conivência, em consonância com as assimétricas diferenças, constantes do globo que ocupamos, mas tão displicentemente dispostas num continente “mágico”, que não se explica, mas se pressente, em cada linha elaborada no pensamento de Pepetela.

Pepetela, nasceu em Benguela com outro nome, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos. Professor na Universidade Agostinho Neto em Luanda, licenciado em Sociologia, foi no passado guerrilheiro, político e representante do MPLA. Escritor também foi, como é e será, “para sempre”, diz.

Angolano no sangue, na voz, no sorriso e na escrita que polvilha com étimos naturais de uma cultura tão diversa, Pepetela descreve “como uma declaração de personalidade, necessária na época em que aconteceu” a sua escrita, nascida desde que na escola, “uma professora me pediu para fazer uma redacção, e eu fiz um texto diferente dos outros meninos, receoso da sua reacção, mas impelido pela vontade de fazer algo diferente, escrevi, ela adorou, e me deu como exemplo para todos os outros”.

Autor de “Lueji, o Nascimento de um Império” ou “As aventuras de Ngunga” entre muitos outros, a história de “Jaime Bunda, Agente Secreto” editada em 2001, é continuada em 2003, com “ Jaime Bunda e a Morte do Americano”, onde o James Bond angolano investiga a morte de um americano que com tantos locais no mundo para morrer, como por exemplo o Afeganistão, a Somália, o Irão ou a Colômbia, logo haveria de ir morrer na pacífica cidade de Benguela, onde na memória do povo que lá vive nenhum americano havia até aí morrido. A omnipresença americana no mundo “é aliás um dado adquirido”, mas no entanto a morte do norte-americano na pacífica cidade das acácias rosas não incomodou muita gente, “ocupada na legítima e cada vez mais problemática azáfama de sobreviver”, conta o último romance da saga do metafórico agente investigador angolano, “todos me perguntaram quando fiz o primeiro livro se a história iria continuar, na altura não sabia e continuou, mas agora não vai haver mas Jaime Bunda posso garantir”.

África é inevitavelmente um ponto por onde a conversa, e o discurso de Pepetela, vai tocando, partindo e chegando. Os contrastes, as áfricas, dentro intemporal África, “todo o mundo, num só imenso espaço”. “Explicá-la... não é possível por palavras, mágico, talvez seja o termo que encontro para adjectivar o continente”. O escritor angolano conta, “quando encontro portugueses que lá estiveram muito tempo, a primeira coisa de que me falam é da noção de espaço, da sua imensidão infinita, mas também do seu cheiro, do céu quando vai cair a noite, da própria paisagem”.

Da sua Angola, refere “a transformação” que se deu após a liberdade conquistada nos últimos anos, mas no entanto alerta “para a dificuldade” por que passa o seu povo, “cujo ordenado mínimo ronda os quarenta euros”, observando a crescente diáspora angolana, nomeadamente estudantil residente em Portugal, como “uma fonte de esperança necessária para o meu país”.

“O povo português está triste, parece-me”. Pepetela regista assim a sua visão acerca do que vem observando, desde que no início do mês iniciou a campanha promocional da sua mais recente obra, que o levou a locais como Reguengos de Monsaraz, Setúbal, Coimbra, passando por Lisboa, e onde, de passagem por alguma outras localidades, pôde revisitar um país “de que sempre gostei muito”. No entanto o romancista de Benguela observa algumas diferenças agora existentes, destoantes do sentimento com que regressou da última vez que voou para a sua terra natal, “quando parti, há cerca de três, quatro anos, levava a sensação de um povo português mais alegre, descontraído e sorridente, mas agora parecem estar todos um pouco em baixo, deprimidos, mas não sei, é uma ideia que venho interiorizando”.

Com o carácter de relevo que a sua personalidade implicou nas últimas dezenas de anos em Angola, Pepetela não observa com grande optimismo o percurso que a cultura vai tomando no seu país de nascença, “são poucos os livros editados em Angola, e embora o orçamento da cultura haja aumentado, o da defesa aumentou muito mais”, considerando esta como uma “responsabilidade da qual o estado não se pode demitir”.

E sobre cultura, discorre também uma curiosa opinião, “é tudo o que uma sociedade envolve”, prosseguindo, “não só teatro, ou música clássica, como é vinho, é história e são tradições”. “Cultura é o rosto de um povo e nunca deve ser esquecida”.

