julho 08, 2008

Pública: Um dia com... Paulo de Carvalho

Dias diferentes, canções de sempre



Passeia sempre com o Tejo por perto, o “símbolo” de uma Lisboa que canta, que o “encanta” desde sempre. Depois, o homem para lá da música, simples, directo, sem receios de ser “inconveniente” no palco diário da vida real.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


Alcântara. A azáfama habitual dos restaurantes à hora de almoço. Faltam lugares para estacionar, o horário parece sempre apertado demais, o calor já tem gosto a Verão, num corrupio onde não há filas à porta porque o sinal azul permite o fumo tabagista, e mais uns segundos de ar climatizado. “Olá, como estão?”. O sorriso imediato, o trato na segunda pessoa, as primeira impressões demarcadas no singular, por Paulo de Carvalho.
Começou mais tarde o seu dia, hoje, por causa do espectáculo de beneficência em que irá participar, ao final do dia, no Casino. “Sim, levei a minha filha à escola de manhã, e tomei o pequeno almoço já tarde, não tenho muita fome”. Não dispensa ainda assim um belo bife de vaca, com ovo a cavalo. “Gosto de comer bem, escolho o restaurante de acordo com o que me apetece naquele dia. Cozinhar? Não tenho muito jeito nem paciência, prefiro andar por aí!”.
Não é raro que os olhares se desloquem para ele, não se incomoda com isso. “Tenho histórias engraçadas, normalmente dizem-me coisas boas. Ainda no outro dia um senhor me abordou na rua, para me contar que tinha uma filha chamada Nini!”, graceja.

Do Amor
"Mais do que cantor sou músico, toco voz". A frase não lhe soa nova, mas sente-a como verdadeira. “Não sou um artista, não tenho feitio nem paciência. Serei sempre e só um músico!”.
Escritor de mais de trezentas canções distribuídas por quase meio século de carreira, Paulo de Carvalho tornou-se incontornável nas memórias da música portuguesa das últimas décadas. Lisboa Menina e Moça, o Homem das Castanhas, os Putos, os Meninos do Huambo, Mãe Negra e tantas, tantas outras. “Não gosto de me vangloriar do que fiz, não sou assim, cada um tem o lugar que merece! Talvez tenha sido um pouco esquecido sim, sempre disse a verdade, o que penso. Se me arrependo? Sei que sou uma figura polémica mas eu sou assim e não vou mudar”. Um café, outro café, para compensar o cigarro que não fuma há mais de vinte anos.
Fundador dos Sheiks, mais popular banda da década de sessenta, retornados em formato de musical no ano passado e regresso anunciado para os próximos meses, chegou a jogar futebol no Sport Lisboa e Benfica. “Nos juvenis sim! Tenho ainda hoje lugar vitalício no Estádio da Luz, mas para mim bola é só no campo, quando acaba não sigo mais o fenómeno mediático que hoje em dia o rodeia”, conta.
Desde sempre compôs para muitos outros músicos, de Carlos do Carmo a Simone de Oliveira, de Sara Tavares a Lena D’Água, até Mariza. “O fado vai bem, muito bem! O importante é que cada fadista tem de encontrar o seu próprio fado. A Mariza? Ultrapassou o patamar das fronteiras, é do mundo já, mantendo as raízes, o que é muito importante mas, estando fora já das muitas pequenices que ainda há por cá”.
Paulo de Carvalho regressa agora, oito anos depois de Dagama, o seu último álbum, editado em 2000, com ”Do Amor” (a tournée começa a 20 de Setembro no Olga Cadaval em Sintra), um disco de afectos, “num tempo em que nem sempre há disposição para gostar das pessoas. Talvez por isso seja o tema que os compositores mais perseguem, porventura o mais complicado de todos, aquele que mais me faz pensar, reflectir, que mais me dificulta a vida, que mais me preenche”.
Para além da fadista, Ivan Lins, Tito Paris, Agir e Mafalda Sacchetti (dois dos seus filhos) participam nas canções com que marcou este regresso. “Este disco nasce sobretudo da minha amizade com os músicos que tocam comigo até porque todos eles abdicaram da sua agenda para se concentrarem neste trabalho que acabámos por gravar muito depressa, em cerca de vinte dias. Estamos a tentar encaminhá-lo para um circuito de jazz e world music no resto da Europa, há boas perspectivas”.
Quanto às primeiras impressões... “Já estou habituado a ouvir pouca música portuguesa na rádio, mas às vezes acontece, não percebo bem como isto funciona, vamos ver! Acho que o verdadeiro problema é de base e é simples, gostamos pouco do que se faz em nossa casa, é isto”.

