agosto 22, 2008
Pública: Um dia com... Clara Pinto Correia
Os outros caminhos do dia a dia
Caminha em passos descalços, entre o mundo dos outros, e o seu, composto de laboratórios, palavras e figuras de estilo reais que lhe preenchem o olhar sempre que acorda de manhã.
Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira
“Olá, como vão?”. Universidade Lusófona de Lisboa no Campo grande. É manhã cedo ainda, dia de apresentação da tese de licenciatura do Bruno Costa Gomes, um dos seus alunos. A professora catedrática, coordenadora do curso de Biologia e do mestrado de Biologia do Desenvolvimento mantém-se próxima do grupo de alunos que aguarda, ansioso, pela prova final, distante da formalidade do traje, e dos requerimentos habituais da circunstância. “Gosto de estar perto dos jovens, de saber que no final do curso, quando estão preparados para ir fazer a sua vida, levam alguma coisa daqui, uma certa base para encarar um mundo que não é nada fácil. Adoro estudar, descobrir coisas novas... Poder depois passar isso a alguém, poder ensinar, é o melhor que há! O maior conselho que lhes costumo dar? Já o sabe de cor e repito-o desde primeiro dia... Não tenham medo”.
Clara é uma mulher diferente e gosta disso. Desafia as convenções sociais, invoca os porquês, não lhe importam os comos, desde que se sinta um sorriso pelo caminho, mesmo com a consciência liberta para a aceitação de finais nem sempre felizes. “Cresci assim, era o patinho feio que de repente despontou sem se perceber bem como... Talvez isso tenha influenciado a minha personalidade, me tenha ensinado a saber defender-me e a enfrentar o futuro”.
A sua cadela, a Bolota, acompanha-a para todo o lado e já é famosa, junto de alunos e colegas professores. Deitada aos seus pés, não parece muito interessada na tese que está a ser apresentada, ao contrario da dona, que ouve atentamente a explicação final, de cinco anos de curso, com um ligeiro brilho de orgulho no olhar.
A atribuição da nota. “Dezanove valores, parabéns”. A tenção desanuvia e cede o espaço a sorrisos, abraços, agradecimentos cúmplices e um “até breve” que se guarda sempre por perto.
Lugares incomuns
Escritora de quase meia centena de livros versando os mais variados temas e formas literárias, do romance histórico como “A Primeira Luz da Madrugada”, “o meu melhor que me levou 37 anos de trabalho de pesquisa” à literatura infantil, contando e regressando pelo caminho à forma científica, Clara foi sendo, ainda é, cronista, bióloga, viajante e tudo o mais que lhe “apetecer” pelo caminho. Aos 48 anos, e depois de se ter licenciado em Biologia pela Universidade de Lisboa, e concluído o doutoramento pela Universidade do Porto, prossegue ainda uma carreira universitária e de investigação no domínio da Embriologia no Instituto Gulbenkian de Ciência e nos Estados Unidos da América, na Universidade de Harvard. “Fui para biologia porque em pequena tinha o sonho de ser Park Ranger, numa reserva em África. Ainda hoje sonho com isso, em voltar para lá para ter paz interior e nunca acordar cansada... É o único continente em que gostava de acabar os meus dias, acho que um dia isso irá acontecer, quero isso para mim”.
Nasceu em Lisboa, na Alfredo da Costa, passou a infância em Luanda, cresceu como jornalista na redacção de “O Jornal”. Foi aprendendo a viajar e a conhecer o mundo para lá do que está à vista do horizonte. Algumas dessas histórias conta-as no seu mais recente livro, “Os Outros Caminhos do Mundo”, editado pela Oficina do Livro. “O que mais aprecio nas viagens, muito mais que a simples descrição dos locais, dos roteiros, são as pessoas. Agrada-me o lado escondido das coisas, o que não é para os turistas, a riqueza humana, a diversidade dos homens e das mulheres, os pequenos detalhes do seu quotidiano, como interagimos com essa realidades, enquanto viajantes... É todo este universo que realmente me fascina na viagem e é isso que sempre procurei contar”.
