agosto 22, 2008

Pública: Um dia com... Helena Ramos




Dias pintados de fresco

Palcos televisivos, teatrais, sensações impressas no diário de quem quer sempre mais, continuando a ser quem gosta, quem é.

Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


Óculos escuros, penteado cuidado, palavras no lugar devido, como sempre habituou quem a viu nos ecrãs da RTP durante os últimos trinta anos, quem ainda a vê e reconhece, na primeira aparência. Helena Ramos é no entanto mais do que isso, atravessa as fronteiras da estética televisiva, da postura de estúdio com a facilidade de um gesto em forma de sorriso, como “mulher normal” que diz que é, várias vezes ao longo do dia, “mas cheia de vontade de viver, e de se deixar levar pela vida”.
Hora de passeio do pequeno Afonsinho D´Aveiro, o seu cão, cego de nascença. Manhã cedo ainda. “Abandonaram-no por causa disso mesmo, mas tenho-o comigo há dez anos”. Segue-a por toda a parte, ao som dos seus passos. Gosta de animais e de pessoas que gostam deles. “Mal vai um país que trata mal os velhos, as crianças e os animais... Se calhar, o nosso, não cuida bem de nenhum deles, é um sinal preocupante”.
No jardim da urbanização onde habita, em Telheiras, senta-se, pressente os primeiros raios de sol de um dia, que vai ser longo e preenchido, momentos antes, do habitual café da manhã, na Fatia Doce, mesmo ali, ao lado da porta de sua casa. “Bom dia, é o costume”.

Memórias presentes
Natural de Vale de Cambra, Aveiro, onde nasceu há 54 anos, Helena Ramos é um dos rostos mais conhecidos da televisão pública. Apresenta actualmente o “Cartaz de Memórias” na RTP Memória, mas passou ao longo da carreira por inúmeros formatos, horários, conteúdos e... gerações. Das primeiras emissões como locutora de continuidade, aos programas de entrevista mais recentes, Helena acabou por nunca estar ausente, sem no entanto ter alguma vez estado presente de mais. Sorri, sem baixar o olhar. “Não sou daquelas que se estão sempre a queixar, nada disso, tenho por norma ser agradecida por aquilo que tenho, e que me vai acontecendo sem estar a procurar demasiado. Acredito nisso, em deixar-me ir e logo se vê”.
Dos vários papéis que lhe couberam ao longo da vida e da carreira, ressalta a paixão especial pelos estudos que nunca deixou de perseguir. “Sim já fiz muita coisa... participei como professora em ateliers de televisão na Universidade Autónoma de Lisboa, antes já o tinha feito no Instituto Piaget... Mas tirei o mestrado em comunicação organizacional na Católica e um MBA em gestão de empresas”. Pausa... Sorri, percebendo a admiração causada, e sem perder tempo a explicar. “E porque não?! Não tenciono gerir nenhuma empresa, mas o conhecimento não ocupa lugar, como se costuma dizer não é?!”
Talvez seja este um dos retratos mais fiéis dos efeitos da distância que a separam hoje da menina que aos 23 anos entrou para a televisão do estado vinda da província, e que trinta anos depois já experimentou muito da vida. “Lembro-me de ter visto um anúncio e de ter concorrido. Realizei provas de improviso, entrevista, leitura de textos,,,. Concorriam mais de duas mil pessoas, mas só treze foram seleccionadas. Não tinha “cunha”, vinha de fora, não conhecia ninguém.... Eu fui prestar provas de chinelas, daquelas modernas e rasas que se usavam na altura e fiquei”, recorda. Depois, o lado pessoal, de quem não ”gosta” muito de estar parada. “Vim para Lisboa para a Universidade Clássica, tirar Germânicas... Foi um choque na altura, vinha do interior, mas sempre tinha tido o sonho, desde os seis anos, quando visitei a cidade pela primeira vez, de vir para Lisboa. Lembro-me que quando ia na Avenida da Liberdade com a minha mãe, lhe disse, com a minha voz de criança, ´Esta é a minha cidade`”. O seu olhar, afasta-se, por momentos. Regressa. “Resumindo, entrei na televisão, casei-me, divorciei-me, nunca consegui ter filhos, como desejava... A grande lição da minha vida? Se calhar que estou bem é sozinha, até porque aprendi que não sou muito fácil de aturar, nem tenho muita paciência para aturar os outros”, deixa que lança com humor, apesar de permanecer séria, na conversa. Pretendentes, foram muitos ao longo da carreira, presume-se, mas nem esta achega a torna próxima do embaraço. “Recebi muitas flores, muitas declarações de facto. A maioria educadas, nunca tive grandes problemas com isso, apesar de também não passar muito tempo a pensar o que viam em mim. Dizia-lhes para seguirem a sua vida”. Hoje em dia? “A gravidade é uma coisa terrível...”, sorri.





Apresentadora, actriz...

