Dias de palcos diferentes
Vive na vida como nas canções, algumas são fáceis de gostar e escutar, outras permanecem histórias desconhecidas. Mas são todas verdadeiras e à imagem dos seus dias, só se podiam passar com ele.
Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira
É natural da Chamusca, no Ribatejo mas é por aqui, na pequena aldeia de Mogofores, no meio da vegetação mais densa da zona centro do país, onde se encontra no Verão. Estão escancarados os grandes portões da sua propriedade, numa localidade que se habituou a ele, desde que ainda pequeno jogava à bola de trapos com os amigos, no pátio dos Salesianos, ali à distância da vista e das lembranças. Quando se pergunta onde é a sua casa, todos sabem apontar o caminho, acompanhando a indicação gestual com um sorriso fraterno de quem já está habituado a ouvir a mesma questão, e a entregar a mesma resposta. “Por ali”.
No jardim da entrada há cavalos à solta e um certo rebuliço contrastante com a atmosfera bucólica do lugar, um cenário que não acaba por ser de todo inesperado. “Bom dia...”. As apresentações ficam-se por aqui quando José Cid se apercebe que “está tudo de pantanas” e começa a correr atrás dos seus cavalos que se soltaram. A primeira meia hora deste dia diferente é passada a tentar colocá-los de volta nas cavalariças, mas eles parecem não ter muita vontade de cumprir a sua vontade... “Começámos bem hã”, diz com um sorriso transpirado e empoeirado depois de cumprida a espinhosa tarefa.
José Cid nunca foi muito obediente à formalidade, continua a não o ser e parece até que tudo à sua volta, acaba assim por fazer um certo sentido, não aparente. “Durante muitos anos estive fora do meio do espectáculo, dos artistas, nunca fui bem aceite em certos meios... Tinha apenas as pessoas comigo. Quanto a mim, sempre fui assim, não me preocupo muito com o que pensam”.
Dia cheio
Começou mais tarde o seu dia, hoje. Tem concerto marcado para mais logo, nas festas da Maia, onde vai apresentar o mesmo espectáculo que há alguns meses inundou o Campo Pequeno de uma plateia que o aclamou durante três horas, e do qual ficou o registo agora lançado em DVD, no mercado. “No Verão é assim, temos espectáculo de dois em dois dias, é cansativo mas não para mim que ainda estou aqui um atleta, com um bocado de barriga é certo, mas pronto para a luta”, graceja.
Durante o almoço, o telefone vai tocando ao som de uma versão sua de “Topo de Gama”, dos Clã. Amigos, familiares, ex-mulheres. Gosta de conversar e tem opinião fundamentada sobre tudo, ou quase. Sobre a qualidade da azulejaria do lugar, sobre os fãs, sobre o corte de cabelo do neto, sobre a sua música, a de outros artistas portugueses e estrangeiros, sobre o país em geral. “Isto não anda bom. Não sou anti republicano, agradam-me certas coisas da monarquias mas isto parece uma república de bananas. A ministra da cultura não é culta, a da educação não percebe nada de professores, o anterior da Saúde queria tirar-nos o direito a ela... Não é sistema de que goste porque os políticos são quase todos iguais com a excepção do Manuel Alegre... Digo-lhe que se tivesse aceite o meu apoio tinha ganho!”. José Cid é assim, gosta de dizer o que pensa, sem pensar muito nas consequências daquilo que diz. “Para quê?! A maioria dos artistas portugueses hoje em dia são educados demais, têm medo de mostrar as suas ideias livremente porque também sobrevivem à custa do sistema que está instalado e lhes dá dinheiro a ganhar. Eu não preciso disso, sei que as pessoas gostam de mim e isso chega-me. Apesar de gostar muito do meu país, o meu problema foi ter nascido em Portugal sabes?! Já tocava piano e cantava antes do Elton John aparecer, sei que sou muito melhor que ele! Alguém imagina os Rolling Stones a nascerem em Almada? Ou o Júlio Iglésias que não canta nada coitado, a nascer em Penafiel? É óbvio que não teriam tido a mesma carreira”.
Um café, um outro, e água natural, para não embaraçar a voz que o mantém ainda, e lhe adia a reforma. “Nunca me vou andar a arrastar pelos palcos e enquanto me aguentar assim, vou andar por cá”.
Do picadeiro para o estúdio
Aos 65 anos, José Cid, parece que não sente o tempo passar. “Nunca tive grandes vícios. Não bebo, não fumo nem uso drogas e mesmo assim tive uma vida animada. Divirto-me comigo próprio e não só”, humoriza, com o sorriso que lhe é característico e que deixa escapar no fim das frases, vezes sem conta ao longo do dia.
