agosto 22, 2008

Pública: Um dia com... Marta Crawford

Ter ou não ter... tabus

Preliminares, consultas, palavras soltas e sorrisos, “num dia de cada vez”, o segredo terapêutico para uma relação, qualquer que ela seja, com os outros, e consigo própria.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


“Olha a doutora da televisão”. Sorri. Está habituada a ser personagem conhecida de vários públicos, mesmo afastada dos horários nocturnos dos ecrãs, onde há alguns anos apareceu, com o êxito de audiências que foi, ABSexo. “Olá...”, responde com outro sorriso. Marta Crawford, lida bem com isso e com muitas outras coisas que fazem “confusão a gente de mais”.
Na esplanada do Deli Delux, na Bica do Sapato, o rio corre lânguido, tranquilo, e sereno, como o silêncio de um restaurante sempre que ainda não é hora de almoço. “Gosto de vir aqui, depois das consultas da manhã. Bebo um copo de vinho, penso... Não gosto muito de almoçar sozinha, gosto de conversar, aproveitar o momento. Mas também gosto de tascas”, lança, como quem não quer deixar escapar o gosto pelo requinte, saboreado das mais diversas formas. “Depende do momento, como tudo não é?!”.


Com e sem farda

Uma salada leve, como os assuntos que vão tomando a tona da conversa. Parece ser essa, aliás, uma das suas formas de lidar com todas as questões. “Simplificar, não minimizar”. Ao longe, um navio da marinha brasileira, aporta ao cais. Fardas, fetiches e simbologias literárias, mundanas e reais. Um sorriso primeiro, depois a abordagem clínica da questão. “As fardas são normalmente símbolos de autoridade, hierarquia, com um estatuto social associado... Nem todas as mulheres têm esse fascínio pelo `Oficial e Cavalheiro`, do qual aliás, gosto bastante”, deixa escapar, com humor.
Licenciada em Psicologia Clínica pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Marta Crawford especializou-se depois em Sexologia Clínica pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia onde chegou a dar aulas. Terapeuta Sexual acreditada pela Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica, não se vê, “de longe”, como a famosa Dra. Ruth Remédios, personagem humorística imortalizada por Herman José, muito antes sequer de chegar aos ecrãs da TVI onde apareceu e se descobriu, para além do que estava à espera. “Foi uma boa experiência essa. Lembro-me de no primeiro dia, após as gravações ter ido às compras e de me interpelarem. Não estava à espera dessa reacção, para ser sincera, nem tinha pensado bem nas consequências de começar a aparecer na televisão. Desde aí, sinto que as pessoas se identificam comigo, sabem que não as vou criticar ou julgar, não tenho o hábito de ser paternalista! Ganhei-lhe o gosto, e espero em breve regressar, com um formato um pouco diferente daquele, está para breve, espero”.
Até há três anos, pertenceu à equipa de aconselhamento e encaminhamento telefónico da linha SOS Dificuldades Sexuais, trabalhou no Instituto de Emprego e Formação Profissional e colaborou no acompanhamento psicológico de utentes do Serviço de Psicoterapia Comportamental do Hospital Júlio de Matos na consulta de sexologia, “uma experiência muito enriquecedora”.
Para lá das acções de formação e de actualização nas áreas de sexologia e de terapia familiar, apresenta ainda regularmente comunicações em congressos e seminários relacionados com sexologia. Escuta bastante mais do que fala. “Defeito profissional! Levanto-me normalmente pelas oito horas da manhã, levo o João (um dos dois filhos) ao colégio e depois vou ao ginásio”. Dá uma gargalhada, daquelas que prenunciam uma boa intenção, nem sempre cumprida. “Bem... Não sou muito dessas coisas...mas como sempre tive tendência a ser forte, tem de ser!”.


No consultório com...