Hora de almoço. A conversa sobe de tom, como todas as palavras em redor de uma refeição em hora própria, mesmo que em Lisboa em pleno Agosto. Nas Portas Verdes, restaurante de Carnide onde costuma almoçar quando tem um pouco mais de tempo, o terraço florido de buganvílias e ilustrado com parras fartas em uva americana, “como a quinta dos pais em Sever do Vouga”, reclamam à sua intimidade, um pouco mais de si mesma. “Talvez por isso, goste de vir aqui”, explica. Conhece toda a gente pelos nomes. Tratam-na por doutora, como acontece normalmente a todas as figuras públicas quando frequentam lugares... públicos.
“Se pudesse largava tudo agora e ia para actriz, até porque acho que ainda ninguém reparou que posso ser espectacular”, diz, por entre um sorriso sério e uma intenção dirigida a quem quer que acredite. Mas... e a televisão, onde tem sido uma presença assídua, desde os anos setenta? “Abri a RTP Memória, foi interessante no início. Agora estou um pouco cansada, tenho pensado em outros rumos, e os palcos sempre me atraíram”. Os porquês, conta-os, mesmo que alguns os deixe permanecer reservados, a si própria. “Estou numa fase estranha da minha vida, cheia de mudanças... Normalmente surgem coisas boas e más nestas alturas...”. Um suspiro profundo. “Bem, mas serena, como sempre”.
Um copo de vinho, um cigarro “que estamos na esplanada”, e uma sobremesa que apetece, mas que não se torna mais essencial que os amargos de boa provisórios de uma dieta “começada há pouco tempo. A gravidade outra vez”, lança em tom de gracejo.


Quadros feitos
As pinturas, permanecem nos traços mais reservados da aparência pública de Helena Ramos. “Comecei há alguns anos, e ganhei-lhe o gosto”.
As paredes de sua casa são preenchidas por janelas emolduradas, umas pequenas, outras maiores, a óleo, pastel e carvão. “Tenho uma paixão por pintura, nunca o tinha feito na vida, não tinha qualquer noção para além da literária e de quem observa apenas... Decidi então ir aprender”, explica, enquanto segura a sua primeira obra, uma natureza morta embrulhada por um caixilho enorme, que lhe dá vontade de rir. “Está uma porcaria, mas arranjei a maior moldura que consegui para parecer uma grande obra de arte”, humoriza entre uma gargalhada e um olhar orgulhoso e disfarçado.
Costa da Caparica. Atelier de Francis Vaz, nome artístico de um pintor nascido em Portugal, de nacionalidade francesa. “Sim, a Helena tem jeito para pintar”, recorda, enquanto lhe vai dando instruções sobre como tornar o branco mais pardo, e os verdes mais resplandecentes. Dedica-se agora a um retrato da sua mãe, ainda criança, que um dia, “quando estiver concluído”, lhe irá oferecer. “Há alguns meses que ando com isto, ainda não acertei”. A bata, os dedos cheios de tinta nos contornos dos desenhos em tela, as plantas ao fundo, distorcidas na transparência dos frascos de óleo, os pincéis demolhados na paleta, pousada perto da janela, com o mar em plano presente de fundo... Detalhes de um ambiente propício ao “exercício solitário da pintura”, explica Francis. “É isso que me agrada aqui, a calma, o facto de ser relaxante, criativo ao mesmo tempo... De tudo vir de dentro, sem pressa, ou pressão”. Não retira o olhar do quadro que lhe preenche os sábados de manhã, nas aulas, e os serões, normalmente passados em sua casa, até porque não gosta de sair muito à noite. “Já tive as minhas noitadas loucas, agora já passou”. Um penúltimo sorriso. “Sabe, gosto de me ir deitar em paz com aquilo que faço, sem assuntos pendentes... Talvez por isso acorde sempre bem disposta e com uma vontade enorme de começar tudo uma outra vez”.

Pública: Um dia com... Marta Crawford

Ter ou não ter... tabus

Preliminares, consultas, palavras soltas e sorrisos, “num dia de cada vez”, o segredo terapêutico para uma relação, qualquer que ela seja, com os outros, e consigo própria.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


“Olha a doutora da televisão”. Sorri. Está habituada a ser personagem conhecida de vários públicos, mesmo afastada dos horários nocturnos dos ecrãs, onde há alguns anos apareceu, com o êxito de audiências que foi, ABSexo. “Olá...”, responde com outro sorriso. Marta Crawford, lida bem com isso e com muitas outras coisas que fazem “confusão a gente de mais”.
Na esplanada do Deli Delux, na Bica do Sapato, o rio corre lânguido, tranquilo, e sereno, como o silêncio de um restaurante sempre que ainda não é hora de almoço. “Gosto de vir aqui, depois das consultas da manhã. Bebo um copo de vinho, penso... Não gosto muito de almoçar sozinha, gosto de conversar, aproveitar o momento. Mas também gosto de tascas”, lança, como quem não quer deixar escapar o gosto pelo requinte, saboreado das mais diversas formas. “Depende do momento, como tudo não é?!”.


