julho 15, 2008

Notícias Sábado: Despidos de Preconceitos


No retrato cru de um Portugal onde os preconceitos ainda não se despem com tanta facilidade assim, o nudismo é muitas vezes associado à sexualidade e à promiscuidade. Apesar dos levantamentos populares na Póvoa do Varzim ou dos problemas na praia da Bela Vista na Costa da Caparica, o naturismo continua a ser vivido por quem procura apenas estar mais perto da Natureza e está mesmo a expandir-se, de norte a sul do país, em praias e parques de campismo onde os “têxteis” estão proibidos de entrar.



Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira



Mar, sol, areia... natureza viva composta por dois corpos desnudos caminhando pela brisa em direcção à rebentação calma de um final de tarde em por do sol. Será esta a imagem mais real que qualquer naturista deseja idilicamente perfilhar, mas nem sempre é esse o cenário real encontrado.
Praia do Meco, talvez o mais conhecido lugar naturista de Portugal. São mais os que estão vestidos, que os que não levam roupa. Vestidos, é uma forma de dizer. Os fios dentais desnudam quase na totalidade, as sungas deixam entender e os toplesses permanecem no meio caminho, entre um jogo de raquetes e o lançamento dos frisbies. Tem de se percorrer quase um quilómetro de areal para se encontrarem alguns nudistas por ali. Há homens, mulheres, novos e velhos, gordos e magros, de tudo. Levam chapéu de sol, usam creme protector, levantam-se e descem ao mar com os filhos, com os amigos, e regressam às toalhas para ler o jornal ou a revista e comer uma sandes de queijo e fiambre embrulhada em folha de papel prata. Ao longo dos anos habituaram-se aos olhares na sua direcção, aos mirones furtivos, disfarçados entre as dunas, às fotografias surripiadas em telemóveis descaracterizados. “Engraçado como existe um preconceito tão grande com a única coisa que todos temos, que é o nosso corpo. Quando se vai para o duche também se vai nu, todos nascemos despidos, os animais não usam roupa... Logo isto não deveria ser uma novidade para ninguém”. Mas parece de facto ser, até mesmo na mais famosa de todas as praias naturistas. “Sim, qualquer dia temos de andar ainda mais lá para o fundo, para estarmos à vontade... É o que se tem mas apesar de tudo, e para quem gosta disto é libertador poder vir para aqui”, explica Jorge Sousa, um operador turístico de Lisboa que descobriu o naturismo aos 18 anos, numa outra praia naturista oficial, em Tavira e que até hoje, nunca mais deixou de sentir o gosto de andar em pêlo. “Em casa ando sempre nu com a minha mulher e quando podemos vimos para o Meco aproveitar a natureza, sentir o vento e o mar com muito maior liberdade... Há lá coisa melhor que isto?”.

