julho 15, 2008

Notícias Sábado: Despidos de Preconceitos


No retrato cru de um Portugal onde os preconceitos ainda não se despem com tanta facilidade assim, o nudismo é muitas vezes associado à sexualidade e à promiscuidade. Apesar dos levantamentos populares na Póvoa do Varzim ou dos problemas na praia da Bela Vista na Costa da Caparica, o naturismo continua a ser vivido por quem procura apenas estar mais perto da Natureza e está mesmo a expandir-se, de norte a sul do país, em praias e parques de campismo onde os “têxteis” estão proibidos de entrar.



Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira



Mar, sol, areia... natureza viva composta por dois corpos desnudos caminhando pela brisa em direcção à rebentação calma de um final de tarde em por do sol. Será esta a imagem mais real que qualquer naturista deseja idilicamente perfilhar, mas nem sempre é esse o cenário real encontrado.
Praia do Meco, talvez o mais conhecido lugar naturista de Portugal. São mais os que estão vestidos, que os que não levam roupa. Vestidos, é uma forma de dizer. Os fios dentais desnudam quase na totalidade, as sungas deixam entender e os toplesses permanecem no meio caminho, entre um jogo de raquetes e o lançamento dos frisbies. Tem de se percorrer quase um quilómetro de areal para se encontrarem alguns nudistas por ali. Há homens, mulheres, novos e velhos, gordos e magros, de tudo. Levam chapéu de sol, usam creme protector, levantam-se e descem ao mar com os filhos, com os amigos, e regressam às toalhas para ler o jornal ou a revista e comer uma sandes de queijo e fiambre embrulhada em folha de papel prata. Ao longo dos anos habituaram-se aos olhares na sua direcção, aos mirones furtivos, disfarçados entre as dunas, às fotografias surripiadas em telemóveis descaracterizados. “Engraçado como existe um preconceito tão grande com a única coisa que todos temos, que é o nosso corpo. Quando se vai para o duche também se vai nu, todos nascemos despidos, os animais não usam roupa... Logo isto não deveria ser uma novidade para ninguém”. Mas parece de facto ser, até mesmo na mais famosa de todas as praias naturistas. “Sim, qualquer dia temos de andar ainda mais lá para o fundo, para estarmos à vontade... É o que se tem mas apesar de tudo, e para quem gosta disto é libertador poder vir para aqui”, explica Jorge Sousa, um operador turístico de Lisboa que descobriu o naturismo aos 18 anos, numa outra praia naturista oficial, em Tavira e que até hoje, nunca mais deixou de sentir o gosto de andar em pêlo. “Em casa ando sempre nu com a minha mulher e quando podemos vimos para o Meco aproveitar a natureza, sentir o vento e o mar com muito maior liberdade... Há lá coisa melhor que isto?”.

No mapa do Portugal a nu, o sul do país apresenta muito mais opções para os naturistas se poderem expressar livremente. Todas as cinco praias naturistas oficiais existentes em Portugal se encontram entre Lisboa e o Algarve. A das Adegas, em Odeceixe, é mesmo a única que tem nadador salvador. Na região há ainda uma pequena pousada naturista, em Silves, e um parque de campismo misto, em Aljezur. Enquanto o Parque da Quinta dos Carriços, tem uma zona para naturistas e outra área para pessoas vestidas, o Monte Barão, em Santiago do Cacém, já no Alentejo, é integralmente dedicado aos nudistas. Alguns quilómetros em direcção à linha costeira e, aproveitando os acessos dificultados pelas escarpas e pela ausência de turistas de fim de semana, ao longo de toda a Costa Alentejana há também inúmeras praias desertas onde, muitas vezes, se encontram nudistas de ocasião.
Para Norte, apenas praias toleradas e a Quinta das Oliveiras, um parque de campismo exclusivamente destinado aos adeptos deste movimento. De comum, todos têm duas coisas, defendem e dependem do conceito de nudismo, e todos os proprietários são estrangeiros.
Oliveira do Hospital, sopé da Serra da Estrela. Porventura pelo clima, ou pela distância da praia mais próxima, seria um dos locais onde não se esperaria encontrar uma colónia nudista. No caminho, perguntando pela localidade de Travanca de Lagos, freguesia onde fica a Quinta das Oliveiras, ninguém a conhece. Se perguntar pelo parque dos nudistas, as coisas mudam de figura, e um sorriso malandro faz-se logo acompanhar de um dedo indicando a direcção.
O portão está fechado, e os muros são altos para evitar os olhares indiscretos de quem anda à caça de uma visão escancarada. O dono é um holandês que se apresenta como Sérgio, a tradução para português do seu verdadeiro nome, Siets Bijker, que deixou a sua Arnhem para vir para Portugal e em Abril de 2002, abrir o primeiro parque de campismo naturista do país. “Sim, apaixonei-me por este sitio, que é perfeito para o que queríamos”. De então para cá, “as coisas têm estado a andar, de principio as pessoas não aceitaram muito bem a ideia, tivemos alguns problemas, mas agora está tudo pacífico”, explica. Na verdade, quase seis anos depois da abertura do parque, o sentimento das pessoas alterou-se em relação aos convidados estrangeiros que vieram para ficar. Depois da polémica inicial que ameaçou até a abertura do parque, António Santos, presidente da junta reconhece hoje ter-se tratado este até de "um bom investimento para a freguesia porque trouxe pessoas para cá", assinala.
Siets construiu quase todo o parque com as suas próprias mãos. O bar, a piscina, os balneários e os arruamentos decorados com videiras. Faz o próprio vinho, produz azeite, aproveita a luz solar para aquecimento de águas. Não é homem de muitas palavras, nem prima pela simpatia fácil. Permanece desconfiado durante a visita ao “seu” parque. Fala na maioria das vezes em holandês, porque quase todos os campistas que ali aparecem provêm do seu país. “Sim, mas há alguns ingleses e começam a aparecer muitos portugueses também, porque me parece que, apesar de serem ainda um povo um pouco conservador, se calhar devido à influência da igreja no vosso país, começam a estar mais abertos para este conceito”. Numa das tendas encontramos um português. Ele, vestido, a ler um livro e a aproveitar o sol de fim de tarde, enquanto a companheira descansa. Não quis dar o nome, nem aceitou fotografias. “Percebam-me que trabalho em Lisboa e não posso aparecer assim”. Prossegue a visita. “Sabe que aqui temos certos cuidados, com o ruído, com o próprio tipo de turismo que as pessoas procuram. Oferecemos uma saída da rotina diária, do stress, por isso nos despimos. Aqui não há doutores, nem engenheiros, não há profissões. Quando se tira a roupa ficamos todos iguais, e perdem-se muitos dos preconceitos que existem na sociedade contemporânea”.

Naturismo é uma forma de viver em harmonia com a Natureza caracterizada pela prática da nudez colectiva, “com o propósito de favorecer a auto-estima, o respeito pelos outros e pelo meio ambiente”. Na definição da Federação Naturista Internacional, a procura do bem estar resultante da partilha do corpo com os elementos naturais alia-se à prática do nudismo enquanto uma das suas vertentes, como explica Rui Martins, presidente da Federação Nacional de Naturismo. “É uma tendência que se está a massificar no nosso país, e um mercado que pode movimentar muito dinheiro. Em Espanha por exemplo há 400 praias onde se pode fazer nudismo, em Portugal há cinco! Em França existem campings a sério, onde nem é preciso sair de lá. Poderemos chegar aí, temos muitos naturistas estrangeiros a quererem vir para cá mas não temos infra-estruturas para eles”.
Presidente da FPN há pouco mais de um ano, Rui Martins faz nudismo desde muito jovem ainda. “Desde os 16 anos, hoje tenho 48! Comecei em Vila Nova de Milfontes, que na altura era diferente, não tem nada a ver com o que é agora... De vez em quando é que aparecia a GNR e tínhamos de fugir dali porque a lei era diferente”, conta com humor.
Hoje já não é proibido fazer nudismo, e desde que isso não implique com o pudor do próximo, é possível andar nu em qualquer lado. “Sim, mas nós não temos esse espírito, não queremos ofender ninguém. Se quem estiver ao meu lado não estiver à vontade, levanto-me e vou para outro sitio”.
Com a criação da FPN em 1977, há 31 anos, os naturistas sempre procuraram o reconhecimento do Naturismo na Lei, como garantia da defesa de um estilo e prática de vida, usualmente confundido com manifestações exibicionistas atentatórias da moral colectiva. Dos pioneiros do Meco, que a transformaram nos anos sessenta na primeira praia naturista portuguesa, alguns praticantes chegaram até a enfrentar a barra do tribunal por atentado à moral pública, até aos dias de hoje, “muito mudou na ideia que as pessoas fazem de nós. No entanto, ainda há alguns meses tivemos problemas na praia da Estela, na Póvoa do Varzim, em que houveram milícias populares contra os nudistas. Depois, as praias naturistas são selvagens, como se nós também o fossemos, não têm apoios de praia, nem nadadores salvadores e isso tem de mudar”.
O porquê, encontra-o na “fácil associação entre estar nu e ter relações sexuais, o que leva a que muitos olhem para tudo isto como um ambiente de promiscuidade, troca de casais e por aí fora. Para lhe dar um exemplo, andamos com um problema na praia da Bela Vista, na Costa da Caparica conotada um pouco com o engate e a homossexualidade. Não temos nada contra isso, obviamente, o problema, é que já temos poucos espaços para andarmos à vontade e estas atitudes acabam por denegrir todos os outros nudistas que só querem ter um pouco de espaço para si e para estarem mais perto da natureza”.
Apesar de não existirem estatísticas oficiais fundamentadas, estima-se que existam em Portugal cerca de dez mil nudistas, de forma regular ou pontual, embora apenas cerca de 1300 estejam associados na Federação. “Temos essa noção pelas pessoas que aparecem nos eventos que promovemos durante o Inverno, nos jantares, nos passeios, na piscina da Penha de França (a FPN tem um protocolo com a Câmara de Lisboa que prevê a utilização da piscina municipal pelos nudistas, uma vez por mês). O progresso também ajuda à evolução mental das pessoas, principalmente dos mais jovens, apesar de na Federação termos pessoas de todas as faixas etárias, de todos os estratos sociais”.

“Bem vindos”. Monte Barão, a poucos quilómetros de Santiago do Cacém. O primeiro sorriso, e as palavras em português com sotaque de Amesterdão, fazem-se acompanhar de uma toalha colorida que flutua com o vento e que deixa perceber o que se irá encontrar para lá do portão. À primeira vista, toda a gente anda nua por ali. “Bem, quase toda a gente”, graceja Jeff, apontando para nós. “Estejam à vontade”, sorri, num convite que se iria multiplicar ao longo do dia.
O lema deste parque naturista é mesmo esse. “Um abraço a todos os que nos visitem, a hospitalidade, o sorriso, a liberdade”, explica Laura, uma holandesa descendente de italianos que se expressa num português quase perfeito. “Sim, a ascendência latina ajuda. Se os meus pais também fazem nudismo? Já cá vieram, mas não!”. Jeff, sorri, até porque desde pequeno que foi habituado a andar nu, uma tradição da sua família. “Eles já cá vieram e adoraram! Poderem fazer aquilo que gostam, ainda por cima no parque do filho, ficaram todos contentes”.
Depois de decidirem abandonar a cidade onde cresceram e se conheceram, procuraram Portugal, pela escassa oferta que existia neste sector, “e que fazia do país, um bom lugar para começar o negócio. Começámos pela Câmara de Santiago que sempre nos recebeu muito bem, assim como os vizinhos que nos dizem que o parque é a alma desta terra! Ao fim de dois anos, encontrámos o terreno e começámos a construir tudo isto, que aos poucos se vai assemelhando com aquilo com que sempre sonhámos porque não nos sentíamos felizes com a vida cinzenta que levávamos lá”.
O monte Barão ainda está a evoluir desde a abertura, há três anos atrás. Nos sete hectares de terreno de azinheiras, sobreiros e pinheiros, cresceram bungalows, algumas tendas e roulotes, uma piscina inaugurada há três semanas, um bar de madeira, balneários e um curral, com porcos, galinhas e cabras. Prepara-se agora o primeiro campo de golfe naturista do país que, estará pronto no próximo ano. “Queremos cá trazer o Tiger Woods”, dizem por graça, enquanto vão edificando outros projectos com o olhar e os gestos à medida que nos apresentam o espaço, “a nossa casa”, dizem orgulhosos.
Por aqui, tudo foi feito por Jeff, Laura e alguns hóspedes que foram ficando, como Gill e Andrew, um casal de ingleses de Sussex, que depois de se reformarem, decidiram vir para Portugal à procura de um lugar para poder viver a reforma de forma... natural. Sentam-se na mesa da esplanada do jardim, ele com uma cerveja na mão, ela apenas sem roupa. “Apaixonámo-nos por isto, estávamos fartos de barulho, carros, confusão... Quando descobrimos este sitio, vendemos a nossa casa e decidimos ficar cá! Ajudamo-los na jardinagem, nas limpezas, há sempre coisas para fazer! É um sonho”. Um ano passou, de então para cá, e não antevêem data de regresso. “Para quê?”, interroga Andrew.
Laura e Jeff estão por perto. “São nossos amigos já, e isto é uma coisa que de facto andarmos despidos nos trás, mais proximidade uns dos outros, porque não há estatutos sociais ou diferenças económicas. Aqui somos todos iguais, comunicamos, sabemos os nomes de toda a gente e vivemos em harmonia. Portugueses que também já temos bastantes e estrangeiros, mesmo durante o Inverno, porque aproveitados a onda de reformados do norte da Europa que procura o sul por causa das temperaturas mais quentes”, explica Laura.
Corre calma a tarde, o tempo parece correr mais devagar, com outra cadência, mais de acordo com a paisagem que nos cerca o horizonte. Ouve-se falar português, perto da piscina. Nuno Frade e Paula Costa, vieram de Lisboa para passar aqui uma semana de férias. Quando trajados, trabalham ambos num escritório mas aproveitam os fins de semana e as férias para se “libertarem” dos “têxteis”, uma denominação comum utilizada por todos os naturistas quando se referem às roupas utilizadas no dia a dia. Fazem nudismo há já alguns anos. Paula pertence também à direcção da FPN. “É muito mais prático, anda-se muito mais à vontade, as malas são muito menos volumosas e sinceramente hoje já não consigo ir à praia com fato de banho, sinto-me desconfortável”, comenta. Nuno, partilha da mesma opinião. “O Naturismo é muito abrangente, pode ou não ter relação com movimentos ecológicos ou ambientalistas, mas cada qual define o seu caminho, de acordo com a sua personalidade. Aqui estamos nus uns com os outros e convivemos de forma natural, nada nos dividindo ou separando da verdadeira natureza humana. Já éramos namorados e depois de experimentar a primeira vez, quando ouvimos um programa na rádio sobre o tema, nunca mais quisemos outra coisa”, sorri, por entre um olhar cúmplice para a namorada.
Com eles está também Alexandre Moleiro, residente em Tavira e vice-presidente da Federação. “Temos de facto bom clima e boas condições naturais para a prática do naturismo, mas faltam é mais infra-estruturas como as que existem lá fora. Conservadorismo? Haverá sempre, acho, mas até isso é uma questão mental... Por exemplo, ninguém se queixa de atentado ao pudor quando está uma sueca na praia em topless....”.