Com e sem farda

Uma salada leve, como os assuntos que vão tomando a tona da conversa. Parece ser essa, aliás, uma das suas formas de lidar com todas as questões. “Simplificar, não minimizar”. Ao longe, um navio da marinha brasileira, aporta ao cais. Fardas, fetiches e simbologias literárias, mundanas e reais. Um sorriso primeiro, depois a abordagem clínica da questão. “As fardas são normalmente símbolos de autoridade, hierarquia, com um estatuto social associado... Nem todas as mulheres têm esse fascínio pelo `Oficial e Cavalheiro`, do qual aliás, gosto bastante”, deixa escapar, com humor.
Licenciada em Psicologia Clínica pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Marta Crawford especializou-se depois em Sexologia Clínica pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia onde chegou a dar aulas. Terapeuta Sexual acreditada pela Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica, não se vê, “de longe”, como a famosa Dra. Ruth Remédios, personagem humorística imortalizada por Herman José, muito antes sequer de chegar aos ecrãs da TVI onde apareceu e se descobriu, para além do que estava à espera. “Foi uma boa experiência essa. Lembro-me de no primeiro dia, após as gravações ter ido às compras e de me interpelarem. Não estava à espera dessa reacção, para ser sincera, nem tinha pensado bem nas consequências de começar a aparecer na televisão. Desde aí, sinto que as pessoas se identificam comigo, sabem que não as vou criticar ou julgar, não tenho o hábito de ser paternalista! Ganhei-lhe o gosto, e espero em breve regressar, com um formato um pouco diferente daquele, está para breve, espero”.
Até há três anos, pertenceu à equipa de aconselhamento e encaminhamento telefónico da linha SOS Dificuldades Sexuais, trabalhou no Instituto de Emprego e Formação Profissional e colaborou no acompanhamento psicológico de utentes do Serviço de Psicoterapia Comportamental do Hospital Júlio de Matos na consulta de sexologia, “uma experiência muito enriquecedora”.
Para lá das acções de formação e de actualização nas áreas de sexologia e de terapia familiar, apresenta ainda regularmente comunicações em congressos e seminários relacionados com sexologia. Escuta bastante mais do que fala. “Defeito profissional! Levanto-me normalmente pelas oito horas da manhã, levo o João (um dos dois filhos) ao colégio e depois vou ao ginásio”. Dá uma gargalhada, daquelas que prenunciam uma boa intenção, nem sempre cumprida. “Bem... Não sou muito dessas coisas...mas como sempre tive tendência a ser forte, tem de ser!”.


No consultório com...

Na Alameda, em frente ao jardim, e com o Instituto Superior Técnico ao cimo da rua, o seu consultório. “Chegámos. É aqui que costumo passar grande parte dos meus dias”.
No entra e sai próprio de uma clínica no centro de Lisboa, casos da vida, de muitas delas, dos frutos proibidos pela falta de amor, à desinspiração provocada pela sucessão de dias com suores frios de trabalho a mais e momentos de prazer... a menos. “O amor nem é o mais importante sabe, porque se pode amar e não se ter uma relação sexual satisfatória. E o contrário também. Chegam-me muitas pessoas que acham que nunca vão encontrar o amor... Digo-lhes que pode ter várias formas, o que é preciso e esse é um grande problema hoje em dia, é tempo para as cultivar! Para mim o que é o amor? Todos encontramos alguém que nos faz sentir bem... mas gosto de todas as boas sensações que possa encontrar, como quando se bebe um bom vinho, quando comemos um chocolate, ou damos um mergulho no mar...”.
Dos dramas que já ouviu contar, que ajudou a sarar, a maioria permanecem nos ficheiros clínicos arrumados ao computador. Outros, no entanto, ultrapassam o disco rígido e ficam marcados na sua personalidade, para lá dos limites da sala e da profissão. “Não me impressiono com tanta facilidade assim, mas é impossível não haverem situações que nos fiquem na memória e que depois não acabemos por levar para casa. Acontece-me isso por vezes, é humano e há casos em que apetece ir lá ter com o marido e dizer-lhe das boas!”
Senta-se no cadeirão confortável da sala onde se nota a ausência de um elemento cenográfico que sempre se aguarda, neste tipo de espaços, o famoso sofá dos pacientes. “Isso é nos psicanalistas”, lança numa gargalhada. Coloca os óculos de massa, e o ar profissional. “Hora de consulta, até já”.


Teoria e prática

Para quem domina os recantos da psique humana, as arestas da sexualidade, os medos comuns, a interpelação dos próprios receios, com objectividade clínica é por vezes, e como lhe chama, um “desafio”, nem sempre conquistado à partida. Na Marta, para lá da sexóloga, moram as dúvidas e as respostas, comuns a todos. “Como em tudo, há uma grande diferença entre a teoria e a prática. Costuma dizer-se que ´em casa de ferreiro, espeto de pau`, mas posso dizer que sou feliz, nos mais variados aspectos apesar de também ter os meus problemas”.
Foge habitualmente, e sem o pretender de forma intencional, ao perfil típico do terapeuta sexual como se poderia imaginar. Imagem cuidada, ainda jovem, sem recorrer em demasia a conceitos técnicos apropriados de literatura especializada “Se ser ou não ser bonita... ajuda?! Só tive uma vez um caso de uma pessoa se ter ido embora por eu ser mulher! Também pode complicar por vezes, mas a postura profissional serve para isso mesmo. Se ser feminista representa a defesa de um principio de igualdade e de não supremacia de ninguém, então assumo-o!”. Sorri.
Guarda habitualmente os finais de tarde para passear pela Avenida de Roma, sentar-se na esplanada da Mexicana a beber um café e a contemplar o dia que passou, e o amanhã que há de vir. A igreja por perto, no meio da praça, evoca os retratos de como vai o Sexo, na Cidade que lhe aparecem-lhe nas consultas, na rua, no email. Tenta responder-lhes “sempre” que pode. “Recebo muita correspondência das mais variadas formas, é verdade. Como acho que os portugueses vêm hoje o sexo? Ainda é um dogma e isso não é bom! Penso que se calhar o maior problema hoje em dia tem a ver com a falta de desejo sexual, a falta de vontade, porventura em resultado da falta de tempo, do stress diário... e hoje começa até a aparecer um novo fenómeno, porque existem cada vez mais homens com este problema”.
Para além da personagem clínica, da figura pública, Marta Crawford gosta de se reservar para si, e para quem pertence ao seu mundo de afectos. “Tenho um espaço privado muito meu, não gosto de ser observada... Criei até uma série de fobias desde que comecei a aparecer na televisão”, humoriza. Mais a sério... “Pessoalmente, procuro sempre alcançar e manter o estado de felicidade, a satisfação plena em todas as situações. Aos olhos dos outros, as nossas vidas são sempre perfeitas, mas há perdas, etapas difíceis que temos de cumprir. Consigo lidar com isso, mas tenho também um lado mais negativo que aceito como algo que me faz apreciar devidamente a felicidade quando ela aparece”.
Depois do lançamento do seu segundo livro, “Sexo com Prazer”, prepara agora um terceiro. A noite é o seu lugar preferido para as palavras escritas. “Sempre tive diários, desde pequena, escrevia até em código... Sempre preferi escrever com o silêncio do fim do dia, é até um pouco solitário esse exercício, mas que me sabe bem e me equilibra antes de ir dormir e de começar um novo dia”.

