julho 08, 2008

Notícias Sábado: Sempre à escuta...


O imaginário de Sherlock Holmes, Sam Spade, Dick Tracy, até Claxon, emerge sempre que se fala em detectives privados. A realidade é no entanto muito díspar da ficção, dos romances e das películas norte-americanas das décadas de trinta e quarenta. Em Portugal, não existe enquadramento legal para uma actividade onde se misturam polícias, detectives, carolas, burlões e onde muito se passa nos enredos mais ou menos claros que a Lei deixa por preencher. Dos tradicionais casos de infidelidade às mais recentes acções de investigação ao serviço de grandes empresas, conheça o fascinante mas pouco romântico mundo dos detectives privados.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira



Bons, maus e vilões. Folheia-se um jornal e lá estão eles, normalmente sem fotografia, recorrendo na maioria dos casos a ilustrações ou cartoons munidos de lupa e chapéu à Sherlock Holmes. Quando se percorre a Internet, também se encontram inúmeros sites dedicados à investigação privada não judicial ou criminal. Muitos não têm sequer morada, apenas um contacto telefónico que vai mudando, sem data marcada ou aviso prévio. Não há mulheres detectives em Portugal, e na generalidade, oferecem todo o tipo de serviços de investigação, dos inevitáveis casos de infidelidade matrimonial, ao controlo de filhos menores, mas também de buscas de pessoas desaparecidas, apuramento de provas para processos de poder paternal, levantamento de bens penhoráveis de empresas ou particulares, de idoneidade de futuros empregados, baixas fraudulentas, duplicidade de emprego... Um universo de informação que espera por ser descoberta. A oferta é variada, mais ou menos explícita em termos de linguagem, nunca demasiado, porque a falta de legislação torna demasiado fácil o resvalar para a ilegalidade.
Um dos mais conhecidos e reputados detectives privados em actividade é António Correia. Investigador há mais de 25 anos, co-fundador da Associação Nacional de Detectives Privados de Portugal, coloca semanalmente anúncios no Público, desde a sua primeira edição, e em alguns outros jornais. Oferece os seus serviços e a sua experiência sob o lema, "Investigações Com Dignidade”. “Porque em todas as actividades, ainda para mais naquelas que não estão regulamentadas, é necessária uma conduta profissional e idónea”, explica, sem querer “falar muito” por se encontrar a actividade a passar por “dias difíceis”, lamenta.
“O grande problema que enfrentamos no dia a dia é de facto esse, o de não existir uma regulamentação como existe no resto da Europa ou nos Estados Unidos, até em Espanha, onde se marca a linha entre o que se pode ou não fazer” complementa João Santos, um dos mais antigos profissionais da investigação privada em Portugal. Na casa dos quarenta anos, há mais de vinte dedicou-se à profissão de detective, depois da agência de publicidade da qual era gestor ter falido. “A ideia surgiu através de um amigo, e fui fazer um curso a Barcelona, porque cá não havia, como ainda não há, nenhum tipo de formação nesta área. Quando regressei, apercebi-me que havia potencial de mercado para me profissionalizar e assim fiz”, explica, imediatamente antes de um dos seus três telemóveis começar a tocar. Mais um dos muitos clientes que vão aparecendo por ali. “Chegamos a ter seis e sete casos por mês”; revela.
De então para cá, fez um pouco de tudo, perseguiu maridos e esposas enganadoras, descobriu factos onde haviam apenas desconfianças, “auxiliou” empresas e escritórios de advogados, mas não entra nunca em grandes pormenores, “por sigilo profissional”, justifica. “Esse tipo de clientes, os dos casos amorosos, continuam a aparecer, mas bastante menos. Com a chegada das multinacionais, começaram a aparecer outro tipo de trabalhos e nós funcionamos cada vez mais com grandes empresas”.
Lidera hoje uma equipa de oito investigadores profissionais na Agência de Investigação Josan, com escritório em Benfica. Os diplomas das inúmeras formações que foi fazendo ao longo das últimas duas décadas compõem as paredes brancas da sala e conferem seriedade às suas palavras. Malas metalizadas com código de segurança e alguns cabos desarrumados em cima de uma das mesas, deixam lugar à curiosidade, mas não passam de sinais quase invisíveis dos adereços que se esperariam encontrar nestas ocasiões. “Essa coisa das escutas e das câmaras não é bem assim, não se faz à balda nem isto é uma agência americana para estar tudo aqui à mostra, até porque é ilegal e não costumamos utilizar esse tipo de equipamentos! Sou hoje um detective mais de secretária, ou de bancada digamos assim. O meu trabalho é muito de coordenação do pessoal, de distribuir tarefas e serviços e lidar com os clientes. Se tenho saudades da rua? Continuo a andar por aí, mas menos”.
João Santos é hoje o vice-presidente da ANDPP. Observador, atento de todos os pormenores, mantém a postura enigmática de quem conhece o bom e o mau da vida. “Temos de ser sérios nesta profissão, é fácil enganar alguém e o que não falta aí são intrujões que se encontram com as pessoas em bombas de gasolina, aproveitam-se do seu desespero e pedem-lhes dinheiro adiantado para depois desaparecerem. Temos cerca de quarenta associados, mas fora devem andar à volta dos cem porque muitos aparecem e desaparecem. O que pode a associação fazer? O que temos feito, falar com o Governo para regulamentar isto tudo, para enquadrar a nossa profissão para podermos trabalhar sem pisar o risco, como por vezes acontece. Por exemplo, se eu necessitar de consultar ficheiros civis ou estatais, tal como saber se o indivíduo tem cadastro, ou onde trabalha ou reside, tenho muitas dificuldades no acesso à informação, porque não há legislação e isso complica o nosso trabalho”. Quanto a formas de ultrapassar essas barreiras? A resposta, fica no silêncio, apenas garante que “nunca” ultrapassa a lei.
De sorriso quase sempre escondido da conversa, só o esboça quando se fala em James Bond, de mulheres insinuantes e de uma visão um pouco romântica que ainda permanece no imaginário colectivo, do detective quebra corações que se envolve com as clientes e tem uma vida faustosa de luxúria e prazeres carnais. “Isso são filmes! A realidade é que isto é um trabalho e as pessoas que aqui vêm normalmente não estão numa boa fase da sua vida e querem resultados, e quanto mais depressa possível”.