Caixa:
Factos do nudismo

-Na Grécia antiga era comum a prática de desporto sem nenhuma peça de roupa.
-Era prática usual entre os romanos, banharem-se desnudados em banhos públicos mistos, prática corrente ainda nos países do norte da Europa.
-O naturismo moderno surgiu no início do século XX, na Alemanha. Adolf Koch, um professor de educação física propôs aos seus alunos que os exercícios fossem feitos ao ar livre e sem roupas. Para a história ficou que os seus alunos passaram a ter mais saúde e alegria o que fez com que as famílias aderissem igualmente aos exercícios, nascendo assim o conceito de nudismo, materializado em 1906, com o primeiro campo oficial para a prática do naturismo. Do conceito faz também parte a preocupação com a alimentação saudável, geralmente vegetariana, embora não seguida por todos os nudistas.
- Croácia, França, Holanda, Alemanha e Espanha são os países europeus onde se verifica um maior investimento neste tipo de turismo.
-Cem anos depois, a França é hoje considerada a capital do naturismo na Europa, com mais de 175 campings e resorts, seguindo-se a Alemanha com 155 e a Holanda com 56.
- A Associação Americana de Nudismo Recreativo estima que o sector gera anualmente entre 250 a 330 milhões de euros.
-A Federação Holandesa de Naturismo tem cerca de 40 mil associados e estima-se que metade da população de todo o país já tenha pelo menos uma vez feito nudismo.
-Há relatos dos primeiros nudistas portugueses frequentarem as praias da Costa da Caparica, desde os anos vinte do século passado.


Caixa:

Primeira intervenção de José Sócrates na Assembleia
A Lei 29/94 de 29 de Agosto, que hoje ainda se encontra em vigor foi a primeira manifestação do reconhecimento público, político e oficial da prática naturista em Portugal. Numa das suas alíneas define-a como “o conjunto das práticas de vida ao ar livre em que é utilizado o nudismo como forma de desenvolvimento da saúde física e mental dos cidadãos, através da sua plena integração na Natureza”.
Há até a curiosidade de ter sido sobre o Naturismo, a primeira posição parlamentar tomada pelo então jovem político... José Sócrates.


Legendas:
FPN – www.fpn.pt
Monte Barão – www.montenaturista.com
Quinta das Oliveiras: www.quinta-das-oliveiras.com


Notícias Sábado, Capa, Julho de 2008

julho 08, 2008

Notícias Sábado: Sempre à escuta...


O imaginário de Sherlock Holmes, Sam Spade, Dick Tracy, até Claxon, emerge sempre que se fala em detectives privados. A realidade é no entanto muito díspar da ficção, dos romances e das películas norte-americanas das décadas de trinta e quarenta. Em Portugal, não existe enquadramento legal para uma actividade onde se misturam polícias, detectives, carolas, burlões e onde muito se passa nos enredos mais ou menos claros que a Lei deixa por preencher. Dos tradicionais casos de infidelidade às mais recentes acções de investigação ao serviço de grandes empresas, conheça o fascinante mas pouco romântico mundo dos detectives privados.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira



Bons, maus e vilões. Folheia-se um jornal e lá estão eles, normalmente sem fotografia, recorrendo na maioria dos casos a ilustrações ou cartoons munidos de lupa e chapéu à Sherlock Holmes. Quando se percorre a Internet, também se encontram inúmeros sites dedicados à investigação privada não judicial ou criminal. Muitos não têm sequer morada, apenas um contacto telefónico que vai mudando, sem data marcada ou aviso prévio. Não há mulheres detectives em Portugal, e na generalidade, oferecem todo o tipo de serviços de investigação, dos inevitáveis casos de infidelidade matrimonial, ao controlo de filhos menores, mas também de buscas de pessoas desaparecidas, apuramento de provas para processos de poder paternal, levantamento de bens penhoráveis de empresas ou particulares, de idoneidade de futuros empregados, baixas fraudulentas, duplicidade de emprego... Um universo de informação que espera por ser descoberta. A oferta é variada, mais ou menos explícita em termos de linguagem, nunca demasiado, porque a falta de legislação torna demasiado fácil o resvalar para a ilegalidade.
Um dos mais conhecidos e reputados detectives privados em actividade é António Correia. Investigador há mais de 25 anos, co-fundador da Associação Nacional de Detectives Privados de Portugal, coloca semanalmente anúncios no Público, desde a sua primeira edição, e em alguns outros jornais. Oferece os seus serviços e a sua experiência sob o lema, "Investigações Com Dignidade”. “Porque em todas as actividades, ainda para mais naquelas que não estão regulamentadas, é necessária uma conduta profissional e idónea”, explica, sem querer “falar muito” por se encontrar a actividade a passar por “dias difíceis”, lamenta.
“O grande problema que enfrentamos no dia a dia é de facto esse, o de não existir uma regulamentação como existe no resto da Europa ou nos Estados Unidos, até em Espanha, onde se marca a linha entre o que se pode ou não fazer” complementa João Santos, um dos mais antigos profissionais da investigação privada em Portugal. Na casa dos quarenta anos, há mais de vinte dedicou-se à profissão de detective, depois da agência de publicidade da qual era gestor ter falido. “A ideia surgiu através de um amigo, e fui fazer um curso a Barcelona, porque cá não havia, como ainda não há, nenhum tipo de formação nesta área. Quando regressei, apercebi-me que havia potencial de mercado para me profissionalizar e assim fiz”, explica, imediatamente antes de um dos seus três telemóveis começar a tocar. Mais um dos muitos clientes que vão aparecendo por ali. “Chegamos a ter seis e sete casos por mês”; revela.
De então para cá, fez um pouco de tudo, perseguiu maridos e esposas enganadoras, descobriu factos onde haviam apenas desconfianças, “auxiliou” empresas e escritórios de advogados, mas não entra nunca em grandes pormenores, “por sigilo profissional”, justifica. “Esse tipo de clientes, os dos casos amorosos, continuam a aparecer, mas bastante menos. Com a chegada das multinacionais, começaram a aparecer outro tipo de trabalhos e nós funcionamos cada vez mais com grandes empresas”.
Lidera hoje uma equipa de oito investigadores profissionais na Agência de Investigação Josan, com escritório em Benfica. Os diplomas das inúmeras formações que foi fazendo ao longo das últimas duas décadas compõem as paredes brancas da sala e conferem seriedade às suas palavras. Malas metalizadas com código de segurança e alguns cabos desarrumados em cima de uma das mesas, deixam lugar à curiosidade, mas não passam de sinais quase invisíveis dos adereços que se esperariam encontrar nestas ocasiões. “Essa coisa das escutas e das câmaras não é bem assim, não se faz à balda nem isto é uma agência americana para estar tudo aqui à mostra, até porque é ilegal e não costumamos utilizar esse tipo de equipamentos! Sou hoje um detective mais de secretária, ou de bancada digamos assim. O meu trabalho é muito de coordenação do pessoal, de distribuir tarefas e serviços e lidar com os clientes. Se tenho saudades da rua? Continuo a andar por aí, mas menos”.
João Santos é hoje o vice-presidente da ANDPP. Observador, atento de todos os pormenores, mantém a postura enigmática de quem conhece o bom e o mau da vida. “Temos de ser sérios nesta profissão, é fácil enganar alguém e o que não falta aí são intrujões que se encontram com as pessoas em bombas de gasolina, aproveitam-se do seu desespero e pedem-lhes dinheiro adiantado para depois desaparecerem. Temos cerca de quarenta associados, mas fora devem andar à volta dos cem porque muitos aparecem e desaparecem. O que pode a associação fazer? O que temos feito, falar com o Governo para regulamentar isto tudo, para enquadrar a nossa profissão para podermos trabalhar sem pisar o risco, como por vezes acontece. Por exemplo, se eu necessitar de consultar ficheiros civis ou estatais, tal como saber se o indivíduo tem cadastro, ou onde trabalha ou reside, tenho muitas dificuldades no acesso à informação, porque não há legislação e isso complica o nosso trabalho”. Quanto a formas de ultrapassar essas barreiras? A resposta, fica no silêncio, apenas garante que “nunca” ultrapassa a lei.
De sorriso quase sempre escondido da conversa, só o esboça quando se fala em James Bond, de mulheres insinuantes e de uma visão um pouco romântica que ainda permanece no imaginário colectivo, do detective quebra corações que se envolve com as clientes e tem uma vida faustosa de luxúria e prazeres carnais. “Isso são filmes! A realidade é que isto é um trabalho e as pessoas que aqui vêm normalmente não estão numa boa fase da sua vida e querem resultados, e quanto mais depressa possível”.

Casos de Polícia. Não existe qualquer curso superior em Portugal, pelo menos oficial para se aprender a ser detective privado. Alguns dos profissionais “do mercado” são antigos polícias. Fala-se de outros, ainda no activo, uma realidade que no entanto ninguém afirma oficialmente, mas que se vai confirmando nas entrelinhas. “Comenta-se isso de facto, mas eu não conheço nenhum! Se é errado? Estar a aproveitar conhecimentos adquiridos ao serviço do Estado em beneficio próprio, é inqualificável”. Paulo Pereira Cristóvão tornou-se conhecido do grande público depois de ter abandonado a Polícia Judiciária ao fim de 17 anos de serviço, e de há pouco mais de um ano ter escrito o best seller (cerca de 95 mil exemplares vendidos), “A Estrela de Joana”, que conta a história da criança algarvia assassinada pela mãe e pelo tio.
Depois de deixar a PJ, Paulo abriu uma agência de consultoria e investigação empresarial, a Primus Lexis. “Tinha a noção de que em Portugal havia mercado para o tipo de trabalho que fazemos aqui e por outro lado, não havia profissionais que o pudessem fazer dentro da lei, com conhecimento das normas. Por isso, somos a única empresa do género, neste ramo e não temos nada a ver com esse mundo obscuro e amador dos detectives privados”.
Apesar da lista de clientes ser, em termos de identidades, reservada ao conhecimento geral, assume que trabalha quase exclusivamente na área jurídico-financeira. “Trabalhamos com grandes empresas, com escritórios de advogados, com empresários. Podemos ajudar uma empresa a controlar um conjunto de funcionários que se aproveitam de falhas na segurança interna para desviar equipamentos, como uma instituição bancária que tem um director de departamento que arranja clientes falsos para desviar dinheiro. Até a verificação de backgrounds curriculares, aquando da contratação de funcionários ou coisas tão simples como ajudar um jogador de futebol a arranjar o melhor carro ao mais baixo preço, fornecendo-lhe apenas a informação de onde o pode adquirir. O espectro é alargado, em termos dos serviços de que dispomos para os nossos clientes e ainda há muito por fazer”.
Para além da amplitude de oferta, parecem também crescer a bom ritmo, os lucros de uma empresa fundada há pouco mais de um ano. “Crescemos cerca de 30% ao mês. Se está a correr bem?! Excelente!”. Sorri. Das cerca de 16 pessoas que trabalham habitualmente no escritório da Almirante Reis, nem todos são ex-polícias. “Temos colaboradores formados em psicologia, direito, e claro, antigos polícias, assumidamente! Porque a nossa filosofia é exactamente essa. A melhor, e única, fonte de conhecimento de técnicas de investigação é feita pelo Estado, não há cursos privados nesta área, logo, estamos de longe mais bem preparados para lidar com o processo de investigação que qualquer outra pessoa que não tenha passado por este caminho”. Quanto aos detectives privados, não poderia ser mais explícito. “Isto não é a brincar, é muito sério, temos muitos clientes, lidamos com quantias avultadas, temos responsabilidades, passamos facturas, pagamos um balúrdio de IVA de três em três meses. E nem quero ser associado a essa malta que aí anda, muitos deles a enganar deliberadamente as pessoas, outros a fazê-lo pela pobre qualidade do seu trabalho. E depois, por outra razão... Nós não fazemos nada ilegal, até porque trabalhamos como se faz na polícia! Repare, não me interessa nada estar a colocar uma escuta, ou uma câmara oculta, se isso depois não é admitido em Tribunal por ter sido obtido de forma ilegal”.
Na sala onde guarda algumas das recordações dos seus tempos passados da Direcção Central de Combate ao Banditismo, que vai lembrando com “nostalgia” em passagens da conversa, algumas cartas de agradecimento pelos serviços prestados, fotografias, memórias que lhe pertencem, afixadas pelas paredes. “Não tenho saudades nenhumas da PJ, estava exausto daquilo, da forma como as coisas funcionavam, da burocracia, do baixo salário e acima de tudo, da muita falta de apreço por parte dos superiores que se foi instalando nos últimos anos. Quando saí disse para mim que nunca mais queria trabalhar para um patrão. Continuo a ter muito trabalho, para além disto sou presidente da Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas, tenho a televisão, estou a escrever um novo livro... Mas gosto do que faço, apesar de estar bastante mais no escritório que na rua por ser bastante conhecido já, a investigação é o que sei fazer, é a minha vida”.