Por
Pedro Cativelos, 2003

Bomtempo na alma de Gabriela


A música de câmara é o seu repertório de eleição, pela sua vertente intimista, explanada nos recantos do quarteto “Capela”. Gabriela Canavilhas, pianista, professora, e até radialista, percorre no seu novo álbum “Qintetos com piano” a trilha desenhada por João Domingos Bomtempo nas pautas do século XIX, e acompanhada do SEMANÁRIO viaja pelas suas paixões, as suas origens que lhe moldaram um percurso, por entre a música de hoje e de sempre.

Açoriana enamorada pelo adiado retorno às raízes africanas que lhe foram berço, agradecida pela experiênciaeZ vivida ao longo de dois anos nos Estados Unidos, hoje professora no Conservatório Nacional de Lisboa e colaboradora da Antena2 no programa “O despertar dos músicos”.

Fiel intérprete do conceito de música de câmara que advém da ideia de um pequeno grupo de instrumentistas funcionando como solistas, num “género de repertórios que exploram a depuração da linguagem e procuram diferentes texturas sonoras”.

O inevitável relacionamento entre as instituições governamentais e o meio cultural Português mereceu referência por parte da pianista “o estado tem a obrigação de criar meios e condições para os artistas se expressarem nas áreas artísticas em que a lógica de mercado não funciona” acrescentando que “não se pode continuar a olhar a cultura como algo que necessita de ser subsidiado totalmente, mas como qualquer coisa com potencialidade para ser lucrativa no balanço económico do país”, concluindo, “o estado deve estar atento às vanguardas, às novas criações e ao estabelecimento e afirmação de novas linguagens”.

Situando a música erudita como tendo “tantas nuances de mercado como qualquer outra”, com o exemplo de um dos seus álbuns “Vocalizos”, totalmente construído com base em obras de compositores contemporâneos Portugueses e que atingiu um substancial número de vendas, situação que encaminha o rumo do seu discurso para o facto das editoras discográficas não apostarem ainda fortemente neste segmento do mercado musical como algo rentável.

A “ pluralização de repertórios apresentados, como se afere do grande êxito alcançado pelos três tenores, que se traduziu numa clara estratégia visando a massificação da venda, vem na sequência de uma lógica de mercado que começa a ser explorada na área da música erudita”.

Gabriela Canavilhas prossegue neste âmbito, mas introspectivamente colocada perante a questão da comercialização da sua própria obra revela “o reconhecimento de um aluno, uma carta de um ouvinte valem mais que os concertos e os discos pois são mera expressão da nossa actividade. O que realmente importa para um artista é tocar em alguém ao longo da sua vida”.

No fecho da conversa Gabriela, amante da música como arte indissociável da cultura que a molda em todas as suas cambiantes, traça para os leitores do SEMANÁRIO um pequeno esboço da sua visão em relação à música Portuguesa, nomeadamente quanto à questão da formação “ onde a qualidade do ensino tem melhorado substancialmente nos últimos anos, situação consubstanciada pelo surgimento de novos instrumentistas”.

Também o fenómeno gerado em torno da denominada música “pimba” mereceu um comentário, “ o ar de superioridade com que músicos credenciados observam este tipo de sonoridade traduz-se por um certo basismo latente, que faz desvanecer a verdadeira e natural essência tradicional de onde provém este tipo de canções”.

Por,
Pedro Cativelos, 2003

A entreaberta porta do Mundo


No Passeio dos Alegres nasceu, cantando, depois foi Vitorino quem lhe deu asas ao sonho. Na queda de um império, uma voz ecoou, das entranhas da mais pura alma lusitana, ao céu do horizonte, tão azul quanto o olhar que consigo transporta, desde criança.

“À Porta do Mundo” novel álbum de Filipa Pais, é um trabalho enobrecido pela riqueza timbrica de uma voz que incorpora repertórios amadurecidos por anos de colaboração com músicos portugueses, de Rui Veloso a Janita Salomé, Sérgio Godinho ou Vitorino, que lhe proporcionaram vivências musicais que extravasaram diversos estilos musicais.

