julho 08, 2008

Pública: Um dia com... João Garcia

Dias planos

Foi o primeiro português a conquistar o Evereste. Quando não está nas montanhas veste o fato para os dias de treino intenso, sempre a pensar em regressar aos tectos do mundo, a sua verdadeira casa, “a minha vida”.

Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


Parque do Monsanto. Lisboa vê-se ao fundo, embrulhada numa névoa típica de grande malha urbana, com o Tejo sereno, sempre a seu lado. Sente-se o contraste deste lado, ouvem-se os pássaros, pressente-se o verde envolvente, respira-se fundo, expira-se melhor. Velhos e novos correm para cima e para baixo com o sol a queimar já. Outros, andam de bicicleta nos mesmos sentidos, com esforço idêntico replicado nos rostos de cada um. “Bom dia João, então aqui é melhor que lá em cima não, é mais quentinho”. João Garcia acena, sorri, baixa a cabeça e continua a correr. É assim a forma de ser do mais afamado alpinista português. “Na montanha também acontece isto, falamos sempre por quem passa por nós... Isto aqui é fenomenal para quem gosta de desporto e há pessoas que já conheço só de andar a treinar! Sinto-me bem com esse reconhecimento, é sinal de que faço bem o meu trabalho”.
Passa normalmente seis meses por ano a subir montanhas. Quando está em casa, na outra metade do seu tempo anual, a sua rotina é menos arriscada, nem por isso mais serena. Levanta-se normalmente às seis e meia da manhã. Da sua casa em Alfragide costuma partir, em corrida para Monsanto onde “dá umas quantas voltas” ao Parque. Nos dias de bom tempo, o trajecto é diferente e prefere as duas rodas da bicicleta. “Costumo fazer cem quilómetros dia sim, dia não, vou até ao Guincho, passo por Sintra e regresso. Se custa muito?! Tem de ser, para me aguentar lá em cima, para as pernas não fraquejarem, para não morrer de cansaço, e digo-o literalmente, tenho de fazer este trabalho diariamente”.


Ensinar o corpo a subir

Tudo começou quando pegou na bicicleta aos 15 anos e, de Lisboa, pedalou até à Serra da Estrela para escalar pela primeira vez. Aos 17 já tinha conquistado o Monte Branco... Descobria assim, na prática, o espírito aventureiro que o haveria de empurrar para sempre montanha acima. Entretanto, ainda chegou a prestar serviço militar na Bélgica, para a NATO. “Pagavam bem, mas aquilo não era para mim”, recorda. De então para cá, nunca mais parou de subir, foi guia de alpinistas em todos os continentes, aproveitava os tempos livres para fazer as suas próprias excursões, “sempre com o objectivo de um dia viver só disto”, conta.
Aos 39 anos, João Garcia propõe-se, até 2010, a ser a 12ª pessoa do mundo a escalar as 14 montanhas mais altas do planeta. Dez desses cumes já lhe ficaram gravados no currículo e na memória, entre os quais o Evereste, em 1999, a mais alta de todas as montanhas, que o tornou no primeiro português a atingir de tão perto o céu, e uma das raras dezenas a fazê-lo sem recurso a garrafa de oxigénio. “É uma questão de princípio, porque a dificuldade está nesse pormenor simplesmente decisivo quando estás lá em cima, porque há menos ar para respirar, é completamente seco e o frio é inacreditável”.
A ironia de um destino que procura nos seus próprios limites, traçou-lhe no caminho que a escalada que o tornaria famoso para todos os portugueses, haveria de ser aquela que lhe ficou cicatrizada na lembrança, e no corpo, como a menos memorável de todas. “Estranho não é?! Foi a pior de todas as excursões”, lamenta. Nesse dia perdeu o amigo Pascal Debrouwer, que o acompanhou ao cume. Depois de uma caminhada de quase vinte horas, caiu numa ravina durante a descida e morreu, já quando regressavam ao acampamento base. “O topo do mundo estava ali tão perto que decidimos tentar”. Silêncio. Também João Garcia quase perdeu a vida nesses momentos. “Ficaram-me estas marcas para a vida... Nunca mais lá voltei, nem voltarei. Já está, já foi”, deixa escapar, por entre um baixar do olhar, para apressar o momento. “Passei os três meses seguintes no hospital a recuperar sem saber bem o que iria fazer da minha vida”. Depois, uma espécie de despoletar interno, trouxe-o de volta às origens e conduziu-o ao que mais gosta de fazer. “Voltei outra vez à montanha, regressei à Serra da Estrela, depois aos Alpes e dois anos mais tarde já estava noutro cume com mais de 8 mil metros. Provei a mim próprio que podia continuar a ser o mesmo e voltar a ser feliz”. Conseguiu superar mais um limite. “Sim, se vires as coisas por aí, sim!”.