Regresso ao Casino
Parece por vezes um pouco desiludido com tudo o que o rodeia. “Repara... Penso que hoje se vive de uma forma muito ligeira, pouco aprofundada, andamos muito ocupados, esquecemo-nos um bocadinho do que é mais importante, apegamo-nos a modas e a conceitos mais ou menos estéreis... Pessoalmente estou numa boa fase, estou feliz, mas isso não me impede de ser crítico do que nos rodeia, reflectir sobre isso não é ser pessimista! Já agora sabes o que é um pessimista?”. A pergunta é retórica porque a resposta já lhe vem anexada. “É um optimista com muita experiência!”. Dá uma gargalhada que se generaliza ao longo do dia, umas vezes carregada de ironia, noutras apenas de vontade de sorrir, porque apetece.
Cinema, conversa, viagens, comida, vinho, futebol, livros e música, claro. Prazeres desordenados na ordem natural das prioridades? “Sim, todos indispensáveis no meu dia a dia. Ao contrário do que se costuma dizer, gostos discutem-se, devem debater-se, mais que não seja para se terem conversas interessantes”, humoriza.
“O que ando a ouvir agora?” Vai ao porta luvas buscar os discos que o costumam acompanhar quando anda de carro. “Tenho aqui muita coisa, a maioria da música que oiço é instrumental, desde St Gernain a Gotan Project, Vicente Amigo... olha o Pat Metheny! É o meu ídolo sabias?!”.
O fim de tarde começa a cair no relógio, apesar dos dias serem ainda longos. O Tejo acompanha-nos ao longo do caminho, em direcção ao Estoril. Um cacilheiro ao fundo, lento, sobre as águas. “Por vezes gosto de ir até ao outro lado, atravessar o rio...”, solta, enquanto o seu olhar permanece solto, na outra margem.
Já conhece os cantos ao Casino. Lá dentro, no salão Preto e Prata, António Chaínho, Rão Kyao e Isabel Noronha já preparam o espectáculo de angariação de fundos para as vítimas do terramoto que devastou Sichuan, na China. As afinações entrecruzam-se nas conversas trocadas que preenchem o ambiente e lhe dão um toque quase familiar. Um, outro, e outro abraço. “Olha o meu amigo, como vais?”.
Terá participado já em centenas de eventos de solidariedade, desde campanhas de angariação de fundos ou chamadas públicas de atenção ao longo dos anos, sendo este apenas mais um daqueles aos quais não poderia deixar de comparecer. “Não gosto do estado chinês, mas aqui trata-se de pessoas e o valor humano está acima da política”, explica. Chega a sua vez, anunciada pelo mote da guitarra portuguesa. O alvoroço de empregados que preparam a sala, abranda por momentos. Canta como sempre, percebe-se quem é, na primeira respiração vocal, que faz o tempo passar depressa. Correu. “Já está”. Sorri, despede-se dos colegas, um aceno cúmplice, até à hora de jantar.

E depois...
Na rua, no supermercado, no café, por onde anda durante o dia, não é pouco usual pedirem-lhe uma canção. “Normalmente os músicos nunca podem dizer que não a nada! Por exemplo se eu fosse um engenheiro ninguém me dizia para construir aqui uma casa ou uma ponte! Mas isto é um bocado como o futebol, toda a gente acha que é capaz, que é fácil, que nem é um trabalho!”, ironiza com um sorriso.
Hora das compras, um dos seus hobbies...”Quer dizer, é preciso, tem de se fazer”, interrompe, enquanto vai observando os anos de colheita dos vários vinhos em exposição, pensando na melhor escolha para acompanhar determinado momento que não deixa no entanto escapar para a conversa. “Não olho muito a preços, gosto de um bom vinho de facto! Talvez seja como a música e outras coisas boas da vida. Não sou um grande perito, só comecei a beber aos quarenta! Mas sei saborear, apreciar, acompanhado da minha mulher, de uma conversa solta, de uma boa comida, sabe melhor não é?!”.
E depois do adeus? “Voltem amanhã!”,estende a mão e sorri. “Ainda cá espero andar mais uns anos, até breve”.

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