A vertente tradicional “ num disco melodioso que dá importância à voz” aliada à poesia de Reinaldo Ferreira, João Afonso, Mário Cesariny, Hélia Correia “que tem uma facilidade imensa em construir poemas após ouvir o tema tocado instrumentalmente” ou tantos outros, de nome esquecido, que deram vida e história a cantares tradicionais, surge como recordação de tempos não vividos, causadores de nostálgica saudade.

A arte do canto pautou a sua vida, mas somente após a edição em 1994 de “L´amar”, o seu primeiro trabalho.“Voei sozinha e as coisas começaram a acontecer”.

O prolongado interlúdio discográfico, que tomou oito anos da sua vida, “não foi de maneira alguma vazio, pois nesse período cantei durante três anos com o António Chaínho, participei em espectáculos com o Tito Paris, actuei na Expo98 por diversas vezes...”. Também o nascimento da sua filha Alice, a fez “abrandar" nos passos da carreira mas revestiu-se de "grande importância em termos pessoais, pelo mundo de fantasia que me fez recordar e reviver de novo”.

A distribuição do seu novo álbum no mercado discográfico internacional “ é um objectivo para o qual existem já alguns contactos, todavia ainda não totalmente explorados”, acrescentando não ser necessária para a internacionalização da sua carreira, a mudança do idioma que lhe acompanha a voz, “ sou portuguesa, falo português, e neste momento nunca cantaria noutra língua que não a nossa”.

Quanto à sua visão acerca do mercado de música nacional, Filipa Pais refere, “pouco ouço rádio, pois quando o faço só oiço temas em inglês, embora não me possa queixar, até porque existem emissoras que vão passando a minha música”, observa.
O número de discos vendidos é algo “ que não me preocupou quando fiz o disco, mas gostaria que muitas pessoas pudessem ouvir o meu trabalho”.
O apoio Governamental à produção de conteúdos artísticos, nomeadamente no que se relaciona com o meio musical merece também um curioso comentário “pela parte que me diz respeito, nunca dei por nada”, prosseguindo, “não há qualquer tipo de apoios, nem sequer um circuito onde possamos expor o nosso trabalho” aludindo também “à falta de patrocínios, que dificulta a realização de ensaios, e de espectáculos em condições”.

No fecho da conversa Filipa acedeu ao desafio de tentar descrever a sua música meramente através de palavras, faladas, para os leitores do SEMANÁRIO. “Uma das coisas de que gosto no álbum relaciona-se com a sua componente melodiosa, baseada em raízes provenientes das diferentes tradições, riquíssimas no nosso país, sujeitas a uma envolvente composta instrumentalmente. Todavia, é muito difícil falar da minha música..”, fez-se um silêncio, a sua voz ganhou ritmo, e cantou um pequeno trecho de uma melodia que um dia havia já cantado.

Por,
Pedro Cativelos

“Todos somos uma minoria”


A cultura étnica faz transparecer o carácter híbrido motivador do tecido estruturante da obra de Mário Cláudio. “Oríon”, a segunda de uma “tríade” literária.

A propositada criação de uma linguagem miscigenada, como forma de mostrar ao leitor o traço construtor de cada palavra, e de o encaminhar bem para lá dos tempos, com a imagem do presente como berço de uma narrativa e de uma conversa que abandona a ficção.

A constelação Oríon, é representada pelo mito simbólico renascido da lenda de um caçador, que depois de tantas aventuras se transforma em constelação celeste.

Todavia “Oríon”, no livro de Mário Cláudio, é o relato, que sob a forma de romance metafórico aproveita o verídico acontecimento histórico do envio de um punhado de crianças judias, em 1443, no reinado de D. João II, para o arquipélago de S. Tomé e Príncipe, o que “ faz pensar em algo tão característico da condição humana, na qual todos nós somos crianças de alguma maneira abandonadas numa ilha, tentando contemplar o horizonte, onde por vezes avistamos uma constelação que interpretamos como sinal de esperança, de possibilidade da realização de um sonho futuro”.

Aos quinze anos encontrou em si mesmo, “ a escrita como algo central na minha vida”, considerando mesmo ser “impossível sobreviver sem ela”, explicando sucintamente a motivação que o conduziu à criação desta obra, “ tinha lido um episódio histórico acerca deste acontecimento, e surgiu-me a ideia de construir um romance”.

Para o escritor, professor, e licenciado em direito, a quem as invictas palavras que exalam da sua voz não conseguem ocultar as raízes portuenses, “os romances nascem disso mesmo, de ideias que se sedimentam e depois emergem, surpreendentemente”.