Pública: Um dia com... José Cid

Dias de palcos diferentes

Vive na vida como nas canções, algumas são fáceis de gostar e escutar, outras permanecem histórias desconhecidas. Mas são todas verdadeiras e à imagem dos seus dias, só se podiam passar com ele.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira



É natural da Chamusca, no Ribatejo mas é por aqui, na pequena aldeia de Mogofores, no meio da vegetação mais densa da zona centro do país, onde se encontra no Verão. Estão escancarados os grandes portões da sua propriedade, numa localidade que se habituou a ele, desde que ainda pequeno jogava à bola de trapos com os amigos, no pátio dos Salesianos, ali à distância da vista e das lembranças. Quando se pergunta onde é a sua casa, todos sabem apontar o caminho, acompanhando a indicação gestual com um sorriso fraterno de quem já está habituado a ouvir a mesma questão, e a entregar a mesma resposta. “Por ali”.
No jardim da entrada há cavalos à solta e um certo rebuliço contrastante com a atmosfera bucólica do lugar, um cenário que não acaba por ser de todo inesperado. “Bom dia...”. As apresentações ficam-se por aqui quando José Cid se apercebe que “está tudo de pantanas” e começa a correr atrás dos seus cavalos que se soltaram. A primeira meia hora deste dia diferente é passada a tentar colocá-los de volta nas cavalariças, mas eles parecem não ter muita vontade de cumprir a sua vontade... “Começámos bem hã”, diz com um sorriso transpirado e empoeirado depois de cumprida a espinhosa tarefa.
José Cid nunca foi muito obediente à formalidade, continua a não o ser e parece até que tudo à sua volta, acaba assim por fazer um certo sentido, não aparente. “Durante muitos anos estive fora do meio do espectáculo, dos artistas, nunca fui bem aceite em certos meios... Tinha apenas as pessoas comigo. Quanto a mim, sempre fui assim, não me preocupo muito com o que pensam”.


Dia cheio

Começou mais tarde o seu dia, hoje. Tem concerto marcado para mais logo, nas festas da Maia, onde vai apresentar o mesmo espectáculo que há alguns meses inundou o Campo Pequeno de uma plateia que o aclamou durante três horas, e do qual ficou o registo agora lançado em DVD, no mercado. “No Verão é assim, temos espectáculo de dois em dois dias, é cansativo mas não para mim que ainda estou aqui um atleta, com um bocado de barriga é certo, mas pronto para a luta”, graceja.
Durante o almoço, o telefone vai tocando ao som de uma versão sua de “Topo de Gama”, dos Clã. Amigos, familiares, ex-mulheres. Gosta de conversar e tem opinião fundamentada sobre tudo, ou quase. Sobre a qualidade da azulejaria do lugar, sobre os fãs, sobre o corte de cabelo do neto, sobre a sua música, a de outros artistas portugueses e estrangeiros, sobre o país em geral. “Isto não anda bom. Não sou anti republicano, agradam-me certas coisas da monarquias mas isto parece uma república de bananas. A ministra da cultura não é culta, a da educação não percebe nada de professores, o anterior da Saúde queria tirar-nos o direito a ela... Não é sistema de que goste porque os políticos são quase todos iguais com a excepção do Manuel Alegre... Digo-lhe que se tivesse aceite o meu apoio tinha ganho!”. José Cid é assim, gosta de dizer o que pensa, sem pensar muito nas consequências daquilo que diz. “Para quê?! A maioria dos artistas portugueses hoje em dia são educados demais, têm medo de mostrar as suas ideias livremente porque também sobrevivem à custa do sistema que está instalado e lhes dá dinheiro a ganhar. Eu não preciso disso, sei que as pessoas gostam de mim e isso chega-me. Apesar de gostar muito do meu país, o meu problema foi ter nascido em Portugal sabes?! Já tocava piano e cantava antes do Elton John aparecer, sei que sou muito melhor que ele! Alguém imagina os Rolling Stones a nascerem em Almada? Ou o Júlio Iglésias que não canta nada coitado, a nascer em Penafiel? É óbvio que não teriam tido a mesma carreira”.
Um café, um outro, e água natural, para não embaraçar a voz que o mantém ainda, e lhe adia a reforma. “Nunca me vou andar a arrastar pelos palcos e enquanto me aguentar assim, vou andar por cá”.