Para lá da música, participa ainda em competições equestres, outra das suas paixões antigas. “Sim, ainda nos próximos dias tenho algumas participações marcadas, é uma coisa que me faz feliz”, conta enquanto trata dos seus animais e os prepara para um passeio de fim de tarde, pelo picadeiro da sua propriedade centenária. “Sinto-me bem cá mas, no Inverno, tenho de voltar para a minha terra por causa da poluição e do frio característicos desta região”. É também aqui que tem o seu estúdio. Sobe-se a escadaria de madeira antiga, passam-se os retratos a óleo emoldurados, emoções de outros tempos em forma de elementos decorativos. “Memórias”. No último andar, alguns instrumentos antigos preanunciam ser este, um lugar de música. Abre aporta. “Sim, desde o Cai Neve em Nova Yorque que gravo tudo aqui, toda a minha obra está ligada a este sitio”, explica, enquanto observa algumas recordações que os amigos que por ali passaram, lhe foram deixando nas paredes de cortiça, e na memória. Sente-se o silêncio, por momentos. Um piano, as mesas de mistura, os microfones. Faz-se música do inesperado, em temas com a sua voz, ainda desconhecidos. “Tenho os próximos quatro álbuns já gravados”, surpreende. “Como? Já estão! Se vou cantar durante mais dez anos, não sei, mas estes já estão prontos para sair, mesmo que não esteja por cá”.
Dia de concerto
Coordena toda a equipa de produção dos seus espectáculos. Sucedem-se as chamadas telefónicas. Combina pontos de encontro com os outros músicos, agenda horários, trata de todos os pormenores com a mesma simplicidade com que come uma laranja colhida no jardim, em frente à piscina que cede aos miúdos da aldeia durante o Verão.
A Maia está em festa. José Cid e a sua “big band”, como lhe chama, são os convidados para encerrar as festividades. A tarde cai, num manto colorido pelas cores das festas típicas que se multiplicam pelo país durante os meses de Verão. Está sozinho ao piano, deixa-se ir, enquanto se fazem os testes de som em melodias desencontradas. No relvado, em frente ao palco, começam a juntar-se algumas pessoas. Sentam-se e cantam baixinho as canções que já sabem de cor. “Acho que já está tudo em ordem”, diz para si. “Sei que tenho canções que ficaram na memória das pessoas deste país, de norte a sul, velhos e novos, ricos e pobres. Tenho outras que ninguém conhece. Por exemplo na década de noventa toda a gente pensa que desapareci quando no fundo andava a fazer coisas de qualidade que ainda hoje ninguém conhece, é pena mas não renego a carreira que tenho, as coisas boas e más que fui fazendo”.
Hora de jantar, faltam poucas horas para o início do seu espectáculo. Refugia-se no carro estacionado nas costas do palco, por detrás dos óculos escuros que lhe compõem a imagem pública, por debaixo de um chapéu que o deixa disfarçado e descansado enquanto cumpre o ritual antigo de dormir a sesta antes de entrar em cena. “Faço-o sempre, aproveito para descansar e por as ideias em ordem para poder estar bem mais logo”.
O verde claro do parque começa a desaparecer com a luz do sol, ocupado agora pelas cores garridas das vestimentas estivais que preenchem o recinto até onde a vista permite alcançar. Mudam-se as roupas e as conversas com os companheiros de palco, sente-se a tensão, sensação hoje em dia já bastante familiar. “Sim, apesar de já ter muitos anos disto”, diz com um sorriso, enquanto os músicos começam a preparar a sua entrada. Inicia a escalada dos degraus, quando ao seu nome, se seguem os primeiros aplausos da noite. Levanta os braços, pousa-os sobre o seu piano. “Cai neve...”,começa a tocar, apesar de ser Verão, na Maia, como diz, para agrado de quem lhe canta os êxitos do princípio ao fim. As próximas duas horas serão de boa disposição. “Acho que é isso que gosto de ser, bem disposto”.
Acaba com “O Dia em que o Rei fez anos” e abandona o palco, com o fogo de artificio que está preparado para encerrar as festividades. Assina autógrafos, tira fotografias, vai olhando o céu cheio de cores. “Dia longo este, mas bom não foi?”. Entra no carro, em direcção ao regresso a casa porque “amanhã, começa tudo outra vez”.
agosto 22, 2008
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