“Desembarcou na ilha uma leva de degredados, gente que mirava as novidades da paisagem com uma brasa em cada olho, se deslocava numa lentidão de cautela e de pasmo, hesitante quanto ao solo que pisava, mas decidida a beber até ao seu termo a vida que lhe fora poupada...” .

Neste segundo livro de uma trilogia possuidora de uma “égide comum aos três romances, embora cada um deles se possa ler de forma independente” e cuja ideia matriz se relaciona com a abordagem “ à situação de pessoas que se encontram num contexto de fragilização diante do poder, no primeiro caso com sete delinquentes, agora com sete crianças iguais a todas, desde sempre, mas de etnia diferente”.

As distinções apresentadas, quase como que através de uma eclesiástica encenação divina, pelas sociedades contemporâneas, povoam o seu imaginário de uma avidez revolucionária, que transparece não raras vezes, na sua obra, bem como na conversa, “procuro prestar o meu contributo, naquilo que melhor sei fazer, reflectindo e tentando fazer reflectir acerca das razões que conduzem à confrontação e à eterna guerrilha entre minorias e maiorias”. Explicitando o seu papel social como televisionador do presente, e referindo-se aos degredados dos nossos dias assume, “como escritor, como artista que sou, a minha tendência conduz-me a estar sempre ao lado das minorias ostracizadas, até porque todos nós, por uma ou outra razão, fizemos, fazemos, ou faremos parte delas”.

No actual contexto global, classifica a sua obra como “um momento de reflexão para situações que necessitam de ser pensadas, de forma mais generalizada, por forma a rasgar e atravessar todos os lugares, de todas as épocas”.

O romancista explana também o seu pensamento acerca da cultura nacional, nomeadamente quanto ao enquadramento que vai recebendo por parte da governação, preferindo começar por focalizar “a terrível fase por que atravessamos, pois psicologicamente encontramo-nos fortemente combalidos”, sublinhando ser este um “período de acentuada depressão, não só em termos monetários, mas muito mais preocupantemente, em termos de esperança, tão necessária ao desenvolvimento de qualquer sociedade”. Revelando-se “consternado”, continua no entanto expectante quanto ao “rumo que se está a seguir”, que anseia, “ mude radicalmente o deu decurso, o mais rápido quanto possível”.

Mário Cláudio prossegue, agora analisando o país como algo “tão débil do ponto de vista da intervenção cultural, quer dentro das nossas fronteiras, quer pelo mundo”, traçando uma pessimista, mas muito pessoal previsão, “se não adoptarmos e não incrementarmos uma dinâmica diferente daquela a que estamos habituados, em todos os níveis da nossa sociedade, corremos o risco de, mais tarde ou mais cedo, soçobrar”.

Não esquecendo o Governo, e as competências que lhe incumbem nesta matéria, critica a situação vigente no Ministério da Cultura, observando, “a existência de uma área da cultura nesta governação, parece não corresponder a quase nada, apenas a um nome, sem qualquer tipo de conteúdo”.

Por,
Pedro Cativelos, 2003

outubro 21, 2005

“Um fruto das minhas divagações”


“Sing me something new”, ou o desvelado livro de memórias de uma vida feita de momentos recrutados pela nostalgia, resguardados por entre melodias ecoadas dos idos de oitenta.

David Fonseca reaparece no panorama musical português com “Sing me something new”, todavia agora desacompanhado dos Silence 4, “ simplesmente porque o excesso em que vivíamos, conduziu à perda da verdadeira razão das coisas, o que nos fez resolver parar por uns tempos”.

O berço do novo álbum do cantor leiriense, é a sua casa, onde depois de “um ano em que apaguei a música da minha vida, se iniciou todo o processo de composição” sob a égide da livre e despreocupada criação, “ resolvi fazer música para mim, e acabei por, passados alguns dias estar a gravar algo que é um fruto das minhas divagações, e que pura e simplesmente não foi sujeito a qualquer tipo de condicionalismo”, considerando-o inclusivamente como o “mais livre” dos três álbuns que já editou.