Do picadeiro para o estúdio
Aos 65 anos, José Cid, parece que não sente o tempo passar. “Nunca tive grandes vícios. Não bebo, não fumo nem uso drogas e mesmo assim tive uma vida animada. Divirto-me comigo próprio e não só”, humoriza, com o sorriso que lhe é característico e que deixa escapar no fim das frases, vezes sem conta ao longo do dia.
Para lá da música, participa ainda em competições equestres, outra das suas paixões antigas. “Sim, ainda nos próximos dias tenho algumas participações marcadas, é uma coisa que me faz feliz”, conta enquanto trata dos seus animais e os prepara para um passeio de fim de tarde, pelo picadeiro da sua propriedade centenária. “Sinto-me bem cá mas, no Inverno, tenho de voltar para a minha terra por causa da poluição e do frio característicos desta região”. É também aqui que tem o seu estúdio. Sobe-se a escadaria de madeira antiga, passam-se os retratos a óleo emoldurados, emoções de outros tempos em forma de elementos decorativos. “Memórias”. No último andar, alguns instrumentos antigos preanunciam ser este, um lugar de música. Abre aporta. “Sim, desde o Cai Neve em Nova Yorque que gravo tudo aqui, toda a minha obra está ligada a este sitio”, explica, enquanto observa algumas recordações que os amigos que por ali passaram, lhe foram deixando nas paredes de cortiça, e na memória. Sente-se o silêncio, por momentos. Um piano, as mesas de mistura, os microfones. Faz-se música do inesperado, em temas com a sua voz, ainda desconhecidos. “Tenho os próximos quatro álbuns já gravados”, surpreende. “Como? Já estão! Se vou cantar durante mais dez anos, não sei, mas estes já estão prontos para sair, mesmo que não esteja por cá”.

Dia de concerto
Coordena toda a equipa de produção dos seus espectáculos. Sucedem-se as chamadas telefónicas. Combina pontos de encontro com os outros músicos, agenda horários, trata de todos os pormenores com a mesma simplicidade com que come uma laranja colhida no jardim, em frente à piscina que cede aos miúdos da aldeia durante o Verão.
A Maia está em festa. José Cid e a sua “big band”, como lhe chama, são os convidados para encerrar as festividades. A tarde cai, num manto colorido pelas cores das festas típicas que se multiplicam pelo país durante os meses de Verão. Está sozinho ao piano, deixa-se ir, enquanto se fazem os testes de som em melodias desencontradas. No relvado, em frente ao palco, começam a juntar-se algumas pessoas. Sentam-se e cantam baixinho as canções que já sabem de cor. “Acho que já está tudo em ordem”, diz para si. “Sei que tenho canções que ficaram na memória das pessoas deste país, de norte a sul, velhos e novos, ricos e pobres. Tenho outras que ninguém conhece. Por exemplo na década de noventa toda a gente pensa que desapareci quando no fundo andava a fazer coisas de qualidade que ainda hoje ninguém conhece, é pena mas não renego a carreira que tenho, as coisas boas e más que fui fazendo”.
Hora de jantar, faltam poucas horas para o início do seu espectáculo. Refugia-se no carro estacionado nas costas do palco, por detrás dos óculos escuros que lhe compõem a imagem pública, por debaixo de um chapéu que o deixa disfarçado e descansado enquanto cumpre o ritual antigo de dormir a sesta antes de entrar em cena. “Faço-o sempre, aproveito para descansar e por as ideias em ordem para poder estar bem mais logo”.
O verde claro do parque começa a desaparecer com a luz do sol, ocupado agora pelas cores garridas das vestimentas estivais que preenchem o recinto até onde a vista permite alcançar. Mudam-se as roupas e as conversas com os companheiros de palco, sente-se a tensão, sensação hoje em dia já bastante familiar. “Sim, apesar de já ter muitos anos disto”, diz com um sorriso, enquanto os músicos começam a preparar a sua entrada. Inicia a escalada dos degraus, quando ao seu nome, se seguem os primeiros aplausos da noite. Levanta os braços, pousa-os sobre o seu piano. “Cai neve...”,começa a tocar, apesar de ser Verão, na Maia, como diz, para agrado de quem lhe canta os êxitos do princípio ao fim. As próximas duas horas serão de boa disposição. “Acho que é isso que gosto de ser, bem disposto”.
Acaba com “O Dia em que o Rei fez anos” e abandona o palco, com o fogo de artificio que está preparado para encerrar as festividades. Assina autógrafos, tira fotografias, vai olhando o céu cheio de cores. “Dia longo este, mas bom não foi?”. Entra no carro, em direcção ao regresso a casa porque “amanhã, começa tudo outra vez”.

Pública: Um dia com... Clara Pinto Correia




Os outros caminhos do dia a dia

Caminha em passos descalços, entre o mundo dos outros, e o seu, composto de laboratórios, palavras e figuras de estilo reais que lhe preenchem o olhar sempre que acorda de manhã.



Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


“Olá, como vão?”. Universidade Lusófona de Lisboa no Campo grande. É manhã cedo ainda, dia de apresentação da tese de licenciatura do Bruno Costa Gomes, um dos seus alunos. A professora catedrática, coordenadora do curso de Biologia e do mestrado de Biologia do Desenvolvimento mantém-se próxima do grupo de alunos que aguarda, ansioso, pela prova final, distante da formalidade do traje, e dos requerimentos habituais da circunstância. “Gosto de estar perto dos jovens, de saber que no final do curso, quando estão preparados para ir fazer a sua vida, levam alguma coisa daqui, uma certa base para encarar um mundo que não é nada fácil. Adoro estudar, descobrir coisas novas... Poder depois passar isso a alguém, poder ensinar, é o melhor que há! O maior conselho que lhes costumo dar? Já o sabe de cor e repito-o desde primeiro dia... Não tenham medo”.
Clara é uma mulher diferente e gosta disso. Desafia as convenções sociais, invoca os porquês, não lhe importam os comos, desde que se sinta um sorriso pelo caminho, mesmo com a consciência liberta para a aceitação de finais nem sempre felizes. “Cresci assim, era o patinho feio que de repente despontou sem se perceber bem como... Talvez isso tenha influenciado a minha personalidade, me tenha ensinado a saber defender-me e a enfrentar o futuro”.
A sua cadela, a Bolota, acompanha-a para todo o lado e já é famosa, junto de alunos e colegas professores. Deitada aos seus pés, não parece muito interessada na tese que está a ser apresentada, ao contrario da dona, que ouve atentamente a explicação final, de cinco anos de curso, com um ligeiro brilho de orgulho no olhar.
A atribuição da nota. “Dezanove valores, parabéns”. A tenção desanuvia e cede o espaço a sorrisos, abraços, agradecimentos cúmplices e um “até breve” que se guarda sempre por perto.


Lugares incomuns

Escritora de quase meia centena de livros versando os mais variados temas e formas literárias, do romance histórico como “A Primeira Luz da Madrugada”, “o meu melhor que me levou 37 anos de trabalho de pesquisa” à literatura infantil, contando e regressando pelo caminho à forma científica, Clara foi sendo, ainda é, cronista, bióloga, viajante e tudo o mais que lhe “apetecer” pelo caminho. Aos 48 anos, e depois de se ter licenciado em Biologia pela Universidade de Lisboa, e concluído o doutoramento pela Universidade do Porto, prossegue ainda uma carreira universitária e de investigação no domínio da Embriologia no Instituto Gulbenkian de Ciência e nos Estados Unidos da América, na Universidade de Harvard. “Fui para biologia porque em pequena tinha o sonho de ser Park Ranger, numa reserva em África. Ainda hoje sonho com isso, em voltar para lá para ter paz interior e nunca acordar cansada... É o único continente em que gostava de acabar os meus dias, acho que um dia isso irá acontecer, quero isso para mim”.
Nasceu em Lisboa, na Alfredo da Costa, passou a infância em Luanda, cresceu como jornalista na redacção de “O Jornal”. Foi aprendendo a viajar e a conhecer o mundo para lá do que está à vista do horizonte. Algumas dessas histórias conta-as no seu mais recente livro, “Os Outros Caminhos do Mundo”, editado pela Oficina do Livro. “O que mais aprecio nas viagens, muito mais que a simples descrição dos locais, dos roteiros, são as pessoas. Agrada-me o lado escondido das coisas, o que não é para os turistas, a riqueza humana, a diversidade dos homens e das mulheres, os pequenos detalhes do seu quotidiano, como interagimos com essa realidades, enquanto viajantes... É todo este universo que realmente me fascina na viagem e é isso que sempre procurei contar”.

Mundo, casa e destino
Hora de almoço. No Bairro Alto, perto de sua casa, a refeição ligeira puxa pelas palavras, e desata os nós da conversa. Livros, romances, viagens que fez e que tem para cumprir, destinos múltiplos de quem ainda não sabe o que é o futuro, mesmo quando o observa ao microscópio. “A escrita para mim é como uma alimentação, é a forma como respiro e me pacifico, quando me sinto tranquila, protegida e acompanhada. Não tomo notas, vou deixando os esboços na minha cabeça até aparecer o título. Às vezes demora anos, mas só assim, nesse momento é que sei que está pronto”.
Dias perfeitos? “Estar de férias em Colares, ir para a praia furar ondas, batalhar com a água fria e voltar a casa, amaciar a pele com creme hidratante, sentar-me a escrever. Dá-me um prazer absoluto”. Um café, um outro com o Bairro a entardecer, sereno, para lá das vidraças do “Les Mauvais Garçons”.
Quanto aos dias comuns, a sua cadência que lhe guia os sentidos e lhe traça os vincos da personalidade na marcha diária das horas que passam. “Irrita-me esperar, levo-me pouco a sério e exerço sobre mim e sobre tudo o que me rodeia um sentido de humor cáustico que ajuda a relativizar as coisas, tanto as más como as boas. É um bom exercício”, lança com uma gargalhada.
Faz o caminho até sua casa descalça, sem razão aparente que não seja a de “ser uma boa sensação, depois de um dia cheio”.