Na cozinha com...
Quase meio dia. “Bem, por hoje, já chega de exercício”, exclama com a respiração acelerada do cansaço a que já se habituou, por entre mais alguns cumprimentos a “colegas” de exercício físico ocasionais que se vão aproximando. É quase hora de almoço, o sol está a pique e a fome “já aperta” o estômago.
Normalmente dedica-se ele próprio aos seus cozinhados, aproveita para repor massa muscular que perde nas missões, para se “tratar bem”, complementa. Antes disso, ainda vai passear a cadela, uma Rotweiller de dez anos de idade que toda a vizinhança já conhece. “Não faz mal a ninguém, é velhota já”, sorri, enquanto uma das vizinhas brinca com a Jimy.
Depois do banho tomado, o avental, a colher de pau, os temperos sobre a bancada de mármore. Depois, o refogado, o molho de tomate, a carne picada e”voilá”, um petisco à moda da montanha... “Esparguete à bolonhesa?! À moda do montanhista!”, humoriza.
“É um dos meus pratos favoritos, quase todos os dias como isto!”, deixa escapar com humor, enquanto observa o tempo da fervura da pasta. Antes, uma sopa de cenoura, “a melhor do mundo, aliás como a bolonhesa também”, graceja. “Sabes que lá em cima, praticamente só comemos sopas, alguns enlatados, e muita água, por isso temos de recuperar quando nos estamos em fase de preparação”.
João chegou há pouco mais de um mês da sua última expedição ao Makalu, montanha chinesa que é a quinta mais alta do mundo. Seguirá para o Broad Peek, no Paquistão, dentro de alguns dias, iniciando assim a escalada de dois meses que o levará até ao décimo primeiro dos catorze tectos do mundo que se propôs a “conquistar”. Apesar da proximidade da data de partida, a tensão já não se faz sentir como nas primeiras subidas. “Não penso muito nisso já... Lembro-me que antigamente lia e pesquisava imenso sobre a próxima viagem, agora vou simplesmente descobrindo as adversidades pelo caminho, vou conhecendo no dia a dia, a aventura é maior, dá mais gozo. Gosto de objectivos difíceis, tornam a aventura ainda mais saborosa”.

Escritor, realizador e... empregado de escritório
Durante a sessão de autógrafos onde promovia "Mais Além", a sua segunda obra de experiências feita, na Feira do Livro de Lisboa, não faltavam curiosos, procurando explorar o que os seus olhos alcançaram ao longo dos anos. João Garcia é de sorriso fácil, trato directo, silêncio penetrante, por vezes. Depois regressa.
Da janela da sua sala vê-se Lisboa ao fundo, com o Monsanto pelo meio. “É bonita a vista daqui não é?!”. Hora de ir para o escritório. “Passo grande parte do meu dia aqui, recebo dezenas de emails, tenho de tratar dos preparativos da próxima missão, responder a solicitações várias que me fazem, falar com amigos que estão por aí, espalhados pelo mundo, contabilidade, de tudo um pouco, uma espécie de bastidores daquilo que sou enquanto alpinista”.
Dois computadores, um telefone por satélite, um localizador GPS, a camera digital e o portátil preparado para baixas temperaturas, até um Ipod que resiste às baixas temperaturas, com a sua música, instrumentos indispensáveis à condição de alpinista profissional, espalhados pela sala transformada em lugar de trabalho. “Tudo material essencial para quando estamos lá em cima, para fazer os directos para a SIC, para os documentários, para me para não me perder! Gosto do silêncio quando estou sozinho, de estar comigo, com a minha música a ver o horizonte... Posso ouvir de Génesis, até Mozart, dependo do momento, do estado de espírito”, sorri.
Para além de alpinista, João Garcia é escritor, os seus dois livros em conjunto atingiram os cem mil exemplares vendidos, realiza documentários, é requisitado por empresas para palestras de autoconfiança e superação de objectivos, marca as suas próprias entrevistas e trata da maioria dos pormenores relativos a cada expedição. “Para continuar a fazer o que gosto tenho de me tornar num veículo publicitário, ter outras preocupações. Por exemplo, havendo apenas 11 pessoas no mundo que conseguiram este feito, eu, ao propor-me, acabo por conseguir traduzir o que vou conseguindo para algo que o público consegue perceber e que me permite continuar no fundo a fazer aquilo que mais gosto”.
Apesar do instinto apelar incessantemente à descoberta, à superação, o medo continua a não o atemorizar, utiliza-o até como elemento para despertar os sentidos. “Personifico aquele gajo que não quer desistir, como o ditado que diz que o magnífico não está em nunca cairmos mas em sabermo-nos levantar sempre depois da queda. Sei que posso não regressar um dia... Medo? Sim, faz parte! Faço isto para me superar, para eliminar as barreiras que tenho em mim. A existência é como uma montanha e eu estou no auge da minha. Todos temos um Evereste, este é o meu, é a minha vida”.

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