Casos de Polícia. Não existe qualquer curso superior em Portugal, pelo menos oficial para se aprender a ser detective privado. Alguns dos profissionais “do mercado” são antigos polícias. Fala-se de outros, ainda no activo, uma realidade que no entanto ninguém afirma oficialmente, mas que se vai confirmando nas entrelinhas. “Comenta-se isso de facto, mas eu não conheço nenhum! Se é errado? Estar a aproveitar conhecimentos adquiridos ao serviço do Estado em beneficio próprio, é inqualificável”. Paulo Pereira Cristóvão tornou-se conhecido do grande público depois de ter abandonado a Polícia Judiciária ao fim de 17 anos de serviço, e de há pouco mais de um ano ter escrito o best seller (cerca de 95 mil exemplares vendidos), “A Estrela de Joana”, que conta a história da criança algarvia assassinada pela mãe e pelo tio.
Depois de deixar a PJ, Paulo abriu uma agência de consultoria e investigação empresarial, a Primus Lexis. “Tinha a noção de que em Portugal havia mercado para o tipo de trabalho que fazemos aqui e por outro lado, não havia profissionais que o pudessem fazer dentro da lei, com conhecimento das normas. Por isso, somos a única empresa do género, neste ramo e não temos nada a ver com esse mundo obscuro e amador dos detectives privados”.
Apesar da lista de clientes ser, em termos de identidades, reservada ao conhecimento geral, assume que trabalha quase exclusivamente na área jurídico-financeira. “Trabalhamos com grandes empresas, com escritórios de advogados, com empresários. Podemos ajudar uma empresa a controlar um conjunto de funcionários que se aproveitam de falhas na segurança interna para desviar equipamentos, como uma instituição bancária que tem um director de departamento que arranja clientes falsos para desviar dinheiro. Até a verificação de backgrounds curriculares, aquando da contratação de funcionários ou coisas tão simples como ajudar um jogador de futebol a arranjar o melhor carro ao mais baixo preço, fornecendo-lhe apenas a informação de onde o pode adquirir. O espectro é alargado, em termos dos serviços de que dispomos para os nossos clientes e ainda há muito por fazer”.
Para além da amplitude de oferta, parecem também crescer a bom ritmo, os lucros de uma empresa fundada há pouco mais de um ano. “Crescemos cerca de 30% ao mês. Se está a correr bem?! Excelente!”. Sorri. Das cerca de 16 pessoas que trabalham habitualmente no escritório da Almirante Reis, nem todos são ex-polícias. “Temos colaboradores formados em psicologia, direito, e claro, antigos polícias, assumidamente! Porque a nossa filosofia é exactamente essa. A melhor, e única, fonte de conhecimento de técnicas de investigação é feita pelo Estado, não há cursos privados nesta área, logo, estamos de longe mais bem preparados para lidar com o processo de investigação que qualquer outra pessoa que não tenha passado por este caminho”. Quanto aos detectives privados, não poderia ser mais explícito. “Isto não é a brincar, é muito sério, temos muitos clientes, lidamos com quantias avultadas, temos responsabilidades, passamos facturas, pagamos um balúrdio de IVA de três em três meses. E nem quero ser associado a essa malta que aí anda, muitos deles a enganar deliberadamente as pessoas, outros a fazê-lo pela pobre qualidade do seu trabalho. E depois, por outra razão... Nós não fazemos nada ilegal, até porque trabalhamos como se faz na polícia! Repare, não me interessa nada estar a colocar uma escuta, ou uma câmara oculta, se isso depois não é admitido em Tribunal por ter sido obtido de forma ilegal”.
Na sala onde guarda algumas das recordações dos seus tempos passados da Direcção Central de Combate ao Banditismo, que vai lembrando com “nostalgia” em passagens da conversa, algumas cartas de agradecimento pelos serviços prestados, fotografias, memórias que lhe pertencem, afixadas pelas paredes. “Não tenho saudades nenhumas da PJ, estava exausto daquilo, da forma como as coisas funcionavam, da burocracia, do baixo salário e acima de tudo, da muita falta de apreço por parte dos superiores que se foi instalando nos últimos anos. Quando saí disse para mim que nunca mais queria trabalhar para um patrão. Continuo a ter muito trabalho, para além disto sou presidente da Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas, tenho a televisão, estou a escrever um novo livro... Mas gosto do que faço, apesar de estar bastante mais no escritório que na rua por ser bastante conhecido já, a investigação é o que sei fazer, é a minha vida”.