Sensações
Em casa. “Costumo ouvir cânticos e sonoridades que escapem ao meu entendimento, composições melódicas sem voz que me transportem para alem do ocidente e me façam viajar... Televisão?!”. Sorri. “Gosto de ver filmes, mais no cinema até, algumas séries, mas não vejo muita de facto. Sabes que com esta experiência recente na TVI, onde entrei por uma questão de curiosidade, descobri um mundo novo para mim, cheio de gente que não esperava encontrar, um Portugal diferente com gente que faz tudo para aparecer... Ainda hei-de escrever um livro sobre esse tipo de pessoas”.
As memórias de locais longínquos pontuam o seu espaço. Tapetes do oriente, estatuetas africanas, odores miscigenados em cores berrantes, lembranças que trouxe consigo e fazem agora parte integrante de si própria, de quem sempre quis ser.
“Mesmo que tivesse namorado e lhe fosse muito fiel, nunca resistiria ao Mick Jagger”. A frase, inesperada, é complementada com um sorriso cúmplice, pleno de inocência e pecado, contrastes que se percebem na sua expressão, que fazem parte dela. “Sabes que me costumam tratar como uma miúda mas tenho quase 50 anos! Acho que isso até é bom sinal, de que me mantenho jovem de espírito e resisti às amarguras da vida. Já tive quase de tudo, há pouca coisa que não tenha experimentado, não tive uma vida fácil...”. Silêncio.
Sentada na sala da sua casa, com vista para as ruelas estreitas do bairro, a luz da tarde inunda-lhe o olhar, de perfil, que permanece de fora da conversa, a imaginar outros cenários, em busca da palavra certa, para a emoção que escolheu tomar conta do momento. “Penso muitas vezes em sair de Portugal, mas também sei que este pais é bom para criar filhos, e tem algumas coisas boas. Acho que está tudo um pouco estagnado, não sei até que ponto serei feliz aqui. Não sei porquê, mas sinto que ao longo dos anos tem havido muita gente que simplesmente me detesta”. Uma pausa de silêncio, brevemente interrompida. “Magoa-me isso, que façam juízos de valor a meu respeito sem me conhecerem”.
O livro, o mais recente aguarda-a no computador ainda em formato de rascunho principiante. “Está na hora de regressar para ele”. Um leve sorriso, até breve.

Pública: Um dia com... Margarida Rebelo Pinto


Dias escritos em ritmos diferentes

Quando está a escrever não sai de casa, consome todo o seu tempo entre a imaginação e as palavras. Depois, vêm as promoções, as entrevistas, as campanhas de marketing ou, a outra face de uma outra Margarida, que também lhe dá “muito gozo”.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


Oficina do Livro, Algés. Quando a porta do elevador se abre lentamente, não demoram a fazer-se notar, os painéis de cartão promocionais com a sua cara, com o seu nome. Margarida, best-seller, não há coincidências... Há livros seus encaixotados e prontos a serem enviados para hipermercados, quiosques e Fnac´s de todo o país. É a máquina da escritora portuguesa que mais vende, e onde ela própria participa, “sempre” em equipa, como gosta de referir. “Depois de acabado o livro, os dois meses seguintes são passados aqui, na revisão, na preparação da capa, na definição da campanha de marketing, com os distribuidores... Escrever é a organização do caos interior, é o que gosto de fazer! Mas também me agrada estar presente na outra parte do processo, até porque tenho experiência em algumas dessas áreas, sei o que as pessoas querem. Além disso sinto-me bem com toda esta equipa, conheço todos eles desde que a editora abriu há oito anos, somos amigos, e passo aqui muitas vezes o dia inteiro”.


Português Suave
Margarida Rebelo Pinto licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas na Universidade Clássica. Depois de uma passagem pela área da publicidade como copywriter, prosseguiu com a escrita, então nas páginas do Independente, depois no Sete”, na Marie Claire, ou no Diário de Notícias. Passou também pela RTP, onde foi chefiada pelo hoje ´rival` do mercado livreiro, José Rodrigues dos Santos. “Gosto muito dele, aliás sempre me disse que tinha jeito para escrever e que devia fazê-lo profissionalmente. O nosso mercado é pequeno para essas rivalidade. Já com o Miguel Sousa Tavares também quiseram arranjar uma polémica, quando gosto imenso dele! Acho que ele está para o romance de época como eu estou para o romance urbano”.
Em 1999, fá-lo e materializa um dos seus sonhos. "Sei Lá", o primeiro romance, é um estrondo comercial, fenómeno que se repetiria no seguinte como, em quase todos os que têm a sua assinatura, a sua marca. Hoje, perto do milhão de livros vendidos, olha para trás, com outro à vontade. “O primeiro é o mais ingénuo de todos... Só com O Diário da Tua Ausência percebi que era isto, que tinha achado o caminho, que me tinha encontrado a mim e me senti confortável para continuar”.
Na sala onde costuma aproveitar para aperfeiçoar os textos, escritos no computador que a acompanha para todo o lado, durante os nove meses anteriores, o mar para lá das vidraças, e o bonsai em cima da mesa prenunciam-se como os sinais mais evidentes de toda a tranquilidade de que precisa. “Sou uma viciada em trabalho, sabe?”, expressão que utiliza várias vezes, ao longo do correr do dia.
Um ano depois de ter sofrido um AVC, regressa aos escaparates e, como quase sempre desde que começou a escrever, ocupou logo na primeira semana, o lugar cimeiro dos tops de vendas do mercado livreiro. De norte a sul do país, as mesas de cabeceira voltam a encher-se com as suas palavras e ideias sobre as relações entre as pessoas.
“Lembro-me que esse período foi complicado mas nunca pensei em morrer. Repare, não fumo nem bebo, levo uma vida saudável, gostava de fazer desporto e de repente dizem-me que tenho uma artéria bloqueada e que têm de me operar ao coração...O que me passou pela cabeça? Os projectos que tinha de concretizar, as histórias que tinha ainda para contar”. Sorri, como quem não quer destapar as marcas, que o tempo ainda não soube cicatrizar. “Claro que sim... Lembro-me que tudo isto aconteceu pouco tempo depois de ter escrito A Rapariga que perdeu o Coração... Engraçado não é. Não há mesmo coincidências?”, deixa escapar, com uma gargalhada.