Sabor a pecado. Mário Costa é talvez o detective privado mais conhecido no mercado. Fora dele também. Aparece na televisão, dá a cara, não impõe açaimes na fala, nas palavras, no que diz e no que não deixa por esclarecer. Corresponde porventura ao perfil mais esperado de um detective privado, como as pessoas normalmente os imaginam. Empolgante nos episódios que descreve, conhecedor das relações humanas, especialista em investigar o pecado. “O fruto proibido...”. Num quinto andar no Bairro do Bosque, na Amadora, tudo parece agitar o imaginário em torno das películas de detectives que se viam antigamente. Só se nota a falta da secretária loira de ar lascivo, roçando a lima nas unhas escarlate, num escritório que também não é a preto e branco. No entanto, a gabardina pendurada num dos cantos da sala não deixa o espaço órfão da visão cinematográfica.
Micro-câmaras em maços de tabaco, gravadores de lapela, localizadores GPS, máquinas fotográficas digitais, até ratos para computador equipados com escuta e óculos escuros espelhados para mirar de costas, sem dar nas vistas. Há cerca de um mês foi “visitado” pela PSP, e foram-lhe apreendidos muitos destes itens. “Parte deles já me foram devolvidos, penso que tem a ver com a minha ex-mulher, mas creio que não vai dar em nada, até porque ter um gravador ou uma câmara não é crime. O que costumo fazer, para não infringir a lei é instruir os meus clientes a utilizar este tipo de equipamentos, sou apenas um consultor”.
A vertente passional do seu trabalho, aproximou-o ao longo dos anos do que de melhor e pior ostentam as várias faces da personalidade humana. Começou jovem, no Algarve, na imprensa regional, que lhe criou “o bichinho da cusquice, da investigação”, conta.
Depois, veio para Lisboa ainda adolescente. “Trabalhava na Lisnave durante o dia, investigava para o Correio da Manhã e para outros jornais à noite. Sabiam que me desenrascava bem, que conhecia muita gente, que conseguia o que precisavam. Depois dava ao jornalista para ele escrever”.
Mais tarde fundou uma empresa de fotografias de casamentos. “Chegava a ter três no mesmo dia, ganhei dinheiro, aprendi muito sobre as pessoas, sobre o que elas querem ouvir, como se dão, ou fingem dar-se”. A paixão pela fotografia ficou-lhe, a paciência é que se acabou. “Aquilo acabou por cansar e comecei aos poucos, de início por carolice, a dedicar-me à investigação. Mas trabalho apenas em Família, em lhes dar a verdade sobre as suas desconfianças, fazendo a investigação que a polícia não faz, a das relações entre as pessoas”. Sobre o seu envolvimento com o SIS que chegou a ser tornado público há alguns anos, recusa falar, mas vai deixando algumas pistas, sem destino certo.
Com mais ou menos trabalho, “o negócio do corno”, como lhe chama, pode não ser o mais velho do mundo, mas afigura-se pelo menos, como um dos que por mais tempo irão perdurar. “As pessoas cada vez são mais infiéis, a sociedade ajuda a isso. Ainda por cima, antigamente eram mais os homens, hoje está generalizado. Tenho clientes divorciadas, sabidas, sofridas, que querem saber quem é o namorado novo que até parece perfeito, homens que cá vêm para saber porque razão a esposa anda tão estranha em casa, ou até um novo conceito de alpinistas sociais, rapazes que andam nos ginásios que se vão pôr à porta de urbanizações ricas à espera de ver passar os grandes carrões, tiram-lhes as matrículas e depois vêm cá para saberem tudo sobre aquelas mulheres para entrarem na vida delas e lhes sacarem dinheiro”.
Quanto a preços, é claro. “Normalmente cobro cinco horas, no mínimo, mas há trabalhos que demoram duas, três semanas. A partir de 50 euros à hora começo a trabalhar, mas tudo depende dos clientes, do tipo de serviço, dos meios que terão de estar envolvidos, da quantidade de homens que tenho de chamar para a operação. Ainda assim não faço tudo o que me pedem porque tenho consciência da Lei. Funciono no fio da navalha, mas tento não me cortar”, ironiza.
Por isso, e apesar da generalização das infidelidades que constata no seu dia a dia profissional, Mário Costa assume ser mais procurado por homens, do que por mulheres, a maioria de perfil social médio alto. “É natural que grande parte das pessoas que me procuram pertençam a classes sociais mais elevadas, até porque o dinheiro é o mais poderoso de todos os afrodisíacos e com ele vem muita podridão. Mas nós homens somos muito mais desconfiados e inseguros do que elas, que são mais espertas. Por vezes um homem não funciona com a cabeça, enquanto que as mulheres, na generalidade, conseguem conciliar o coração, a razão e a sexualidade”. O detective tipifica ainda o retrato típico do enganador, do sedutor, “do malandro”. “Os vendedores são os piores sabe?! Não imagina a quantidade de médicas que aqui vêm por causa do delegado de propaganda médica! Normalmente são casados, têm várias amantes, andam bem vestidos... Sabem vender o produto, aparecem no consultório, envolvem-se e passado algum tempo, quando se fartam, desaparecem”.
Ao longo dos anos lidou com inúmeras situações limite, sentiu emoções fortes, partilhou a dor de muitos dos seus clientes. “Este trabalho tem muito de psicologia. Grande parte das pessoas que entram aqui não precisam de um detective porque já sabem toda a verdade, mas por vezes não a querem ver, têm medo de perder os filhos, a casa, o poder de compra. Muitos homens entram a chorar porque dizem que estão a ser traídos, mas esquecem-se que já as traíram não sei quantas vezes. Outros entram cheios de raiva e tenho de os acalmar! Já me apareceram pais que queriam mandar matar os namorados das filhas, ou aquela mulher que quer fazer desaparecer o marido sem deixar rasto para lhe ficar com o seguro! Como vê, tenho muitas vezes de perceber a mente destas pessoas, acalmar-lhes a raiva e fazê-las perceber que não devem ir por aí. Já tratei de casos de muita gente conhecida, da alta sociedade, de jogadores de futebol que, por passarem tanto tempo fora sentem necessidade de controlar o que se passa nas suas casas... Aparece-me aqui de tudo, mas não aceito todos os trabalhos porque é importante perceber em quem devo confiar também”.
Trabalha normalmente em três, “quatro no máximo”, investigações por mês. “Chega para me manter bem economicamente e não arriscar muito”. A alma do negócio, ou o verdadeiro segredo para nunca dar nas vistas ou ser detectado nas vigilâncias? “Manter a distância e andar sempre de costas para o visado pela investigação”, revela. “Ir pela certa! Já tive alguns apertos, mas privilegio a segurança. Como não há formação nem básica, nem média e muito menos superior ou profissional em Portugal, aprende-se fazendo, com os erros e com os sucessos”.



Caixa:
Com funciona em Espanha

A profissão de detective privado não se encontra em Portugal regulamentada por nenhum regime jurídico. Os detectives regem-se pelas leis penal e civil, como qualquer outro cidadão. Com o tempo acabou por se estabelecer tacitamente uma linha divisória entre a investigação criminal que fica para as várias forças de polícia e a investigação privada, que sobra para os detectives.
Em Espanha, esta divisão de competências é contemplada na Lei. A actividade de investigação privada, regulamentada desde a década de cinquenta, define a fronteira das competências de privados e forças de segurança do Governo. Existem ainda diversas licenciaturas em Técnicas de Investigação regidas por universidades públicas e privadas, e leccionadas por antigos agentes de forças de segurança. Nos últimos anos, em Portugal, algumas instituições de ensino superior portuguesas tentaram inaugurar cursos idênticos, mas o Ministério da Administração Interna nunca autorizou a participação de elementos das várias forças de segurança nos projectos de curso que até hoje, acabaram por não avançar.

Capa Notícias Sábado, Junho de 2008

Pública: Um dia com... Paulo de Carvalho

Dias diferentes, canções de sempre



Passeia sempre com o Tejo por perto, o “símbolo” de uma Lisboa que canta, que o “encanta” desde sempre. Depois, o homem para lá da música, simples, directo, sem receios de ser “inconveniente” no palco diário da vida real.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


Alcântara. A azáfama habitual dos restaurantes à hora de almoço. Faltam lugares para estacionar, o horário parece sempre apertado demais, o calor já tem gosto a Verão, num corrupio onde não há filas à porta porque o sinal azul permite o fumo tabagista, e mais uns segundos de ar climatizado. “Olá, como estão?”. O sorriso imediato, o trato na segunda pessoa, as primeira impressões demarcadas no singular, por Paulo de Carvalho.
Começou mais tarde o seu dia, hoje, por causa do espectáculo de beneficência em que irá participar, ao final do dia, no Casino. “Sim, levei a minha filha à escola de manhã, e tomei o pequeno almoço já tarde, não tenho muita fome”. Não dispensa ainda assim um belo bife de vaca, com ovo a cavalo. “Gosto de comer bem, escolho o restaurante de acordo com o que me apetece naquele dia. Cozinhar? Não tenho muito jeito nem paciência, prefiro andar por aí!”.
Não é raro que os olhares se desloquem para ele, não se incomoda com isso. “Tenho histórias engraçadas, normalmente dizem-me coisas boas. Ainda no outro dia um senhor me abordou na rua, para me contar que tinha uma filha chamada Nini!”, graceja.

Do Amor
"Mais do que cantor sou músico, toco voz". A frase não lhe soa nova, mas sente-a como verdadeira. “Não sou um artista, não tenho feitio nem paciência. Serei sempre e só um músico!”.
Escritor de mais de trezentas canções distribuídas por quase meio século de carreira, Paulo de Carvalho tornou-se incontornável nas memórias da música portuguesa das últimas décadas. Lisboa Menina e Moça, o Homem das Castanhas, os Putos, os Meninos do Huambo, Mãe Negra e tantas, tantas outras. “Não gosto de me vangloriar do que fiz, não sou assim, cada um tem o lugar que merece! Talvez tenha sido um pouco esquecido sim, sempre disse a verdade, o que penso. Se me arrependo? Sei que sou uma figura polémica mas eu sou assim e não vou mudar”. Um café, outro café, para compensar o cigarro que não fuma há mais de vinte anos.
Fundador dos Sheiks, mais popular banda da década de sessenta, retornados em formato de musical no ano passado e regresso anunciado para os próximos meses, chegou a jogar futebol no Sport Lisboa e Benfica. “Nos juvenis sim! Tenho ainda hoje lugar vitalício no Estádio da Luz, mas para mim bola é só no campo, quando acaba não sigo mais o fenómeno mediático que hoje em dia o rodeia”, conta.
Desde sempre compôs para muitos outros músicos, de Carlos do Carmo a Simone de Oliveira, de Sara Tavares a Lena D’Água, até Mariza. “O fado vai bem, muito bem! O importante é que cada fadista tem de encontrar o seu próprio fado. A Mariza? Ultrapassou o patamar das fronteiras, é do mundo já, mantendo as raízes, o que é muito importante mas, estando fora já das muitas pequenices que ainda há por cá”.
Paulo de Carvalho regressa agora, oito anos depois de Dagama, o seu último álbum, editado em 2000, com ”Do Amor” (a tournée começa a 20 de Setembro no Olga Cadaval em Sintra), um disco de afectos, “num tempo em que nem sempre há disposição para gostar das pessoas. Talvez por isso seja o tema que os compositores mais perseguem, porventura o mais complicado de todos, aquele que mais me faz pensar, reflectir, que mais me dificulta a vida, que mais me preenche”.
Para além da fadista, Ivan Lins, Tito Paris, Agir e Mafalda Sacchetti (dois dos seus filhos) participam nas canções com que marcou este regresso. “Este disco nasce sobretudo da minha amizade com os músicos que tocam comigo até porque todos eles abdicaram da sua agenda para se concentrarem neste trabalho que acabámos por gravar muito depressa, em cerca de vinte dias. Estamos a tentar encaminhá-lo para um circuito de jazz e world music no resto da Europa, há boas perspectivas”.
Quanto às primeiras impressões... “Já estou habituado a ouvir pouca música portuguesa na rádio, mas às vezes acontece, não percebo bem como isto funciona, vamos ver! Acho que o verdadeiro problema é de base e é simples, gostamos pouco do que se faz em nossa casa, é isto”.