Na Alameda, em frente ao jardim, e com o Instituto Superior Técnico ao cimo da rua, o seu consultório. “Chegámos. É aqui que costumo passar grande parte dos meus dias”.
No entra e sai próprio de uma clínica no centro de Lisboa, casos da vida, de muitas delas, dos frutos proibidos pela falta de amor, à desinspiração provocada pela sucessão de dias com suores frios de trabalho a mais e momentos de prazer... a menos. “O amor nem é o mais importante sabe, porque se pode amar e não se ter uma relação sexual satisfatória. E o contrário também. Chegam-me muitas pessoas que acham que nunca vão encontrar o amor... Digo-lhes que pode ter várias formas, o que é preciso e esse é um grande problema hoje em dia, é tempo para as cultivar! Para mim o que é o amor? Todos encontramos alguém que nos faz sentir bem... mas gosto de todas as boas sensações que possa encontrar, como quando se bebe um bom vinho, quando comemos um chocolate, ou damos um mergulho no mar...”.
Dos dramas que já ouviu contar, que ajudou a sarar, a maioria permanecem nos ficheiros clínicos arrumados ao computador. Outros, no entanto, ultrapassam o disco rígido e ficam marcados na sua personalidade, para lá dos limites da sala e da profissão. “Não me impressiono com tanta facilidade assim, mas é impossível não haverem situações que nos fiquem na memória e que depois não acabemos por levar para casa. Acontece-me isso por vezes, é humano e há casos em que apetece ir lá ter com o marido e dizer-lhe das boas!”
Senta-se no cadeirão confortável da sala onde se nota a ausência de um elemento cenográfico que sempre se aguarda, neste tipo de espaços, o famoso sofá dos pacientes. “Isso é nos psicanalistas”, lança numa gargalhada. Coloca os óculos de massa, e o ar profissional. “Hora de consulta, até já”.


Teoria e prática

Para quem domina os recantos da psique humana, as arestas da sexualidade, os medos comuns, a interpelação dos próprios receios, com objectividade clínica é por vezes, e como lhe chama, um “desafio”, nem sempre conquistado à partida. Na Marta, para lá da sexóloga, moram as dúvidas e as respostas, comuns a todos. “Como em tudo, há uma grande diferença entre a teoria e a prática. Costuma dizer-se que ´em casa de ferreiro, espeto de pau`, mas posso dizer que sou feliz, nos mais variados aspectos apesar de também ter os meus problemas”.
Foge habitualmente, e sem o pretender de forma intencional, ao perfil típico do terapeuta sexual como se poderia imaginar. Imagem cuidada, ainda jovem, sem recorrer em demasia a conceitos técnicos apropriados de literatura especializada “Se ser ou não ser bonita... ajuda?! Só tive uma vez um caso de uma pessoa se ter ido embora por eu ser mulher! Também pode complicar por vezes, mas a postura profissional serve para isso mesmo. Se ser feminista representa a defesa de um principio de igualdade e de não supremacia de ninguém, então assumo-o!”. Sorri.
Guarda habitualmente os finais de tarde para passear pela Avenida de Roma, sentar-se na esplanada da Mexicana a beber um café e a contemplar o dia que passou, e o amanhã que há de vir. A igreja por perto, no meio da praça, evoca os retratos de como vai o Sexo, na Cidade que lhe aparecem-lhe nas consultas, na rua, no email. Tenta responder-lhes “sempre” que pode. “Recebo muita correspondência das mais variadas formas, é verdade. Como acho que os portugueses vêm hoje o sexo? Ainda é um dogma e isso não é bom! Penso que se calhar o maior problema hoje em dia tem a ver com a falta de desejo sexual, a falta de vontade, porventura em resultado da falta de tempo, do stress diário... e hoje começa até a aparecer um novo fenómeno, porque existem cada vez mais homens com este problema”.
Para além da personagem clínica, da figura pública, Marta Crawford gosta de se reservar para si, e para quem pertence ao seu mundo de afectos. “Tenho um espaço privado muito meu, não gosto de ser observada... Criei até uma série de fobias desde que comecei a aparecer na televisão”, humoriza. Mais a sério... “Pessoalmente, procuro sempre alcançar e manter o estado de felicidade, a satisfação plena em todas as situações. Aos olhos dos outros, as nossas vidas são sempre perfeitas, mas há perdas, etapas difíceis que temos de cumprir. Consigo lidar com isso, mas tenho também um lado mais negativo que aceito como algo que me faz apreciar devidamente a felicidade quando ela aparece”.
Depois do lançamento do seu segundo livro, “Sexo com Prazer”, prepara agora um terceiro. A noite é o seu lugar preferido para as palavras escritas. “Sempre tive diários, desde pequena, escrevia até em código... Sempre preferi escrever com o silêncio do fim do dia, é até um pouco solitário esse exercício, mas que me sabe bem e me equilibra antes de ir dormir e de começar um novo dia”.

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