A diferença em relação aos seus anteriores trabalhos está de resto patenteada no processo utilizado na construção de cada trecho musical, “ neste disco toco quase todos os instrumentos, o que transforma radicalmente o resultado final, pois quando uma pessoa faz um tema e o interpreta instrumentalmente de variadas formas, a intenção não se dissipa, mas pelo contrário concentra-se, e ganha uma forma mais próxima do originalmente imaginado”.

A vertente intimista apresentada em “Sing me something new” , transporta consigo a visão pessoal e a face mais interior da personalidade do cantor português, que não deixa de confessar o seu fascínio pelo mundo e pelas pessoas, “aquilo que mais me influencia é a vida quotidiana, a vida comum das coisas, de mim e dos outros que me rodeiam”, anuindo ser esse o mais essencial dos motivos que o “desperta para a composição, que para mim se constitui como uma espécie de fotografia”.

A impossibilidade real de pausar o mero segundo que passou, em direcção à recordação, não é para David Fonseca, contudo irrealizável, “tento concentrar esses momentos, estancando-os num disco, para sempre”.

De um passado distante a um passado quase presente, poderá ser, de um ponto de vista metafórico, a mais clara e correcta forma descritiva da marcha de cada uma das faixas de um álbum no qual são marcantes as alegóricas referências aos anos oitenta, bem como a bandas como os Pixies ou os The Clash, “no fundo é o recordar de músicas que ouvi em criança, e me fizeram descobrir a vontade de também eu, fazer música”.

Por,
Pedro Cativelos, 2003

“A vida é uma escolha de histórias"


Uma balsa derivando, uma hiena chorando, uma zebra riscada de perna partida, um orangotango e Richard Parker, um tigre de Bengala. Ou “A vida de Pi”, adolescente indiano cujo trajecto se cruza com o destes animais, cuja sobrevivência se recolhe no seio de um oceano, cujo destino se assimila, enraizado por um passado comum.
Yann Martel desenhador da obra, nascido do mundo por onde caminha, retracta, costurando linhas em capítulos de palavras, ao sabor de um rumar que escolheu sem conhecer, “é para mim um mistério ser hoje, escritor”.

Yann Martel ou um canadiano nascido em Salamanca, mas com somente três dias migrante, para Coimbra onde cresceria durante três meses, abandonando depois a velha Europa. Filho de diplomatas chegaria a adulto nas Américas, mas o mundo para lá dos oceanos, que lhe serve o cenário da sua obra, fascinava-o, fascina-o, “a Índia é como ter toda a vida num só sitio, onde todas as histórias ainda são possíveis”.

Depois de licenciado no Canadá, trabalhou, perto das palavras mas “à noite”. Todavia durante o dia era segurança em Paris, ou mais tarde empregado de restaurante.

Com três livros editados, “Facts Behind the Helsinki Roccamatios” em 1993 e “Self” em 1996, “A Vida de Pi”, o seu mais recente romance, cujo lançamento ocorreu no dia 11 de Setembro de 2001, foi no ano transacto galardoado com o Booker Prize, o prémio literário de maior grandiosidade na Commonwealth.

“Tudo começo há treze anos atrás, quando li um artigo no New York Times acerca de um romance brasileiro em que parte da história tinha lugar num salva vidas, onde estavam um homem e um animal selvagem, no entanto esqueci-me, mas passados sete anos estive na Índia e começaram a surgir-me ideias, e em menos de uma hora toda a estrutura da obra estava na minha cabeça”, explicando assim o momento da edificação, do nascimento do romance, “a vida é uma escolha de histórias”, afirma.

A disparidade social, fruto da diferença e da multiculturalidade do planeta são conceitos espelhados nas linhas que escreveu, que marcam também distinta presença no discurso que vai construindo, “quando olhamos sociedades como a canadiana, a portuguesa, tudo parece racional, ordeiro, organizado, mas a Índia é diferente, há muitas injustiças, mas quando se vai lá, atinge-se a percepção de que se tem estado a perder qualquer coisa da vida e ela ganha com isso, um novo sentido”.