Regresso ao Casino
Parece por vezes um pouco desiludido com tudo o que o rodeia. “Repara... Penso que hoje se vive de uma forma muito ligeira, pouco aprofundada, andamos muito ocupados, esquecemo-nos um bocadinho do que é mais importante, apegamo-nos a modas e a conceitos mais ou menos estéreis... Pessoalmente estou numa boa fase, estou feliz, mas isso não me impede de ser crítico do que nos rodeia, reflectir sobre isso não é ser pessimista! Já agora sabes o que é um pessimista?”. A pergunta é retórica porque a resposta já lhe vem anexada. “É um optimista com muita experiência!”. Dá uma gargalhada que se generaliza ao longo do dia, umas vezes carregada de ironia, noutras apenas de vontade de sorrir, porque apetece.
Cinema, conversa, viagens, comida, vinho, futebol, livros e música, claro. Prazeres desordenados na ordem natural das prioridades? “Sim, todos indispensáveis no meu dia a dia. Ao contrário do que se costuma dizer, gostos discutem-se, devem debater-se, mais que não seja para se terem conversas interessantes”, humoriza.
“O que ando a ouvir agora?” Vai ao porta luvas buscar os discos que o costumam acompanhar quando anda de carro. “Tenho aqui muita coisa, a maioria da música que oiço é instrumental, desde St Gernain a Gotan Project, Vicente Amigo... olha o Pat Metheny! É o meu ídolo sabias?!”.
O fim de tarde começa a cair no relógio, apesar dos dias serem ainda longos. O Tejo acompanha-nos ao longo do caminho, em direcção ao Estoril. Um cacilheiro ao fundo, lento, sobre as águas. “Por vezes gosto de ir até ao outro lado, atravessar o rio...”, solta, enquanto o seu olhar permanece solto, na outra margem.
Já conhece os cantos ao Casino. Lá dentro, no salão Preto e Prata, António Chaínho, Rão Kyao e Isabel Noronha já preparam o espectáculo de angariação de fundos para as vítimas do terramoto que devastou Sichuan, na China. As afinações entrecruzam-se nas conversas trocadas que preenchem o ambiente e lhe dão um toque quase familiar. Um, outro, e outro abraço. “Olha o meu amigo, como vais?”.
Terá participado já em centenas de eventos de solidariedade, desde campanhas de angariação de fundos ou chamadas públicas de atenção ao longo dos anos, sendo este apenas mais um daqueles aos quais não poderia deixar de comparecer. “Não gosto do estado chinês, mas aqui trata-se de pessoas e o valor humano está acima da política”, explica. Chega a sua vez, anunciada pelo mote da guitarra portuguesa. O alvoroço de empregados que preparam a sala, abranda por momentos. Canta como sempre, percebe-se quem é, na primeira respiração vocal, que faz o tempo passar depressa. Correu. “Já está”. Sorri, despede-se dos colegas, um aceno cúmplice, até à hora de jantar.

E depois...
Na rua, no supermercado, no café, por onde anda durante o dia, não é pouco usual pedirem-lhe uma canção. “Normalmente os músicos nunca podem dizer que não a nada! Por exemplo se eu fosse um engenheiro ninguém me dizia para construir aqui uma casa ou uma ponte! Mas isto é um bocado como o futebol, toda a gente acha que é capaz, que é fácil, que nem é um trabalho!”, ironiza com um sorriso.
Hora das compras, um dos seus hobbies...”Quer dizer, é preciso, tem de se fazer”, interrompe, enquanto vai observando os anos de colheita dos vários vinhos em exposição, pensando na melhor escolha para acompanhar determinado momento que não deixa no entanto escapar para a conversa. “Não olho muito a preços, gosto de um bom vinho de facto! Talvez seja como a música e outras coisas boas da vida. Não sou um grande perito, só comecei a beber aos quarenta! Mas sei saborear, apreciar, acompanhado da minha mulher, de uma conversa solta, de uma boa comida, sabe melhor não é?!”.
E depois do adeus? “Voltem amanhã!”,estende a mão e sorri. “Ainda cá espero andar mais uns anos, até breve”.

Pública: Um dia com... João Garcia

Dias planos

Foi o primeiro português a conquistar o Evereste. Quando não está nas montanhas veste o fato para os dias de treino intenso, sempre a pensar em regressar aos tectos do mundo, a sua verdadeira casa, “a minha vida”.

Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


Parque do Monsanto. Lisboa vê-se ao fundo, embrulhada numa névoa típica de grande malha urbana, com o Tejo sereno, sempre a seu lado. Sente-se o contraste deste lado, ouvem-se os pássaros, pressente-se o verde envolvente, respira-se fundo, expira-se melhor. Velhos e novos correm para cima e para baixo com o sol a queimar já. Outros, andam de bicicleta nos mesmos sentidos, com esforço idêntico replicado nos rostos de cada um. “Bom dia João, então aqui é melhor que lá em cima não, é mais quentinho”. João Garcia acena, sorri, baixa a cabeça e continua a correr. É assim a forma de ser do mais afamado alpinista português. “Na montanha também acontece isto, falamos sempre por quem passa por nós... Isto aqui é fenomenal para quem gosta de desporto e há pessoas que já conheço só de andar a treinar! Sinto-me bem com esse reconhecimento, é sinal de que faço bem o meu trabalho”.
Passa normalmente seis meses por ano a subir montanhas. Quando está em casa, na outra metade do seu tempo anual, a sua rotina é menos arriscada, nem por isso mais serena. Levanta-se normalmente às seis e meia da manhã. Da sua casa em Alfragide costuma partir, em corrida para Monsanto onde “dá umas quantas voltas” ao Parque. Nos dias de bom tempo, o trajecto é diferente e prefere as duas rodas da bicicleta. “Costumo fazer cem quilómetros dia sim, dia não, vou até ao Guincho, passo por Sintra e regresso. Se custa muito?! Tem de ser, para me aguentar lá em cima, para as pernas não fraquejarem, para não morrer de cansaço, e digo-o literalmente, tenho de fazer este trabalho diariamente”.


Ensinar o corpo a subir

Tudo começou quando pegou na bicicleta aos 15 anos e, de Lisboa, pedalou até à Serra da Estrela para escalar pela primeira vez. Aos 17 já tinha conquistado o Monte Branco... Descobria assim, na prática, o espírito aventureiro que o haveria de empurrar para sempre montanha acima. Entretanto, ainda chegou a prestar serviço militar na Bélgica, para a NATO. “Pagavam bem, mas aquilo não era para mim”, recorda. De então para cá, nunca mais parou de subir, foi guia de alpinistas em todos os continentes, aproveitava os tempos livres para fazer as suas próprias excursões, “sempre com o objectivo de um dia viver só disto”, conta.
Aos 39 anos, João Garcia propõe-se, até 2010, a ser a 12ª pessoa do mundo a escalar as 14 montanhas mais altas do planeta. Dez desses cumes já lhe ficaram gravados no currículo e na memória, entre os quais o Evereste, em 1999, a mais alta de todas as montanhas, que o tornou no primeiro português a atingir de tão perto o céu, e uma das raras dezenas a fazê-lo sem recurso a garrafa de oxigénio. “É uma questão de princípio, porque a dificuldade está nesse pormenor simplesmente decisivo quando estás lá em cima, porque há menos ar para respirar, é completamente seco e o frio é inacreditável”.
A ironia de um destino que procura nos seus próprios limites, traçou-lhe no caminho que a escalada que o tornaria famoso para todos os portugueses, haveria de ser aquela que lhe ficou cicatrizada na lembrança, e no corpo, como a menos memorável de todas. “Estranho não é?! Foi a pior de todas as excursões”, lamenta. Nesse dia perdeu o amigo Pascal Debrouwer, que o acompanhou ao cume. Depois de uma caminhada de quase vinte horas, caiu numa ravina durante a descida e morreu, já quando regressavam ao acampamento base. “O topo do mundo estava ali tão perto que decidimos tentar”. Silêncio. Também João Garcia quase perdeu a vida nesses momentos. “Ficaram-me estas marcas para a vida... Nunca mais lá voltei, nem voltarei. Já está, já foi”, deixa escapar, por entre um baixar do olhar, para apressar o momento. “Passei os três meses seguintes no hospital a recuperar sem saber bem o que iria fazer da minha vida”. Depois, uma espécie de despoletar interno, trouxe-o de volta às origens e conduziu-o ao que mais gosta de fazer. “Voltei outra vez à montanha, regressei à Serra da Estrela, depois aos Alpes e dois anos mais tarde já estava noutro cume com mais de 8 mil metros. Provei a mim próprio que podia continuar a ser o mesmo e voltar a ser feliz”. Conseguiu superar mais um limite. “Sim, se vires as coisas por aí, sim!”.


Na cozinha com...
Quase meio dia. “Bem, por hoje, já chega de exercício”, exclama com a respiração acelerada do cansaço a que já se habituou, por entre mais alguns cumprimentos a “colegas” de exercício físico ocasionais que se vão aproximando. É quase hora de almoço, o sol está a pique e a fome “já aperta” o estômago.
Normalmente dedica-se ele próprio aos seus cozinhados, aproveita para repor massa muscular que perde nas missões, para se “tratar bem”, complementa. Antes disso, ainda vai passear a cadela, uma Rotweiller de dez anos de idade que toda a vizinhança já conhece. “Não faz mal a ninguém, é velhota já”, sorri, enquanto uma das vizinhas brinca com a Jimy.
Depois do banho tomado, o avental, a colher de pau, os temperos sobre a bancada de mármore. Depois, o refogado, o molho de tomate, a carne picada e”voilá”, um petisco à moda da montanha... “Esparguete à bolonhesa?! À moda do montanhista!”, humoriza.
“É um dos meus pratos favoritos, quase todos os dias como isto!”, deixa escapar com humor, enquanto observa o tempo da fervura da pasta. Antes, uma sopa de cenoura, “a melhor do mundo, aliás como a bolonhesa também”, graceja. “Sabes que lá em cima, praticamente só comemos sopas, alguns enlatados, e muita água, por isso temos de recuperar quando nos estamos em fase de preparação”.
João chegou há pouco mais de um mês da sua última expedição ao Makalu, montanha chinesa que é a quinta mais alta do mundo. Seguirá para o Broad Peek, no Paquistão, dentro de alguns dias, iniciando assim a escalada de dois meses que o levará até ao décimo primeiro dos catorze tectos do mundo que se propôs a “conquistar”. Apesar da proximidade da data de partida, a tensão já não se faz sentir como nas primeiras subidas. “Não penso muito nisso já... Lembro-me que antigamente lia e pesquisava imenso sobre a próxima viagem, agora vou simplesmente descobrindo as adversidades pelo caminho, vou conhecendo no dia a dia, a aventura é maior, dá mais gozo. Gosto de objectivos difíceis, tornam a aventura ainda mais saborosa”.

Escritor, realizador e... empregado de escritório
Durante a sessão de autógrafos onde promovia "Mais Além", a sua segunda obra de experiências feita, na Feira do Livro de Lisboa, não faltavam curiosos, procurando explorar o que os seus olhos alcançaram ao longo dos anos. João Garcia é de sorriso fácil, trato directo, silêncio penetrante, por vezes. Depois regressa.
Da janela da sua sala vê-se Lisboa ao fundo, com o Monsanto pelo meio. “É bonita a vista daqui não é?!”. Hora de ir para o escritório. “Passo grande parte do meu dia aqui, recebo dezenas de emails, tenho de tratar dos preparativos da próxima missão, responder a solicitações várias que me fazem, falar com amigos que estão por aí, espalhados pelo mundo, contabilidade, de tudo um pouco, uma espécie de bastidores daquilo que sou enquanto alpinista”.
Dois computadores, um telefone por satélite, um localizador GPS, a camera digital e o portátil preparado para baixas temperaturas, até um Ipod que resiste às baixas temperaturas, com a sua música, instrumentos indispensáveis à condição de alpinista profissional, espalhados pela sala transformada em lugar de trabalho. “Tudo material essencial para quando estamos lá em cima, para fazer os directos para a SIC, para os documentários, para me para não me perder! Gosto do silêncio quando estou sozinho, de estar comigo, com a minha música a ver o horizonte... Posso ouvir de Génesis, até Mozart, dependo do momento, do estado de espírito”, sorri.
Para além de alpinista, João Garcia é escritor, os seus dois livros em conjunto atingiram os cem mil exemplares vendidos, realiza documentários, é requisitado por empresas para palestras de autoconfiança e superação de objectivos, marca as suas próprias entrevistas e trata da maioria dos pormenores relativos a cada expedição. “Para continuar a fazer o que gosto tenho de me tornar num veículo publicitário, ter outras preocupações. Por exemplo, havendo apenas 11 pessoas no mundo que conseguiram este feito, eu, ao propor-me, acabo por conseguir traduzir o que vou conseguindo para algo que o público consegue perceber e que me permite continuar no fundo a fazer aquilo que mais gosto”.
Apesar do instinto apelar incessantemente à descoberta, à superação, o medo continua a não o atemorizar, utiliza-o até como elemento para despertar os sentidos. “Personifico aquele gajo que não quer desistir, como o ditado que diz que o magnífico não está em nunca cairmos mas em sabermo-nos levantar sempre depois da queda. Sei que posso não regressar um dia... Medo? Sim, faz parte! Faço isto para me superar, para eliminar as barreiras que tenho em mim. A existência é como uma montanha e eu estou no auge da minha. Todos temos um Evereste, este é o meu, é a minha vida”.