Sabor a pecado. Mário Costa é talvez o detective privado mais conhecido no mercado. Fora dele também. Aparece na televisão, dá a cara, não impõe açaimes na fala, nas palavras, no que diz e no que não deixa por esclarecer. Corresponde porventura ao perfil mais esperado de um detective privado, como as pessoas normalmente os imaginam. Empolgante nos episódios que descreve, conhecedor das relações humanas, especialista em investigar o pecado. “O fruto proibido...”. Num quinto andar no Bairro do Bosque, na Amadora, tudo parece agitar o imaginário em torno das películas de detectives que se viam antigamente. Só se nota a falta da secretária loira de ar lascivo, roçando a lima nas unhas escarlate, num escritório que também não é a preto e branco. No entanto, a gabardina pendurada num dos cantos da sala não deixa o espaço órfão da visão cinematográfica.
Micro-câmaras em maços de tabaco, gravadores de lapela, localizadores GPS, máquinas fotográficas digitais, até ratos para computador equipados com escuta e óculos escuros espelhados para mirar de costas, sem dar nas vistas. Há cerca de um mês foi “visitado” pela PSP, e foram-lhe apreendidos muitos destes itens. “Parte deles já me foram devolvidos, penso que tem a ver com a minha ex-mulher, mas creio que não vai dar em nada, até porque ter um gravador ou uma câmara não é crime. O que costumo fazer, para não infringir a lei é instruir os meus clientes a utilizar este tipo de equipamentos, sou apenas um consultor”.
A vertente passional do seu trabalho, aproximou-o ao longo dos anos do que de melhor e pior ostentam as várias faces da personalidade humana. Começou jovem, no Algarve, na imprensa regional, que lhe criou “o bichinho da cusquice, da investigação”, conta.
Depois, veio para Lisboa ainda adolescente. “Trabalhava na Lisnave durante o dia, investigava para o Correio da Manhã e para outros jornais à noite. Sabiam que me desenrascava bem, que conhecia muita gente, que conseguia o que precisavam. Depois dava ao jornalista para ele escrever”.
Mais tarde fundou uma empresa de fotografias de casamentos. “Chegava a ter três no mesmo dia, ganhei dinheiro, aprendi muito sobre as pessoas, sobre o que elas querem ouvir, como se dão, ou fingem dar-se”. A paixão pela fotografia ficou-lhe, a paciência é que se acabou. “Aquilo acabou por cansar e comecei aos poucos, de início por carolice, a dedicar-me à investigação. Mas trabalho apenas em Família, em lhes dar a verdade sobre as suas desconfianças, fazendo a investigação que a polícia não faz, a das relações entre as pessoas”. Sobre o seu envolvimento com o SIS que chegou a ser tornado público há alguns anos, recusa falar, mas vai deixando algumas pistas, sem destino certo.
Com mais ou menos trabalho, “o negócio do corno”, como lhe chama, pode não ser o mais velho do mundo, mas afigura-se pelo menos, como um dos que por mais tempo irão perdurar. “As pessoas cada vez são mais infiéis, a sociedade ajuda a isso. Ainda por cima, antigamente eram mais os homens, hoje está generalizado. Tenho clientes divorciadas, sabidas, sofridas, que querem saber quem é o namorado novo que até parece perfeito, homens que cá vêm para saber porque razão a esposa anda tão estranha em casa, ou até um novo conceito de alpinistas sociais, rapazes que andam nos ginásios que se vão pôr à porta de urbanizações ricas à espera de ver passar os grandes carrões, tiram-lhes as matrículas e depois vêm cá para saberem tudo sobre aquelas mulheres para entrarem na vida delas e lhes sacarem dinheiro”.
Quanto a preços, é claro. “Normalmente cobro cinco horas, no mínimo, mas há trabalhos que demoram duas, três semanas. A partir de 50 euros à hora começo a trabalhar, mas tudo depende dos clientes, do tipo de serviço, dos meios que terão de estar envolvidos, da quantidade de homens que tenho de chamar para a operação. Ainda assim não faço tudo o que me pedem porque tenho consciência da Lei. Funciono no fio da navalha, mas tento não me cortar”, ironiza.