Dias úteis
Não costuma escrever à noite, prefere a luz dos dias, a mesma que lhe iluminou o caminho para o mais ambicioso de todos os seus livros, até agora. Português Suave, lançado há duas semanas no mercado. “Sou ambiciosa, não escondo isso, nem tenho vergonha de o assumir. Normalmente todos os anos tenho dois objectivos profissionais e um pessoal. Este ano, dois já estão, falta um terceiro, que é a internacionalização, mas estou a trabalhar nisso! Se não podia arranjar objectivos mais comuns? Quais, feliz já eu sou, e eu preciso desta adrenalina”. A palavra utilizada, contrasta na etimologia, com o nome do seu mais recente livro. “A brandura... Aí está se calhar a pior ´qualidade` dos portugueses... Quis chegar aí, precisamente”. Na varanda que dá para o Tejo, com o olhar distante buscando o horizonte, chama-lhe... desafio. “Quis dar este passo, escrever um romance com consciência narrativa diacrónica, em que retratasse três gerações diferentes indo mais aos aspectos sociológicos e históricos de cada época, sem nunca deixar de ter as histórias de amor e as intrigas familiares que me interessam tanto. Ver o que mudou afinal e acho que não mudou assim tanto onde é mais importante, no íntimo de cada um, nos comportamentos e nas reacções que continuam fechadas, desconfiadas. O pior defeito de muita gente continua a ser a mesquinhez e a inveja, as coisas que mais detesto em qualquer ser humano”.

Passear, ler e escrever
Margarida aprecia certas rotinas, “apenas quando elas são boas e nunca durante demasiado tempo. Quase todos os meses tenho de fazer uma viagem, para respirar e sentir que o mundo é um lugar tão grande afinal”. Por cá, tem sitio para almoçar quando está pela Oficina, “onde já sabem a sopa que gosto e o que me agrada”, caminhos para passear, livros para ler, Moleskines, vários, para preencher de rabiscos e ideias soltas que a interpelam sem licença, no dia a dia, talvez, como diz, “o segredo” para saber dizer o que as pessoas querem sentir. “Faço-o muito, estou sempre atenta às conversas que se desenrolam à minha volta. Ando na rua, converso com toda a gente, tenho muitos amigos... Muitas dessas coisas acabam por dar origem a personagens, acrescentar-lhes conteúdo, ou apenas um pequeno traço de realidade que as distinga”. Nos rabiscos feitos à mão, os esboços do futuro próximo da sua vida profissional, traçados já. “Tenho aqui por exemplo mais cinco livros já pensados que irão preencher os próximos sete anos da minha vida”, graceja.
Um café, um doce “que está a apetecer”, e um passeio pelos livros da sua vida e pelos escritores que lhe avivam os tempos mortos. De Hesse, passando por Pessoa, Lobo Antunes e “tantos outros”, deixa escapar, enquanto folheia a edição inglesa da Mensagem.
Toca o telefone. Uma constante ao longo do dia, ainda para mais em época de promoção. Dispõe o sorriso e a simpatia, para quem está do outro lado, desliga e volta a atender, recebe e troca mensagens. Não lhe agradam aliás as “adulterações” linguísticas das SMS. “Não sou nada dessas coisas de fazer abreviaturas e usar capas”, humoriza, enquanto guarda o telefone na sacola de Verão, onde, entre a toalha e a leitura de praia para a qual acaba por “nunca arranjar tempo”, começa a tocar novamente.
Quando a tarde se começa a fazer sentir nos relógios, chega o tempo do habitual passeio à beira mar. “Desde que tive o problema no ano passado que não posso fazer grandes esforços, por isso ando imenso, entre Paço D´arcos e Cascais, mas também aqui, por Belém, uma zona que gosto muito, pelo rio, pela calma”.
Na esplanada da Piazza di Mare, as pessoas observam-na, quando chega. Falam baixo, quase em sussurro, como é comum acontecer quando alguma figura pública se aproxima. “Se me faz confusão? Claro que não, e abordam-me imenso. Tenho pessoas que me vieram dizer que lhes salvei a vida, ou que os ajudei a resolver os seus problemas pessoais. Isso para mim é que é o verdadeiro sucesso! Como lido com ele? Ligo à minha mãe, converso com ela, aproveito o tempo com o meu filho... Se eu não fosse feliz como mãe, enquanto mulher e como filha nunca seria verdadeiramente completa".