Pública: Um dia com... Joana Solnado

“Gostava de descobrir o segredo da estabilidade emocional”

Tem um sorriso tão fácil quanto fechado a quem não a conhece para além dos ecrãs, ou das páginas cor de rosa que lhe inundam o dia a dia. A demanda da inteligência das emoções, a procura pela personagem ideal, o reconhecimento, são pequenos passos, indispensáveis para completar a forma como olha o mundo.

Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


“Olha, é a Joana Solnado”. O traço mais comum do seu dia a dia acaba por se situar na expressão que se ouve, em tom de voz sussurrado à sua passagem, normalmente acompanhado por um dedo levantado na sua direcção. Não admira. Para além de aparecer nas telenovelas que povoam os primeiros lugares das tabelas de audiências, o seu nome e a sua imagem surgem em média associados a cerca de 100 notícias escritas em jornais e revistas, números que confirma. “Há pouca crítica de televisão cá, e demasiada crítica acerca das figuras que aparecem na televisão, é pena que assim seja”, lamenta.
Outro dedo apontado, mais outro sussurro acompanhado de um sorriso de reconhecimento. “Olha...”. A cena repete-se, uma e outra vez, com outras personagens, em cenários distintos, como nos últimos anos, desde que começou a aparecer na televisão em horário nobre. “Estou habituada já, depende da abordagem que na maioria dos casos é muito boa. De qualquer forma, a exposição mediática não é o meu objectivo, mas sim fazer aquilo de que gosto. Se as pessoas me reconhecem, espero que o seja pelo meu trabalho lhes ter tocado”, explica.


Na pele de Eduarda
Estúdios da NBP, Vialonga, a poucos quilómetros de Lisboa com vista sobre a já antiga Expo. Começaram há alguns meses, os preparativos para o seu próximo papel na série ‘Equador’, onde vai vestir a pele de Eduarda. A complexidade da personagem, pede-lhe uma segunda leitura da obra de Miguel Sousa Tavares. “É o primeiro passo do trabalho de composição daquela que será uma jovem que trabalha numa farmácia do começo do século XX. Mas só comecei a ler o livro em Janeiro, por causa da série. Houve uma altura em que toda a gente o tinha debaixo do braço mas tenho uma certa aversão a fazer o que todos estão a fazer, um pouco como aconteceu com o Código Davinci ou mais recentemente com O Segredo”.
Na sala de ensaios da produtora, os papéis misturam-se com os trajes de época espalhados por um espaço que se torna seu diariamente, enquanto aprende a vestir e a despir convenientemente o uniforme imposto pelo guião. “Os próximos meses vão ser passados por aqui e serão assim cheios de viagens, de trabalho, de sucesso espero”, lança num sorriso. “Se isto dá trabalho... Se dá, depende também da personagem, que pode demorar três dias ou três meses a surgir como eu quero”.


Emoções fortes

Joana Solnado nasceu a 21 de Setembro de 1984 no seio de uma família de artistas. “Talvez tenha sido importante para mim, porque tive a sorte de estar por perto de pessoas que me ensinaram muito em vários aspectos. O meu avô? Temos ambos o nosso espaço, mas dá-me muitos conselhos, admiro-o imenso como pessoa e como profissional também, claro”.
Estreou-se nas tábuas do palco aos 14 anos com a peça ‘King, I have a Dream’. Neta de Raul Solnado, filha do músico Rui Madeira e da escritora Alexandra Solnado, Joana frequentou e interrompeu o Curso de Ciências da Comunicação e Cultura na Universidade Lusófona há alguns anos. “Não o tenciono acabar, já desisti dessa ideia porque me vai preparar para fazer o que já faço. Prefiro investir no meu desenvolvimento enquanto actriz em workshops por exemplo. Se não fosse isto? Seria bióloga marinha, sempre fui mais de ciências, de matemática, por aí”, explica enquanto saboreia uma sopa durante o almoço, no restaurante situado em frente ao estúdio.
Das primeiras aparições nos Morangos, aos dias das novelas para a família, para lá das memórias e dos colegas que se fizeram mais tarde amigos, restaram apenas os fãs. “Quando faço peças mais pesadas, mais sérias, lá vão eles todos! Por vezes, como aconteceu há pouco tempo com uma representação do Shakespeare, passados uns minutos ficam de boca aberta porque não estão à espera de um registo tão sério. Vêm dos morangos, alguns deles. O que penso da série? No meu tempo julgo que era diferente, até um pouco ingénua no que pretendia mostrar. Hoje é um pouco mais ousada ou precoce!”, assinala.
De tudo o que fez, e quer fazer, uma linha indivisível entre a personalidade e as várias personagens às quais deu vida e de quem se mais tarde ou mais cedo se despediu. “A emoção. Para mim é o sentido máximo. Gosto que as circunstâncias mexam com as minhas emoções, mexam comigo. Eu trabalho com emoções e tenho de exercitá-las”.


Limites por descobrir

Aos vinte e três anos, Joana assume que gosta de cantar e escrever “só” para si, que é extremamente pontual, apesar de não ser muito “dada” a regras e que procura ainda os seus limites. “Tenho-os, claro! Por exemplo, não faria nunca em televisão um nu integral, mas se calhar no cinema, bem conversado, com bom gosto, não teria problemas!”
A sua relação com o humor é genética, ou profissional? “Gosto do género, já fiz alguns papéis nessa área, mas prefiro outros que me dêem mais trabalho de composição, que me obriguem a ter de andar atenta, como faço às vezes no eléctrico, para ver o que as pessoas dizem, as expressões que utilizam. Mas trabalho também muito com fotografias, com recortes de jornal onde vejo por exemplo olhares que me marcam e que procuro depois incutir na personagem que estou a construir. O meu quarto está cheio de recortes!”
É ainda hoje, a falta de cor nas pessoas que mais a incomoda. “O cinzento fica mal às pessoas, tento não ser assim! A vida vai-se apresentando e eu vou gostando”.


Outra margem

“Tenho um dia a dia estranho, não é muito normal. Acho que tenho mais actividade nas férias do que propriamente durante a maior parte do tempo sabe?!”. Companhia inseparável, o seu cão Che, que anda sempre consigo no carro, mesmo para as gravações. “Ele gosta, e também há outros actores que têm cães, como o Ruy e Carvalho, ou a patrícia Bull que também os trazem”.
Gosta de viajar, sempre o fez desde pequena. “A experiência mais marcante?! Hum... Uma viagem que fiz ao Senegal, há uns anos já... Mudou-me por dentro, levei um estalo. Achava-me livre antes disso, que sabia ler um olhar, pensava que tinha noções exactas sobre muitas coisas, uma série de certezas, isso mudou em mim! Não fiquei num resort, suguei a realidade, aquela que a televisão não consegue mostrar normalmente e que existe, infelizmente, em muitos lugares. Quando regressei cheguei à conclusão de que nada sabia!”.
Por ter sido educada entre Portugal e o Brasil, mistura ainda um pouco ambos os portugueses. “Tive uma infância diferente de muitos dos meus amigos de liceu, porque andava cá e lá. Nunca vi a Guerra das Estrelas por exemplo, mas vi coisas que lá eram famosas para os miúdos da minha idade e que cá também ninguém conhecia por causa da tradução diferente. Fartava-me de ser gozada”.
Belém. O Tejo, paisagem visual com a qual convive desde os tempos em que viveu em Cascais, ainda criança. É ainda por aqui que se procura e encontra, quando tem um pouco mais de tempo, para si, e para os amigos. “Normalmente almoço por aqui no A Margem, gosto do sitio, é calmo, tem a ver comigo, sinto-me serena”, explica, enquanto bebe um sumo de laranja e contempla os reflexos de nuvens passageiras espalhadas pela foz. “Gostava de descobrir o segredo da estabilidade emocional”, revela.
Quando era pequena gostava de ser Julieta. “Agora gosto de mudar de universos mas gradualmente porque não quero levar coisas más para casa, é preciso ter as emoções bem arrumadas...”. Sorri, e pausa o discurso. “Há um processo para isto, que muda de personagem para personagem, mas por vezes é mais complicado. Daqui a uns anos gostava de fazer cinema, ainda não consegui. Até lá gostava de melhorar, aprender a fazer coisas em que acredito”.

Pública: Um dia com... São José Correia

“Sou como sou, e gosto”


Olhar profundo, cabelo negro e escorrido, como as palavras que se vão soltando ao longo do dia, em cada ideia, em cada lugar que costuma frequentar e tornar seu, na distância entre a São José das novelas, do cinema, do teatro e a mulher que se encontra algures entre ambas.

Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia Moreira


Manhã cedo ainda, na agência Loft, no Largo Camões. Os relógios suspensos na parede marcam tempos diferentes deste. Nova Iorque, Paris, Tóquio, São Paulo apontam caminhos opostos, no percorrer dos ponteiros atravessados. As caras conhecidas em retratos que forram as divisórias, compõem o restante cenário de fundo. São José prepara-se para o seu primeiro book publicitário. Ao fundo do corredor, reconhece-se pela voz, como gosta aliás. “Olá, bom dia, como estão?!”, cumprimenta com um sorriso que se torna constante, contagiante até, com o decorrer do dia.
Na contra luz, onde parece sentir-se melhor, Maria João, a maquilhadora retoca-lhe a sombra dos olhos, traçando-lhe a lápis fino o estilo de mais uma personagem... “Não, esta não é, sou apenas eu retocada! Sei que sou mais magra que na televisão, que sou diferente. Não ando nada assim no dia a dia, sou até muito casual na forma de vestir. No fundo acho que sou como as outras pessoas afinal! Quando acordo? Acho-me horrível! Tenho preocupações, olheiras, toda a gente as tem”, sorri.


Dança e livros

Aos trinta e três anos, São José Correia é hoje uma das actrizes mais faladas e procuradas da televisão portuguesa. Mais nova de entre quatro irmãos, o nome pelo qual acabaria por se tornar conhecida, não seria o do baptismo. “A minha mãe sempre quis que eu fosse Conceição, mas o meu pai queria que eu me chamasse Maria José como ela. Acabou por me registar assim, mas sempre me trataram por São e assim ficou”. Para a vida e para a carreira artística que haveria de descobrir um dia, “num impulso de miúda que tinha o sonho de ser actriz”, no Teatro de Almada, ainda com 19 anos, “quando faltou uma das intervenientes de uma peça e eu me ofereci para ir para lá”, curiosidades que vai recordando, no caminho para o almoço.
São vários os olhares que se cruzam na sua direcção. “É natural, estou habituada e nem sequer costumo ter problemas, normalmente as pessoas são educadas comigo”, explica sem incómodo. Aparenta na realidade uma fragilidade que diz não ter, no semblante sempre profundo e pouco à vontade nas fotografias, mas que deixa revelar, para além delas. “Não tenho muita paciência para exibicionismos ou poses que me pareçam falsas. Também não gosto de ser conhecida, de entrar num restaurante e as pessoas cochicharem, não me agrada dar entrevistas ou tirar fotografias mas reconheço que enquanto figura pública tenho de ceder um pouco nisso”.
Ninguém cochicha quando entramos no Vertigo, perto do Largo do Carmo. “Um almoço hitchcockiano”, humoriza.
Fala muito e sem artifícios, com os gestos, com o olhar e com as palavras. Gosta de cozido à portuguesa, arroz de pato, de sushi, não perde o seu Benfica numa marisqueira perto de casa ou dispensa uma ida à praia quando tem um pouco de tempo disponível na agenda demasiado preenchida. “E adoro escrever, e leio em qualquer lado, mesmo nos transportes onde passo bastante tempo porque não tenho carta, já a paguei umas quatro vezes e... não tenho paciência”, lança numa gargalhada.
Um café, um cigarro à porta por causa “da maldita” lei do tabaco e... a dança, na conversa. “Sempre tive um fascínio por isso! O Dança Comigo foi dos maiores desafios da minha vida sabes?! Não ia nada segura! De onde me vem o gosto pela dança... Acho que é uma coisa inata, humana, que me liberta. Danço muito em casa, é aliás o meu exercício porque não faço ginásio nem nada disso”.