Por isso, e apesar da generalização das infidelidades que constata no seu dia a dia profissional, Mário Costa assume ser mais procurado por homens, do que por mulheres, a maioria de perfil social médio alto. “É natural que grande parte das pessoas que me procuram pertençam a classes sociais mais elevadas, até porque o dinheiro é o mais poderoso de todos os afrodisíacos e com ele vem muita podridão. Mas nós homens somos muito mais desconfiados e inseguros do que elas, que são mais espertas. Por vezes um homem não funciona com a cabeça, enquanto que as mulheres, na generalidade, conseguem conciliar o coração, a razão e a sexualidade”. O detective tipifica ainda o retrato típico do enganador, do sedutor, “do malandro”. “Os vendedores são os piores sabe?! Não imagina a quantidade de médicas que aqui vêm por causa do delegado de propaganda médica! Normalmente são casados, têm várias amantes, andam bem vestidos... Sabem vender o produto, aparecem no consultório, envolvem-se e passado algum tempo, quando se fartam, desaparecem”.
Ao longo dos anos lidou com inúmeras situações limite, sentiu emoções fortes, partilhou a dor de muitos dos seus clientes. “Este trabalho tem muito de psicologia. Grande parte das pessoas que entram aqui não precisam de um detective porque já sabem toda a verdade, mas por vezes não a querem ver, têm medo de perder os filhos, a casa, o poder de compra. Muitos homens entram a chorar porque dizem que estão a ser traídos, mas esquecem-se que já as traíram não sei quantas vezes. Outros entram cheios de raiva e tenho de os acalmar! Já me apareceram pais que queriam mandar matar os namorados das filhas, ou aquela mulher que quer fazer desaparecer o marido sem deixar rasto para lhe ficar com o seguro! Como vê, tenho muitas vezes de perceber a mente destas pessoas, acalmar-lhes a raiva e fazê-las perceber que não devem ir por aí. Já tratei de casos de muita gente conhecida, da alta sociedade, de jogadores de futebol que, por passarem tanto tempo fora sentem necessidade de controlar o que se passa nas suas casas... Aparece-me aqui de tudo, mas não aceito todos os trabalhos porque é importante perceber em quem devo confiar também”.
Trabalha normalmente em três, “quatro no máximo”, investigações por mês. “Chega para me manter bem economicamente e não arriscar muito”. A alma do negócio, ou o verdadeiro segredo para nunca dar nas vistas ou ser detectado nas vigilâncias? “Manter a distância e andar sempre de costas para o visado pela investigação”, revela. “Ir pela certa! Já tive alguns apertos, mas privilegio a segurança. Como não há formação nem básica, nem média e muito menos superior ou profissional em Portugal, aprende-se fazendo, com os erros e com os sucessos”.



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Com funciona em Espanha

A profissão de detective privado não se encontra em Portugal regulamentada por nenhum regime jurídico. Os detectives regem-se pelas leis penal e civil, como qualquer outro cidadão. Com o tempo acabou por se estabelecer tacitamente uma linha divisória entre a investigação criminal que fica para as várias forças de polícia e a investigação privada, que sobra para os detectives.
Em Espanha, esta divisão de competências é contemplada na Lei. A actividade de investigação privada, regulamentada desde a década de cinquenta, define a fronteira das competências de privados e forças de segurança do Governo. Existem ainda diversas licenciaturas em Técnicas de Investigação regidas por universidades públicas e privadas, e leccionadas por antigos agentes de forças de segurança. Nos últimos anos, em Portugal, algumas instituições de ensino superior portuguesas tentaram inaugurar cursos idênticos, mas o Ministério da Administração Interna nunca autorizou a participação de elementos das várias forças de segurança nos projectos de curso que até hoje, acabaram por não avançar.

Capa Notícias Sábado, Junho de 2008

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