março 01, 2008

Diário de Notícias: O jogo da vida


Costuma dizer que já subiu e desceu as escadarias mais altas. É um conhecedor da Vida, um amante da Viagem, um experiencialista do Destino. Homem do campo, amigo íntimo e profundo das cidades, das serras e dos homens. Amigo das palavras que foi conhecendo por as sentir, prefere os que fazem o mundo e o transformam com a força das mãos. Despreza o medo, “porque nos aprisiona o futuro” e existe, como todas as coisas que não têm uma explicação demasiado óbvia.
Manuel Nicolau Covas é um daqueles casos que se encontram por acaso. Tem por isso o valor da raridade. Na vida, na história e em momentos para contar e encantar quem quiser Ser.





Texto
Pedro Cativelos


Fotografia
António Valente



“A minha vida começou cedo. Trabalhava aos 11 anos numa padaria, emigrei pouco depois dos 16, vivi estes anos todos, cresci, conheci e ainda não morri”. Sorri. Como sempre que sabe que estão atentos aos seus pensamentos. “Quando decidi abandonar o país, fi-lo porque isto não avançava e o Salazar estava a dar-nos cabo da vida. Atravessei a fronteira com dois amigos. Queria ir para Bruxelas onde tinha um familiar mas perdi o passaporte na fronteira para Espanha”. A Viagem enquanto forma de destruição dos limites impostos pelo horizonte visual sempre o atraiu. Não sabe bem porquê, mas sabia que tinha de ir, sem pensar em olhar para trás.

“Conheci então uns trabalhadores espanhóis que trabalhavam do lado francês. Arranjei uma cartolina verde, e mostrei-a. Como éramos tantos, os guardas nem repararam. Passei e fui imediatamente para Paris, mas já estava a ficar sem dinheiro”, conta.

Na GareduNord, quase se perdeu, mas encontrou a linha certa que lhe daria lastro às ilusões. “Continuava sem papéis, falava mal espanhol, nada de francês. Mas havia sempre um português por perto, para conversar. Apanhei uns no comboio para Bruxelas. Quando saíram, deixei-me dormir e quando acordei já estava na Alemanha, imagine! E eles a pedirem-me os papéis, naquela língua agressiva. Puseram-me fora da carruagem e tive de voltar para trás mas lá cheguei a Bruxelas finalmente”.

Manuel Covas tem daqueles nomes que até se conjugam com a pessoa que é. “Seriam precisas muitas covas” para as vidas que já teve. Mesmo assim, não fariam esquecer as memórias que se multiplicam na exacta medida em que se vão desfiando as meadas à conversa. “Ainda estive alguns dias sem trabalhar. Depois acabei por arranjar emprego como mineiro de carvão. Gostei!”. Como é possível? A resposta surge tão simples, como esclarecedora do modo como encara a existência humana. “Fiquei a conhecer como se trabalha numa mina, passei a saber mais”. Seis meses depois, e na companhia de um outro português, dos muitos que procuravam um futuro melhor nas profundezas do chão, “um campeão de luta greco-romana, o Pena que também era um viajante”, emigrou outra vez. “Desta vez fomos para Colónia, na Alemanha, onde também haviam muitos portugueses. Arranjei emprego numa fábrica de farinhas para gado e na estiva para ganhar mais dinheiro. Por lá fiquei, outra vez clandestino por mais uns tempos”.

Surge então uma oportunidade. “Um amigo que tinha nos correios convidou-me a ir para lá, para chauffer. Ganhava-se bem!”. Enquanto isto, a sua mulher e os dois filhos estavam em Elvas. Enviava-lhes à época, 70 marcos por mês, “o equivalente a seis meses de ordenado em Portugal”, relembra com um sorriso. Chegava o momento de levar a família para junto dele. “Já tinham passado uns anos e as minhas aventuras começavam a dar frutos. Decidimos regressar à Bélgica que tinha uma vida mais barata. Regressei às origens e passei a trabalhar numa padaria para um judeu polaco, mau como as cobras. Um diz zanguei-me com ele e fui-me embora abrir o meu próprio negócio”. Daí para a frente, a história é longa e atravessa inúmeras fronteiras, outras tantas aventuras que conta num dos seus livros, Como se Joga a Vida. “Vai-se ganhando e perdendo. A minha foi cheia, de coisas boas e más. Tive muito dinheiro, mas não tive sorte, subi escadas muito altas, mas também sempre as acabei por descer”, conta, todavia sem “um grande peso na alma. É assim a vida”.

Sempre escreveu ao longo das suas histórias. “Desde pequeno que o faço. Gosto de contar histórias sabe?! Escrevo sobre a simplicidade das coisas e das pessoas. Irritam-me os intelectualismos que desprezam o trabalho e que hoje vemos tanto por aí”.

Depois de palmilhar os quatro cantos da Europa à procura de uma vida maior, regressou um dia a Portugal. Num repente sem aviso, a ironia de ter sido a morte quem o trouxe de volta. “Depois de sair na década de 50, regressei em 93, quando a minha mulher morreu. Se ganhei medo à morte?! Claro que não, nascemos para isso, a diferença é o que fazemos entretanto e eu ainda não acabei, quero viver muito até lá!”. Desde então por cá ficou algum tempo, até que uma galega o encantou. Viveu pela Galiza até há poucos meses, até que se chateou da vida e decidiu vir para Portugal publicar a sua obra.

Gosta de fumar e de um bom vinho tinto, “detesta” proibições. Dedica-se à escrita dos seus pensamentos, e com os trezentos euros de reforma, que recebe da Bélgica e do Governo português, vai amealhando para pagar a publicação dos seus quatro livros já editados. Custaram pouco mais de 5 mil euros, que arranjou com dificuldade, as mesmas com que ainda sobrevive com a parca reforma que lhe atribuíram. O seu filho mais velho, José, partilha a agricultura com o acompanhamento do seu negócio. “Ele está mais por dentro destas coisas de agora, dos computadores e da internet e está a negociar com uma editora a reedição dos meus livros”.

Prepara agora o próximo. “Sobre a bicicleta, e a sua importância na vida de muitas pessoas do antigamente, quando não havia carros, nem dinheiro para carroças. É o transporte dos pobres”, recorda.

De súbito, uma última viagem invade os seus destinos imaginários e assume a conversa. “África! Fascina-me desde as histórias que me contavam os soldados e os emigrantes que lá viveram. Estive, aliás, muito perto de ir para lá abrir uma churrasqueira na fronteira do Congo com Angola porque me disseram que os portugueses e os africanos daquela zona gostavam muito de frango assado e vinho português”. Não foi, mas ainda vai a tempo. “Não sei se tenho idade para isso já... Mas que gostava, lá isso gostava”.


Obra Publicada:


Começou por escrever poesia ainda pequeno na idade. Nas horas vagas que o tempo lhe trouxe, foi rascunhando em folhas de papel, à mão, depois à máquina como sabe bem escrever, onde misturava poesia e prosa, retratos vivos de um passado da realidade portuguesa ainda não muito distante. Como se Joga na Vida, A Caminhada da Vida, Casamento Obrigado e A Cultura e o Sexo são as suas obras, disponíveis na maioria das livrarias portuguesas.

Diário de Notícias
MArço de 2008