Silêncio
Peça indispensável da sua imagem na vida real são os sapatos rasos e leves. “Por mim até andava descalça! Desde pequena sempre fui assim, lembro-me até que brincávamos muito no adro da igreja, que era de seixos redondos, e só de andar ali, mesmo devagarinho, já me doíam os pés”. De então para cá, algumas diferenças... “Queria ser advogada, hoje seria incapaz de julgar quem quer que fosse. Não tenho dúvidas nem receitas para ninguém. Sempre fui muito tímida, mas isso estimulava-me. O medo aliás, impulsiona-me! Sou competitiva mas... chego sempre atrasada”, exclama num tom quase tão embaraçado, desmascarado num traço de sorriso orgulhoso.
O regresso à igreja, a uma outra, diferente daquela onde brincava na meninice. Igreja dos Ingleses, Chiado. Alguns turistas aproveitam para fotografar o interior, ajoelham-se, como a maioria das pessoas que se distribuem pela nave central, nos bancos corridos de madeira de verniz desgastado. Apesar da roupa casual, algumas delas reconhecem-na, comentam entre si. Observa por segundos as figuras do altar, senta-se. “Gosto de igrejas porque todos os ruídos, todas as distracções ficam lá fora! E acaba por ser um exercício pessoal que aproveito também enquanto actriz. Olho para alguém, para uma cara, para um semblante e imagino uma situação de desespero... Mas por vezes imagino-me a mim, penso nos momentos que passo sozinha, nos meus receios, sinto-me bem durante algum tempo, serena, ganho forças e regresso ao mundo real”.

Contrastes
“Sei que estou um pouco marcada por uma imagem mais provocante. Já pensei nisso, mas mau de facto é não ter trabalho e estas coisas por vezes não nos cabem a nós decidir. Posso dizer que a primeira vez que pude escolher entre dois papéis aconteceu agora, ao fim de alguns anos de carreira. E optei por uma figura diferente que neste momento representa um desafio para mim”.
Mas enquanto mulher, onde se cruzam afinal a São José e as várias personagens que vai caracterizando? “Depende, isso sucede naturalmente, ou não. Há alturas em que acontece e me identifico com certas características sim. Tenho medo de me sentir inútil, mas não da solidão com a qual convivo bastante bem”.
E a sua relação com o pecado? “Damo-nos bem! O pecado vem do prazer e eu sou quase amoral, não me preocupa o que pensam os outros, sou fora da lei e gosto de andar aos zigue zagues”.
Quanto a homens... “Sou anti-romantismo! As flores, as mãozinhas, os passeios na praia, não têm a ver comigo. Mas acredito no amor, cada um com a sua forma, com o seu tempo. E não gosto de homens muito preocupados com a imagem, nem me agrada sobremaneira o conceito de metro-sexual. Não tenho tipo de homem, apaixono-me pelo ser humano, pelas ideias, gosto das pessoas pelo que lá têm dentro”

Um dia perfeito...
“Não há dias perfeitos! (sorri) Quando não estou a trabalhar acordo só quando me dói o corpo, faço um café, fumo um cigarro, ponho música e tomo um banho. Depois venho andar pela baixa, apanhar sol, estar com amigos... À noite costumo deitar-me tarde, apenas quando tenho sono. Passo os olhos pelos guiões, ando a ler vários livros ao mesmo tempo, vejo uma série ou outra, até ter vontade de adormecer”, conta.
Gosta de caminhar, mesmo que não tenha destino traçado. “Apenas para passear, ver pessoas, fotografar lugares e pormenores que não vemos no dia a dia quando andamos à pressa”. Ao passar por uma loja de bugigangas, pára, gosta de tocar, de mexer. “Preciso de sentir as coisas. Acho que isso ou é defeito de actor, ou é mesmo meu”, deixa escapar em forma de gargalhada sonora.
O fim de tarde no Chiado, pede momentos de serenidade. “O dia está a abrir, bonito! A luz é importante em tudo na minha vida... O que sou eu afinal? Sou como sou, e gosto”

Pública: Um dia com... Roberta Medina

O seu Rock por um mundo melhor



Os sonhos e a realidade diária da mulher de sorriso fácil e olhar frontal que organiza o maior festival de música do mundo. Roberta Medina, a empresária de sucesso, a relações públicas sem preconceitos, a menina que se diz ainda, que continua a “adorar” rodas gigantes e montanhas russas feitas de metáfora, para o imaginário, e para a vida que procura “conquistar” a cada segundo.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


“Delicioso, o que é?!”. É mais um dia de preparativos para o Rock in Rio 2008, “um dos últimos setecentos e tal, porque tudo isto começa no dia em que o anterior acaba”, encolhe os ombros e sorri sem cerimónias. Escolhem-se as ementas da tenda vip, dos jornalistas, das equipas de produção, dos convidados especiais e provam-se entradas quentes e frias, pastas variadas, bifes de peru com ananás, empadão de peixe, bacalhau com broa, semi-frios de vários sabores e texturas gustativas.
Roberta pergunta tudo o que não sabe, não é formal, foge das normas que impedem o sorriso fácil e o trato aproximado. “Eu sou assim, porque não haveria de ser? Acho que todos os brasileiros são informais, mas sendo uma empresária, num meio de homens, tenho de ter armas diferentes para lidar com as situações”. E tem-nas, utilizando o sorriso para iluminar o ambiente, contagiar a sala, aligeirar os tons cinzentos das conversas relacionadas com patrocinadores above e below, engenharias de palcos e mil e uma campanhas promocionais com as insígnias “Eu vou”, que lhe servem também de lema de vida. “É verdade, não gosto de indecisões, nem de grandes cerimónias sabe? Quando se gera um impasse, gosto de decidir, ir para a frente, sem perder muito tempo”.



Cidade em construção
Só no último fim de semana de Maio serão abertos ao público os portões da cidade do rock. Por agora, os sons que prevalecem ao longo do Parque da Bela Vista tocam ao compasso dos martelos, das máquinas retro-escavadoras, dos aparadores de relva e dos enormes camiões que circulam carregados de material pelos caminhos de um recinto ainda irreconhecível. Numa das entradas, o segurança de serviço não a reconhece e pergunta “se é funcionária da Câmara”. “Não, vimos só ver, podemos?”, responde com boa disposição.
“Não tenho ânsia em aparecer, em ser figura pública. Organizo um festival, sou conhecida por causa disso. O resto, a minha vida, a minha família e amigos, eu própria, fica para mim, para quem eu gosto. Não tenho jeito para aparecer nas capas das revistas, ou ser uma celebridade. Só a imprensa cor de rosa é que pega em mim de vez em quando mas não gosto muito disso”.
O Palco Mundo está ainda desmontado, como puzzle ao longo do relvado. À primeira vista tudo parece idêntico ao recinto que, nas duas edições, em 2004 e 2006, abrigaram em média quase quatrocentas mil pessoas. Mas Roberta Medina, directora da Better World, empresa produtora do festival, desvenda a principal diferença em relação às anteriores, pelo menos em termos de filosofia. “Este ano, elegemos as alterações climáticas como tema central do ´Projecto Social, Por Um Mundo Melhor`, tanto aqui, como em Madrid, onde vamos estar no final de Julho, com o Festival. Queremos aproveitar para alertar muitas consciências que ainda não se aperceberam que o nosso planeta corre perigo de vida”.
Se organizar um Rock in Rio dá muito trabalho, dois não serão demais? “Não, claro que não! É um desafio, o crescimento do projecto, a sua internacionalização. Nas edições que já realizámos, vários milhares de jovens e crianças no Brasil, em Portugal e em diversos outros países já foram beneficiados pelas doações provenientes das vendas de ingressos e das acções promovidas pelos nossos parceiros. Quanto maior for, melhor será o seu exemplo e a ajuda que poderemos dar a quem precisa”. E nem a dimensão económica gigantesca que atingiu o sonho do seu pai, que na década de oitenta criou um festival de música para ajudar os mais desfavorecidos pela vida, lhe parece ameaçar o destino. “Creio que a sobreposição dos valores económicos aos princípios que levaram a que isto tudo fosse possível nunca vai acontecer. É que sem isso, nada faria sentido, passaria a ser apenas uma máquina de fazer dinheiro, que nem dá assim tanto lucro”, lança, com um sorriso no rosto e convicção nas palavras.


Mulher de negócios...

Aos trinta anos, e “apaixonada” pela produção de eventos desde pequena, Roberta Medina vai espalhando boa disposição por onde passa. “Olá, como vai?”, mais à frente, repete as palavras, a entoação e o cumprimento. “Sei distinguir quem gosta realmente de mim, de quem apenas tem interesse, por causa da grandeza do evento! Aprendi isso aos doze anos, quando uma colega de escola só me falou durante o festival porque queria bilhetes... Depois, deixou de me ligar! Cresci com essa experiência, aprendi a ver certas coisas, e também a aproveitar esse facto a meu favor, em termos de negócios”.
Vive há cinco anos em Portugal, no Estoril, enquanto a família, a mãe, o pai e os dois irmãos, se repartem por Espanha e pelo Rio, a terra natal. “Adoro Lisboa! Claro que tenho aquela perspectiva de quem vem de fora, mas é muito bom isso, porque me habituei a visitar todos os sítios assim e nunca nos habituamos a deixar de reparar nos pequenos pormenores que tornam os lugares interessantes”, conta, enquanto vai observando os edifícios, as particularidades dos passeios, as pessoas que passam na rua. Gosta de indicar o caminho, mesmo quando não conduz. “Sim, tenho sempre um objectivo, uma ideia inicial que me leva a querer atingi-lo”, conta, a caminho dos escritórios da empresa no Campo Grande.
A reunião semanal da equipa que prepara o Rock in Rio 2008 está prestes a começar. São quase cinco horas. O ambiente é jovem, informal, ruidoso, simétrico a Roberta. “Sim, tinha de ser assim, não consigo trabalhar com pessoas que não estão bem, preocupo-me com eles, se precisam de um abraço ou de alguma ajuda. Afinal passamos aqui muitas horas todos, a trabalhar para a mesma finalidade, acho que devemos isso uns aos outros ou não?!”.


...Com sonhos de criança

Durante a maior parte do encontro, observa, dá a sua opinião, como se de mais uma se tratasse. Na verdade, Roberta já não estranha a responsabilidade que tem em mãos, diariamente, quase todos os dias do ano, desde muito nova, quando assumiu a internacionalização do festival e veio sozinha para Portugal. “São vinte cinco milhões de orçamente, muitos contratos, papéis, reuniões... Mas no primeiro dia vale a pena! E no último então, quando tudo acaba e corre bem, um alívio e uma alegria imensa!”.
Pessoalmente, as coisas não mudam, e parece viver a vida com simplicidade. “Sempre! Todos temos dores de barriga, defeitos e qualidades, ninguém é mais do que outra pessoa!”. Fora do trabalho, e dos palcos empresariais, ainda “adora” as rodas gigantes e as montanhas russas que lhe preenchiam os serões de criança, confessa em Belém, na diversão instalada em frente ao Tejo. “Adoro este rio! Andar aqui nesta roda faz-me lembrar de quando era pequena sabe? Estava sempre a andar nas diversões! E ainda tenho todos os meus peluches de menina, e procuro acreditar, como o meu pai me contava, que quando adormeço, andam pela casa a fazer lá o que têm que fazer! Tento manter alguns destes traços de personalidade, talvez para compensar aquela parte da juventude que não tive, mas que aproveito para ir vivendo ao longo da vida de adulta, cheia de responsabilidades e decisões para tomar”.


“Sou feliz”

O seu dia está quase a terminar. Depois da preparação da conferência de imprensa com
Mário Lino, a entrevista com Ana Sousa Dias, no Rádio Clube. “Já estou habituada, mas ainda tenho de voltar ao escritório, preparar algumas coisas para amanhã e depois ir para Madrid”. O telefone toca. Tem dois, um português e outro “portunhol”, confessa com humor. “Na verdade falo português, inglês e um pouco de castelhano, mas quando me irrito começo a misturar tudo e ainda fico mais irritada”, lança, com uma gargalhada.
No parque onde por vezes costuma passear, um banco de jardim que “vem mesmo a calhar”, num dia em que o sol se começa a por para lá das copas das árvores que, embaladas na suave brisa da tarde, lhe acalmam por momentos, os pensamentos. “Daqui a dez anos quero estar casada, ter dois filhos e ser feliz! Mas acima de tudo, viver num mundo melhor que este em que vivemos. Se sou feliz hoje? Sou, muito! Faço o que gosto e o que posso para ajudar a melhorar as coisas. Mas não me sinto bem com a forma como o mundo está hoje em dia, com a miséria, com os conflitos. Temos de mudar isso!”.

Pública: Um dia com... José Sá Fernandes

“É possível mudar Lisboa”

“Vamos fazer!”. É talvez a expressão que mais lhe sai ao longo do dia. “Sempre achei que era isso que faltava bastante na política, o vamos em vez do prometemos ir”.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia Moreira


Nove horas da manhã, Câmara Municipal de Lisboa. O actual Vereador do Ambiente e Espaços Verdes já anda de um lado para o outro, de papéis na mão, em reuniões, a preparar projectos, a ter ideias que vai discutindo apaixonadamente com a sua equipa. “Gosto de começar cedo, há muita coisa para fazer nesta cidade”, explica. O telefone toca, uma constante ao longo do dia, porventura o mais visível sinónimo das mudanças na vida de alguém que até há dois anos se recusava a ter sequer um telemóvel e fumava três maços de tabaco por dia. “Deixei de fumar este ano, estou a fazer uma dieta rigorosa...quanto ao telemóvel, fui apanhado pelo progresso”, humoriza.