“Todo o artista que é ambicioso deseja a certa altura o reconhecimento, as vendas, os prémios, que são importantes pois trazem as atenções para uma obra, mas contudo injustos porque as desviam de outras igualmente boas”, refere o escritor, para quem a escrita, a criação de algo apenas com palavras é “um fascínio e simultaneamente um misto ilusão e lucidez”. Aos escritores ainda desconhecidos se dirige a seguir, “leiam muito, principalmente os clássicos, os russos, anglo-saxónicos como Hemingway ou Kafka, tentando manter-se afastados dos sistemas”, pois, explica, “a escolav universitária mata a livre escrita e a maioria dos escritores não possui um educação formal, escrevem porque se não o fizerem...morrem”

De Portugal conta, “o primeiro sítio para onde viajei sozinho, e local que irá servir de palco no meu próximo romance”, conhece o fado de Amália mas também Saramago, Lobo Antunes, Miguel Torga, Pessoa e Luís de Camões, mas a sua visão acerca da lusitânia aprofunda-se para além das obras culturais, “aqui há africanos, indianos, brasileiros, timorenses, há um pouco de muitas culturas na vossa própria cultura, o que transporta a sociedade para uma diversidade verdadeiramente interessante, enriquecedora culturalmente”.

Por,
Pedro Cativelos

“Sou o reflexo de tudo o que me rodeia"


No espaço que dista entre a ilusão e o sonho, a tamanha zona nublada, opaca, cinzenta, “a que chamamos realidade”

É de um mundo zangado, de um planeta de megalómanos construtores de imagens também exageradas, sem contexto e sem sentido, uma terra enlouquecida, talvez enraivecida, que vai permitindo, que se submerge sob a necessidade de se construir uma outra, mais colorida, mas sobretudo mais real, mas é também de pessoas, sonhando ser felizes, ou apenas conformadamente sobreviventes, que se alimenta o diálogo com o californiano Gary Jules.

“Trading Snakeoil for Wolftickets”, na essência, de um disco construído a partir “do nada”, ou mais realisticamente a partir da cave de Mike Andrews, seu amigo, também compositor, depois de conviver com a fumaça beligerante dos bares de Los Angeles, onde a droga e a prostituição fazem sentido, “porque são simplesmente realidades. Sou no fundo um reflexo de toda a minha história, de tudo o que me rodeia”.

“Conseguimos fazer este trabalho com apenas cem dólares, assim como uma espécie de exercício de música independente. Não esperava nada do que veio depois...”. O mesmo nada, um vazio semelhante àquele que lhe fora entregue pela sua antiga editora. “Após a gravação do meu primeiro álbum, as vendas não atingiram o que pretendiam e acabei por ser despedido”.

Pouco depois seria “Mad World”, o retracto revisitado da melodia dos Tears For Fears, escolhido para sonorizar Donnie Darko, a película que se tornou culto, mas também a figura paterna de uma simples versão, contudo melhor que a obscura original, e qualquer coisa como um passaporte para o actual primeiro lugar da tabela dos discos mais vendidos no Reino Unido.

Regressando ao berço do seu mais recente trabalho, “ preferi concentrar-me apenas em cada uma das músicas, aperfeiçoa-las, lapidando-as para depois me sentir eu, para depois as sentir como minhas, ao interpretá-las”.

“Penso que os músicos têm de primeiro trabalhar sozinhos”. De baixo para cima, de cima para baixo, concentricamente. “É o movimento da minha vida, da vida de todos, mas é também o movimento dos dedos pelas cordas de uma guitarra, um símbolo para mim”.

A intimidade que se acentua nos seus acordes, espelha a realidade que observa “num mundo em que muito dificilmente nos reflectimos, e que acabamos por reflectir, ao esculpirmos em nós próprios o que ele nos transmite”. E na tela pautada que o seu imaginário lhe foi deixando crescer, desde criança, “nascem retractados os sentimentos de uma visão essencial, mas sobretudo transmissora de uma mensagem realística”, tatuada, tal como enormes quantidades cutâneas do seu corpo, cobertas de estrelas, e onde sobrevive mesmo um D. Quixote de La Mancha, por tumultuosas experiências, por pequenas revoluções, “contra moinhos de vento, tentando simbolizar por exemplo, todo o universo numa só palavra, numa só expressão, numa só nota musical...”.

“No Poetry”, apenas pensamentos discorrendo em cada faixa de um disco inesperado. “Sobrevivemos com mentiras, desde que nascemos, até que fazemos nascer, e permitimos que elas se propaguem de geração em geração”. A receita, é “crescer, ser adulto, sem ser amargo ou frustado, e sonhar sempre, apesar de tudo”.


Por,
Pedro Cativelos, 2004

Bem Vindos


Este é somente um pequeno fragmento do meu mundo.