Mundo, casa e destino
Hora de almoço. No Bairro Alto, perto de sua casa, a refeição ligeira puxa pelas palavras, e desata os nós da conversa. Livros, romances, viagens que fez e que tem para cumprir, destinos múltiplos de quem ainda não sabe o que é o futuro, mesmo quando o observa ao microscópio. “A escrita para mim é como uma alimentação, é a forma como respiro e me pacifico, quando me sinto tranquila, protegida e acompanhada. Não tomo notas, vou deixando os esboços na minha cabeça até aparecer o título. Às vezes demora anos, mas só assim, nesse momento é que sei que está pronto”.
Dias perfeitos? “Estar de férias em Colares, ir para a praia furar ondas, batalhar com a água fria e voltar a casa, amaciar a pele com creme hidratante, sentar-me a escrever. Dá-me um prazer absoluto”. Um café, um outro com o Bairro a entardecer, sereno, para lá das vidraças do “Les Mauvais Garçons”.
Quanto aos dias comuns, a sua cadência que lhe guia os sentidos e lhe traça os vincos da personalidade na marcha diária das horas que passam. “Irrita-me esperar, levo-me pouco a sério e exerço sobre mim e sobre tudo o que me rodeia um sentido de humor cáustico que ajuda a relativizar as coisas, tanto as más como as boas. É um bom exercício”, lança com uma gargalhada.
Faz o caminho até sua casa descalça, sem razão aparente que não seja a de “ser uma boa sensação, depois de um dia cheio”.
Sensações
Em casa. “Costumo ouvir cânticos e sonoridades que escapem ao meu entendimento, composições melódicas sem voz que me transportem para alem do ocidente e me façam viajar... Televisão?!”. Sorri. “Gosto de ver filmes, mais no cinema até, algumas séries, mas não vejo muita de facto. Sabes que com esta experiência recente na TVI, onde entrei por uma questão de curiosidade, descobri um mundo novo para mim, cheio de gente que não esperava encontrar, um Portugal diferente com gente que faz tudo para aparecer... Ainda hei-de escrever um livro sobre esse tipo de pessoas”.
As memórias de locais longínquos pontuam o seu espaço. Tapetes do oriente, estatuetas africanas, odores miscigenados em cores berrantes, lembranças que trouxe consigo e fazem agora parte integrante de si própria, de quem sempre quis ser.
“Mesmo que tivesse namorado e lhe fosse muito fiel, nunca resistiria ao Mick Jagger”. A frase, inesperada, é complementada com um sorriso cúmplice, pleno de inocência e pecado, contrastes que se percebem na sua expressão, que fazem parte dela. “Sabes que me costumam tratar como uma miúda mas tenho quase 50 anos! Acho que isso até é bom sinal, de que me mantenho jovem de espírito e resisti às amarguras da vida. Já tive quase de tudo, há pouca coisa que não tenha experimentado, não tive uma vida fácil...”. Silêncio.
Sentada na sala da sua casa, com vista para as ruelas estreitas do bairro, a luz da tarde inunda-lhe o olhar, de perfil, que permanece de fora da conversa, a imaginar outros cenários, em busca da palavra certa, para a emoção que escolheu tomar conta do momento. “Penso muitas vezes em sair de Portugal, mas também sei que este pais é bom para criar filhos, e tem algumas coisas boas. Acho que está tudo um pouco estagnado, não sei até que ponto serei feliz aqui. Não sei porquê, mas sinto que ao longo dos anos tem havido muita gente que simplesmente me detesta”. Uma pausa de silêncio, brevemente interrompida. “Magoa-me isso, que façam juízos de valor a meu respeito sem me conhecerem”.
O livro, o mais recente aguarda-a no computador ainda em formato de rascunho principiante. “Está na hora de regressar para ele”. Um leve sorriso, até breve.
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