Novos caminhos
Aos 50 anos, José Sá Fernandes revela uma única ambição.”Viver numa cidade porreira”, vai dizendo. A linguagem acessível mantém-se uma característica sua, muito distante dos termos herméticos utilizados habitualmente na política, faz-se perceber, gosta de se sentir entendido por todos. Dos tempos em que se tornou conhecido por defender interesses comuns a Lisboa e aos seus cidadãos, guarda os amigos, os conhecidos, as muitas vitórias e as poucas derrotas sofridas em Tribunal. Subscreveu dezenas de processos judiciais destinados a impedir auto-estradas, túneis, elevadores e parques de estacionamento, preservar o património arquitectónico ou simplesmente “devolver à cidade um determinado edifício ou paisagem, entregá-la ao livre usufruto dos lisboetas. Hoje em dia ainda o faço, ainda ajudo as pessoas sempre que posso, sinto-me bem a fazê-lo”.
Depois da reunião do gabinete do Bloco de Esquerda na Câmara, um passeio pela cidade.
“Todos os dias faço caminhadas, para conhecer lugares ou para os rever, e poder ir percebendo o que é preciso mudar, remodelar, fazer de novo”.
Saímos em direcção a Santa Catarina. Entre todos os outros projectos que tem para a capital, enquadrados nas propostas de melhoria da mobilidade que vem apresentando desde que assumiu o pelouro há nove meses, a criação de ciclovias e percursos pedonais dentro da cidade é dos que lhe dá mais “gozo”. “Hoje vamos aqui do Museu de Geologia até Santa Catarina descobrir novos caminhos para a cidade. Ontem fizemo-lo ali do outro lado, perto do Atheneu, descobrimos lugares sensacionais”, conta com entusiasmo.
João Castro, chefe de departamento de estudos e projectos da Câmara, responsável pelos espaços públicos da cidade, acompanha-nos. “Olhe ali arquitecto, podemos deitar este muro abaixo, abrir aquele portão, pavimentar isto, ajardinar aquilo e já está”. José vê percursos, onde não se consegue observar mais do que mato urbano e portas abertas, onde elas ainda nem sequer foram ainda construídas. “Temos uma realidade, falta de dinheiro e muitas destas coisas, que podem devolver vida à cidade, trazer gente para estas zonas não custam muito a fazer, nem dão muito trabalho, é só conhecer a realidade. Esta será uma revolução porque permitirá às pessoas usufruir de espaços lindíssimos que lhes pertencem mas lhes estão vedados”, explica.
Por entre abraços e sorrisos que vai distribuindo na rua, a maioria sentidos, as pessoas reconhecem-no. Umas da televisão, outras mais de perto. “Olhó Zé” diz uma senhora, depois um jovem, e outro, outro... Parece que gosta. “Uns tratam-me por vereador, outros por Zé, agrada-me isso, que as pessoas percebam que sou igual a elas, sempre fui, que estou perto, que ando a pé, que percebo os problemas delas, que acabam por ser os de todos nós que vivemos esta cidade”, vai dizendo, enquanto coloca o braço por cima de uma senhora que faz questão de o cumprimentar.


Encontro inesperado
José Sá Fernandes tem uma predilecção especial pela Natureza e pela beleza natural das coisas que se vai notando pelo olhar que lhes dedica. Durante anos plantou árvores às escondidas, sempre que nascia um filho de um amigo. Sorri. “Ainda hoje o faço, e até lhe posso dizer que em todas as entradas de Lisboa há uma árvore minha, para me dar as boas vindas sempre que entro na cidade”.
Hora de almoço. A dieta que começou há poucos dias impede-o de saborear plenamente os sabores da mesa, mas arranja alternativa, uma tarefa na qual se revela um verdadeiro especialista. “Gosto de almoçar depois destes passeios, sabe melhor”, deixa escapar. Costuma escolher o restaurante de acordo com o que de melhor tiver. “Se quiser bacalhau vou a um, um bom bife, a melhor sopa, ou a mais saborosa sandes de carne, vou a outro”.
Na mesa ao lado almoça Francisco Nunes Correia, ministro do Ambiente. Trocam breves impressões de circunstância, mas não deixa de lhe contar o que pretende fazer naquela zona, em que até fica o Ministério do Ambiente, por onde passará o percurso pedonal, e cujas traseiras se encontram num estado lastimável. “Boa ideia”, responde o ministro.
Um café, e um apetite que não dá para satisfazer. “Um cigarro é que me apetecia agora”, lamenta, sentindo o odor aos fumos que ainda pairam, tentadores, na entrada do restaurante. Toma mais uma das pastilhas de nicotina que andam sempre consigo no bolso do casaco, que vai mascando ao longo do dia, para fazer amainar o vício. Hora de regressar à Câmara. Descemos a Calçada do Combro, atravessamos o Largo Camões em direcção ao Chiado. Está sempre atento aos pormenores errados a carecer de reparação. “Aqui vamos colocar um quiosque, ali mais à frente aquele jardim vai ser recuperado e depois ali aquele edifício, que horror... Vamos tratar disso”.


Lisboa em mudanças
Lisboeta convicto desde pequeno, José Paixão Moreira Sá Fernandes nasceu a 15 de Abril de 1948 e cresceu na Avenida de Roma, próximo de Alvalade. Benfiquista convicto com uma predilecção pelos clubes de bairro, amante do rock e do jazz, gosta de Portyshead, Morphine e Swell mas já não vai muito a grandes concertos. “Estou a ficar velhote para isso, o que se vê até pelos gostos! Não sei muito bem o que há de bom agora”, graceja em forma de pergunta. Prefere cinema, ou o teatro, acompanhado da filha de 14 anos. Trata a cidade por tu, e conhece quase todas as ruas pelos nomes que vai indicando ao motorista da viatura da Câmara. “Tenho o hábito de indicar caminhos, porque conheço muito bem a cidade, cresci aqui”.
De novas ciclovias e jardins públicos, concessões de quiosques e esplanadas se vai falando. O entusiasmo mantém-se. “Este é o desafio da minha vida, sabe? Quando aceitei isto foi com o intuito de poder de facto fazer alguma coisa, mudar uma Lisboa que estava num estado lastimável quando chegámos”. Se há dez anos não esperava chegar onde chegou, daqui a outros tantos, deseja apenas “ter orgulho naquilo que eu e a minha equipa fizemos!”.
Mais tarde, o encontro com Roberta Medina, por causa de mais uma iniciativa no âmbito do Rock in Rio, esta relacionada com a utilização de energias renováveis nas escolas da cidade. “Tem sido bom para Lisboa o festival. Em 2010 será o último, depois, não sei, mas ficava bem ali na zona a seguir à antiga Expo, um Rockódromo onde se pudesse também colocar a Feira Popular que deixou de existir e que faz muita falta”, revela.


O outro lado

Ainda na zona Oriental de Lisboa, e depois das fotos, das declarações de ocasião e dos cumprimentos da praxe, sabe que tem ainda hoje de passar pela Assembleia Municipal, regressar à Câmara para assinar uns despachos e atender mais umas quantas chamadas telefónicas. Pelo meio ainda vai dando instruções ao motorista. “Vá pela esquerda que é mais perto, confie em mim!”.
“Já vai longo o dia não é?! E este ainda é dos mais curtos”, sorri. “Se pensava que ia ser assim? Claro, tinha uma noção clara de tudo isto embora confesse que não tenho muita paciência para certas reuniões da Assembleia ou da Câmara, porque gosto mesmo é de ser prático e de resolver as coisas e não de estar com conversas que não acrescentam nada”, confessa, afastando o medo de se tornar politicamente correcto. “Não, eu serei sempre apenas correcto”, lança com humor afiado, um pouco antes de sentar para começar a jantar com a sua filha. “Chegou agora o momento familiar”. Altura de o dia político acabar, e começar no papel de pai, o dia familiar.

Pública: Um dia com... João Adelino Faria

Dias do avesso


Acorda normalmente às quatro e meia da manhã para entrar no Rádio Clube às seis. Depois... a magia que se diz que a telefonia tem, e que redescobriu há ano e meio quando aceitou o convite para devolver as manhãs à Rádio.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira



Noite cerrada ainda. Na Sampaio Pina, onde fica o Rádio Clube Português, nem os cafés estão abertos, apesar do aroma a bolos acabados de fazer. Os maços de jornais permanecem atados no chão, amontoados perto do quiosque da esquina, e os gratuitos espalhados na entrada do edifício são ainda os do dia anterior. Vinte minutos para as seis da manhã. A porta automática abre-se, ao mesmo tempo que a as máquinas de café começam a funcionar, em sincronismo inesperado para quem não conhece o ritual. “Olá, bom dia... aliás boa noite, ainda!”.
Passo acelerado, principais diários debaixo do braço, fato completo, sem gravata. “Não consigo andar devagar, Life is to Short! Adorava poder vir de ténis, mais à vontade, mas tenho normalmente vários convidados em estúdio ao longo da manhã e não pode ser, infelizmente”. O sorriso soa a franco, bem disposto, habituado à nova rotina que dura há ano e meio, quando decidiu sair da SIC, e aceitar o convite de Luís Osório para assumir o cargo de director adjunto e coordenar toda a informação do novo projecto da Media Capital.


Minuto a minuto

A redacção de onde saem as notícias que preencherão as próximas cinco horas de emissão, entre as sete e o meio dia, sente-se viva, apesar dos olhos avermelhados e sensíveis à luz artificial. João Adelino anda apressado, cumprimenta toda a gente que o acompanha desde início na sua “aventura séria”, como lhe chama. O seu telefone toca, logo desde manhã cedo, numa constância que se prolonga pelo dia fora. “Nada me faz desligar o telemóvel”, confessa enquanto se apressa com um molho de notícias numa das mãos.
“Hoje temos uma manhã longa, variada e... ainda nem começou. Isto de entrevistar o presidente da PT Multimédia primeiro e depois os Rádio Macau tem que se lhe diga, é uma grande diferença, requer preparação, mas é interessante para mim enquanto jornalista até porque normalmente termino com a parte cultural que é mesmo para saborear”. Chamam-no ao estúdio, para alinhavar o guião. Catarina Silva e Bruno Santos são os produtores do Minuto a Minuto, desde o início de 2007. “Conhecem-me as más disposições todas”, humoriza. “É verdade”, gracejam.
“Já entrevistei quase toda a gente. As que mais me marcaram?! Bem... depende. Normalmente com os políticos faz-se aquele jogo tradicional em que eles já vão preparados para as perguntas e eu já estou preparado para as respostas. Mas há pessoas fascinantes em todas as áreas. Posso dizer que a pior que fiz foi com as Spice Girls, quando estavam no auge, não saiu nada dali! Mais recentemente lembro-me da entrevista com o Paulo de Carvalho, e com o Herman em que conseguimos atingir momentos tocantes que não estavam previstos e que no fundo são aqueles em que se tem mais gozo de estar a conversar com alguém e a partilhar isso com quem nos está a ouvir”.
Café em copos de plástico, uma presença indisfarçável em qualquer lugar de trabalho matutino. Três, dois, um... A contagem feita com os dedos, conclui-se com um acenar de cabeça mútuo, do lado de lá e de cá do vidro que separa os estúdios de emissão e produção. “Bom dia, são sete horas...”. Informação. Minutos depois, durante a publicidade, vai passando os olhos pela SIC Notícias. “Saudades? Da televisão algumas... Foram muitos anos, ainda é onde me sinto mais à vontade e até por isso funciono com a equipa e com o próprio local, como se de um estúdio televisivo se tratasse. Sinto principalmente falta das pessoas, mas com essas vou estando para por a conversa em dia. Sei que foi estranho para muita gente ter deixado a televisão mas estas mudanças fazem parte da vida e posso dizer que hoje, um ano e meio depois, estou feliz por ter dado este passo”.


Homem da cidade

João Adelino Faria nasceu em Castelo de Vide, no interior do Alentejo, “tão longe de tudo isto... Ainda lá regresso, quando preciso de recarregar, ou descomprimir”. Hoje na casa dos quarenta, depois do curso de direito, concluído “para fazer a vontade” ao pai, acabou ao longo dos anos por experimentar profissionalmente todos os meios de comunicação. Começou por estagiar no antigo semanário Sete, seguiu para O Jornal, passou pelo Jornal de Letras e mais tarde ingressou no Correio da Manhã Rádio. Na SIC desde os primeiros dias da estação, onde foi, para além de pivot do Jornal da Noite, correspondente em Londres, acabou por se tornar numa figura pública, estatuto que rejeita pelo menos na formulação mais associada ao termo. “Na rádio, querem falar com o João... Recebo muitas cartas, algumas de pessoas que têm vidas complicadas e que me dizem que as ajudei em algum momento, em função do meu trabalho, isso é mais fácil de acontecer aqui e é gratificante! Como pessoa, sou reservado, acredito que um jornalista tem de seguir uma certa linha de conduta, por respeito à profissão, não se pode tornar ele próprio na notícia”.
Jornalista então de manhã, director adjunto à tarde, quando regressa à secretária do seu escritório com vista sobre a redacção e um pedaço de luz natural que ilumina os livros e os cd´s que traduzem o cenário para algo mais pessoal. “Faz parte do projecto que aceitei, tenho uma série de reuniões de trabalho, e depois preparo a emissão do dia seguinte para amanhã estar tudo em ordem quando chegar”.


Livros de fim de tarde
Um dia de sol costuma pedir um passeio. “Muitas vezes, o que ma falta é tempo que tenho pouco!”. No topo do Parque Eduardo VII, perto do edifício onde passa a maior parte do seu dia, costuma tomar um café ou uma água das pedras, apreciar o horizonte que se vê daqui, por entre os prédios da baixa pombalina, o pedaço de Tejo a passar, lá ao fundo. “Fantástico este retrato não é?!”. O telefone toca.
Leitor “compulsivo”, sente-se à vontade a percorrer os corredores da Feira do Livro que já está em plena actividade. São inúmeros os títulos que lhe puxam a atenção, despertam a curiosidade, que lhe avivam memórias antigas. “Olha aqui está... O Príncipe, de Maquiavel, um dos meus livros preferidos! Lembro-me que numa aula de direito o professor Marcelo no-lo aconselhou! Anos mais tarde quando o li, achei fascinante e percebi então as referências que nos tinha feito”. Uns passos mais à frente, um outro clássico. “Já o Principezinho... nunca percebi o fascínio!”. No stand da Relógio D'água, o seu nome numa capa, algo raro. “Não é um livro meu, é apenas uma compilação das minhas conversas com o Daniel Sampaio no Rádio Clube. Escrever, eu?! Só para mim, quando chego a casa, ou estou com vontade de exorcizar algo de bom ou mau, não tem valor literário!”, lança com um sorriso.
“Já vai longo o dia”. Quando estava na SIC, fazia as noites e chegava normalmente a casa de madrugada. Sintonizava os serões com a SkyNews, ou com o Sexo e a Cidade. Hoje acrescentou-lhe a Al-Jazeera, onde reconhece muitos dos colegas com quem conviveu em Londres, onde abriu e fechou a delegação da estação de Carnaxide. "Estava num prédio onde havia correspondentes do mundo inteiro, foram bons tempos de vez em quando revejo-os no cabo". As preferências mantém-se, a rotina é que mudou na ordem proporcionalmente inversa. “Deveria deitar-me às dez, mas acabo sempre por adormecer por volta da meia noite, isto é violento, preciso de férias”, graceja.
Um dos hábitos que preserva tem a ver com viagens, outro dos seus grandes prazeres na vida e com uma rotina anual, esta mais simpática que a maioria das rotinas "Sim, normalmente em Agosto, costumo ficar pela Califórnia um mês. Tem praia e bosque... Mas também adoro Nova Iorque, é A cidade, ali estou sozinho. A minha manhã perfeita começaria sempre no Central Park a ler o New York Times, é fabuloso". Sorri, com ar nostálgico de quem pensa fazer desse prazer, uma constante diária. “Não! Ainda é cedo para me reformar, há muita coisa a fazer até lá! Daqui a dez anos, onde me vejo?! Não sei, toda a minha vida as coisas me foram acontecendo naturalmente... Neste ritmo talvez não, até porque a idade já vai batendo à porta, mas o futuro o ditará”.

Notícias Sábado: Companhia Teatral do Chiado: Mário Viegas, ou o segredo do sucesso!


A celebrar dezoito anos de existência e de êxitos, a Companhia sonhada por Mário Viegas tem nas Obras Completas de William Shakespeare em 97 minutos o seu maior exlíbris. Doze anos em cena, sem fim à vista, uma lista de espera de três meses e um letreiro de “esgotado” que nunca sai da vitrina da bilheteira. A NS foi descobrir os segredos que fazem desta, uma forma diferente de fazer e mostrar o Teatro. Sem preconceitos nem subsídios, pelo público, para o público, com o público.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


“Olha ela a rir-se, não percebeu nada coitadinha!”. A loira, o velho, a tia, o emigrante... Estereótipos sociais, desenhados para fazer rir sem parar. “Shakespeare já o fazia, era popular, não trabalhava para as elites, fossem elas culturais ou económicas”. O verdadeiro truque? “A simplicidade! Em tudo na vida, o mais difícil de conseguir”.
Este é apenas um dos segredos que elevam a Companhia Teatral do Chiado a um patamar diferente do teatro português, a um primeiro balcão, mas com vista privilegiada, sempre, sobre a plateia.
Das apostas que se faziam nos primeiros tempos da Companhia sobre o seu fim prematuro até às bilheteiras sucessivamente esgotadas, passaram dezoito anos, cheios, acima de tudo, de gargalhadas.


Primeiro acto, o Começo
Tudo começou em Londres. Mário Viegas e Juvenal Garcês, fundadores da CTC costumavam viajar mundo fora. “Para ver peças e conhecer lugares diferentes! Víamos muito teatro”. Numa dessas viagens, uma peça escrita pelos ingleses Adam Long, Jess Borgeson e Daniel Singer captou-lhes a atenção e o sorriso. “A sala estava esgotada há anos, a produção era enorme, caríssima, o Mário adorou”. Coincidência ou não, na mesma cidade, uns anos antes, conheceram também Simão Rubim, que viria a ser um dia a principal figura das Obras Completas. “Tínhamos estado a ver uma peça com o Dustin Hoffman. Esperámos para falar com ele no final, mas saiu por uma porta lateral e o Mário começou logo a reclamar que ´Não podia ser, era uma vergonha, quem é que ele pensava que era`... Nisto, aparece um sujeito alto, um outro actor que entrava na peça e nem sabíamos quem era”. Simão. “Era eu sim... Fui ter com ele e perguntei-lhe...´É o Mário Viegas não é?! Ficámos amigos logo ali, deixei Londres e vim para Portugal para a Companhia ganhar trinta contos. Pouco?! Era o Mário Viegas, isso não tem preço!”.
O actor e declamador nunca veria em palco, a peça de que um dia o fez sorrir. “E era difícil, fazia rir mas não dava gargalhadas! Morreu um mês antes da estreia. Foi complicado para nós, mas decidimos ir para a frente, por ele”, recorda.


Segundo acto, Sucesso
As obras completas de William Shakespeare em 97 minutos têm o título mais longo de que há memória.... E também não há nenhuma outra que em Portugal esteja há tanto tempo em cena, sem interrupções e quase sempre com o mesmo elenco. Desde 1996, cerca de 1200 espectáculos, mais de 180 mil espectadores e centena e meia de digressões pelo país e pelo estrangeiro. Juvenal Garcês, director da Companhia desde 1996, explica. “Há uma coisa que não se faz cá em Portugal, até pelo facto de haver poucas salas disponíveis, que é manter as peças que têm êxito junto do público, em cena, enquanto têm espectadores. Fazemo-lo por respeito às pessoas que gostam, e enquanto vierem, fá-la-emos, não temos um final previsto”.”.
A farsa elaborada a partir das 37 peças do dramaturgo inglês e da centena e meia de sonetos que deixou ao mundo, deveria decorrer em 97 minutos. João Carracedo, Manuel Mendes e Simão viajam em palco, a uma velocidade alucinante. Trocam de roupa num piscar de olhos, multiplicam as cenas de trás para a frente, em câmara lenta, em várias línguas... Na maioria das vezes o serão prolonga-se e chega a ultrapassar as duas horas e meia. “É um espectáculo vivo, as piadas não são sempre as mesmas, porque vive muito da actualidade”, explica João.
Manuel, João e Simão são assim amigos e cúmplices em palco e fora dele. Afinal, quase todas as noites de há doze anos para cá, agora apenas às segundas e terças feiras, estão juntos. “Imaginem só a paciência que é preciso ter para aturar estes dois gajos este tempo todo”, humoriza Manuel, reflectido no espelho dos camarins, enquanto prepara o rosto para vestir a personagem para mais uma actuação.
Há repetentes na sala. É habitual. Alberta Osório, de 43 anos já viu a peça quatro vezes, a primeira há dez anos. “Volto porque me faz rir do princípio ao fim, tem um ritmo que nos agarra e nunca é igual à noite anterior".
“Dizem-nos muitas vezes que para tragédia, basta a vida. Quando ouço pessoas do pseudo-teatro sério dizerem que a comédia é um género menor é porque são ignorantes. O objectivo do que fazemos é transmitir emoção, rir, chorar, o que for, desde que seja verdadeiro. Acho que essa atitude fechada de muitos actores e encenadores do nosso país é que afasta as pessoas dos teatros. Não fazemos isto para os nosso amigos ou para o nosso grupinho, mas para as pessoas”, explica Simão.
A interactividade com a plateia está também sempre presente. “Depende das pessoas que estejam, da noite, do fait divers que estiver em voga na altura", complementa João Carracedo. “Muitos espectadores ficam cheios de medo de os irmos buscar para fazer palhaçadas. Normalmente não levam a mal, porque é tudo uma brincadeira, mas já tivemos algumas situações complicadas, claro!”.
“Casamentos, pessoas a irem-se embora a meio, padres insultados com as piadas contra a igreja a dizer que iam preparar o nosso funeral, padres que se fartaram de rir que nos deram a bênção, famosos, políticos, como o Durão Barroso ou Mota Amaral que se desunhou a rir ...temos de tudo”, recorda Manuel.



Terceiro acto, Sem final
“O teatro é uma arte que tem de falar para toda a gente, dizia o Almada Negreiros. Fazemos teatro popular, não comercial! O Mário não gostava de pedir subsídios. Por vezes escrevia as cartas com a letra toda esgatafunhada para não se perceber nada, porque sempre quis fazer espectáculos para o público, porque um teatro tem de viver da bilheteira, de quem lá vai e não de dinheiro do estado!”.
Com uma política de comunicação executada pela Lifft, uma das maiores agências de comunicação portuguesas e que se encarrega entre outros projectos, do Rock in Rio ou da Media Capital Rádios por exemplo, até aqui se verifica uma diferença importante em relação aos costumes de outras companhias teatrais. “De há alguns anos para cá, apercebemo-nos que poderíamos modernizar esta área. Dependemos muito do boca a boca e quisemos profissionalizar a dinâmica de publicitação dos nosso trabalhos, porque há muita concorrência hoje em dia, de outros eventos e não há que haver pudores de comercializar uma coisa que é boa e bem feita”, explica Luís Macedo, responsável pelo Marketing da Companhia.
Juvenal Garcês fundou a CTC com Mário Viegas, em 1990. Anos depois, assumiu a direcção, quando o amigo morreu. “O que me diria ele se estivesse aqui sentado?!”. A voz torna-se embargada, a emoção preenche-lhe os olhos, e deixa escapar, em tom baixo e humedecido. “Ficaria contente...”.
Pelos corredores, ainda desertos do Teatro Estúdio, em cada recanto, em quase todas as palavras, se pode encontrar um pouco do espírito de Mário Viegas. Rita Lello, uma das mais antigas do grupo e actualmente a protagonizar o êxito de bilheteira As Vampiras Lésbicas de Sodoma, um cabaret clássico que parodia o thriller e o terror, e que já vai no terceiro ano em cena, conheceu Mário ainda pequena. “Estive cá com ele até aos 16 anos, depois andei por aí, e regressei com as Vampiras. O que se faz aqui tem sempre um cunho de sensibilidade, de transmissão de um olhar para o mundo, que hoje é o olhar do Juvenal, fragmentado, generoso, caótico, satírico, cáustico. Onde se sente mais a presença do Mário aqui?! Ele queria exprimir e exercer a sua sensibilidade sem a tutela de ninguém. Mesmo que cá não esteja, está, e conseguiu-o.”.
Juvenal sorri. “Dizia muitas vezes...`Não quero ficar na rua da Pide, não quero!`... Não ficou! Estamos de costas para ela! Já não há pessoas assim...”, lembra e lamenta, com um sorriso que lhe vem da memória ainda e sempre, viva.



Caixa:
Mário Viegas morreu num dia de mentiras, a 1 de Abril de 1996, passaram agora doze anos e alguns dias sobre a data. A Companhia Teatral do Chiado funciona desde o seu nascimento em 1990, na sala Teatro Estúdio com o nome do seu fundador, quando a Câmara Municipal de Lisboa, sob a presidência de Jorge Sampaio, lhes cedeu uma das salas do Teatro Municipal de S. Luiz.
Após o falecimento do actor, encenador e director Mário Viegas, Juvenal Garcês assumiu a direcção artística e geral. A Companhia Teatral do Chiado estreou-se no dia 16 de Novembro de 1990, no Seixal.




Legendas

No seu livro auto-photo-biográfico, com apenas duzentos exemplares editados, conta a história da sua família. Mário Viegas dizia ser a encarnação do seu trisavô paterno, o famoso actor Francisco Leoni, fundador do Teatro da Trindade.


A receber a condecoração da Ordem do Infante D. Henrique das mãos do então presidente da República Mário Soares e do primeiro ministro, à época Cavaco Silva, que não cumprimentou, “porque não gostava dele”, conta Juvenal Garcês.


Nos seus últimos anos de vida, concebeu "Europa, Não! Portugal Nunca!!", um espectáculo em forma de conferência de imprensa onde personificava um pseudo-candidato à Presidência da República. Levou tão a sério a sua preocupação com o estado geral do país, que chegou a participar nas eleições legislativas de 1995, como candidato independente pela UDP. “Durante essa peça, levou Mário Soares às lágrimas de tanto rir”.


Notícias Sábado,Abril de 2008