No mapa do Portugal a nu, o sul do país apresenta muito mais opções para os naturistas se poderem expressar livremente. Todas as cinco praias naturistas oficiais existentes em Portugal se encontram entre Lisboa e o Algarve. A das Adegas, em Odeceixe, é mesmo a única que tem nadador salvador. Na região há ainda uma pequena pousada naturista, em Silves, e um parque de campismo misto, em Aljezur. Enquanto o Parque da Quinta dos Carriços, tem uma zona para naturistas e outra área para pessoas vestidas, o Monte Barão, em Santiago do Cacém, já no Alentejo, é integralmente dedicado aos nudistas. Alguns quilómetros em direcção à linha costeira e, aproveitando os acessos dificultados pelas escarpas e pela ausência de turistas de fim de semana, ao longo de toda a Costa Alentejana há também inúmeras praias desertas onde, muitas vezes, se encontram nudistas de ocasião.
Para Norte, apenas praias toleradas e a Quinta das Oliveiras, um parque de campismo exclusivamente destinado aos adeptos deste movimento. De comum, todos têm duas coisas, defendem e dependem do conceito de nudismo, e todos os proprietários são estrangeiros.
Oliveira do Hospital, sopé da Serra da Estrela. Porventura pelo clima, ou pela distância da praia mais próxima, seria um dos locais onde não se esperaria encontrar uma colónia nudista. No caminho, perguntando pela localidade de Travanca de Lagos, freguesia onde fica a Quinta das Oliveiras, ninguém a conhece. Se perguntar pelo parque dos nudistas, as coisas mudam de figura, e um sorriso malandro faz-se logo acompanhar de um dedo indicando a direcção.
O portão está fechado, e os muros são altos para evitar os olhares indiscretos de quem anda à caça de uma visão escancarada. O dono é um holandês que se apresenta como Sérgio, a tradução para português do seu verdadeiro nome, Siets Bijker, que deixou a sua Arnhem para vir para Portugal e em Abril de 2002, abrir o primeiro parque de campismo naturista do país. “Sim, apaixonei-me por este sitio, que é perfeito para o que queríamos”. De então para cá, “as coisas têm estado a andar, de principio as pessoas não aceitaram muito bem a ideia, tivemos alguns problemas, mas agora está tudo pacífico”, explica. Na verdade, quase seis anos depois da abertura do parque, o sentimento das pessoas alterou-se em relação aos convidados estrangeiros que vieram para ficar. Depois da polémica inicial que ameaçou até a abertura do parque, António Santos, presidente da junta reconhece hoje ter-se tratado este até de "um bom investimento para a freguesia porque trouxe pessoas para cá", assinala.
Siets construiu quase todo o parque com as suas próprias mãos. O bar, a piscina, os balneários e os arruamentos decorados com videiras. Faz o próprio vinho, produz azeite, aproveita a luz solar para aquecimento de águas. Não é homem de muitas palavras, nem prima pela simpatia fácil. Permanece desconfiado durante a visita ao “seu” parque. Fala na maioria das vezes em holandês, porque quase todos os campistas que ali aparecem provêm do seu país. “Sim, mas há alguns ingleses e começam a aparecer muitos portugueses também, porque me parece que, apesar de serem ainda um povo um pouco conservador, se calhar devido à influência da igreja no vosso país, começam a estar mais abertos para este conceito”. Numa das tendas encontramos um português. Ele, vestido, a ler um livro e a aproveitar o sol de fim de tarde, enquanto a companheira descansa. Não quis dar o nome, nem aceitou fotografias. “Percebam-me que trabalho em Lisboa e não posso aparecer assim”. Prossegue a visita. “Sabe que aqui temos certos cuidados, com o ruído, com o próprio tipo de turismo que as pessoas procuram. Oferecemos uma saída da rotina diária, do stress, por isso nos despimos. Aqui não há doutores, nem engenheiros, não há profissões. Quando se tira a roupa ficamos todos iguais, e perdem-se muitos dos preconceitos que existem na sociedade contemporânea”.

Naturismo é uma forma de viver em harmonia com a Natureza caracterizada pela prática da nudez colectiva, “com o propósito de favorecer a auto-estima, o respeito pelos outros e pelo meio ambiente”. Na definição da Federação Naturista Internacional, a procura do bem estar resultante da partilha do corpo com os elementos naturais alia-se à prática do nudismo enquanto uma das suas vertentes, como explica Rui Martins, presidente da Federação Nacional de Naturismo. “É uma tendência que se está a massificar no nosso país, e um mercado que pode movimentar muito dinheiro. Em Espanha por exemplo há 400 praias onde se pode fazer nudismo, em Portugal há cinco! Em França existem campings a sério, onde nem é preciso sair de lá. Poderemos chegar aí, temos muitos naturistas estrangeiros a quererem vir para cá mas não temos infra-estruturas para eles”.
Presidente da FPN há pouco mais de um ano, Rui Martins faz nudismo desde muito jovem ainda. “Desde os 16 anos, hoje tenho 48! Comecei em Vila Nova de Milfontes, que na altura era diferente, não tem nada a ver com o que é agora... De vez em quando é que aparecia a GNR e tínhamos de fugir dali porque a lei era diferente”, conta com humor.
Hoje já não é proibido fazer nudismo, e desde que isso não implique com o pudor do próximo, é possível andar nu em qualquer lado. “Sim, mas nós não temos esse espírito, não queremos ofender ninguém. Se quem estiver ao meu lado não estiver à vontade, levanto-me e vou para outro sitio”.
Com a criação da FPN em 1977, há 31 anos, os naturistas sempre procuraram o reconhecimento do Naturismo na Lei, como garantia da defesa de um estilo e prática de vida, usualmente confundido com manifestações exibicionistas atentatórias da moral colectiva. Dos pioneiros do Meco, que a transformaram nos anos sessenta na primeira praia naturista portuguesa, alguns praticantes chegaram até a enfrentar a barra do tribunal por atentado à moral pública, até aos dias de hoje, “muito mudou na ideia que as pessoas fazem de nós. No entanto, ainda há alguns meses tivemos problemas na praia da Estela, na Póvoa do Varzim, em que houveram milícias populares contra os nudistas. Depois, as praias naturistas são selvagens, como se nós também o fossemos, não têm apoios de praia, nem nadadores salvadores e isso tem de mudar”.
O porquê, encontra-o na “fácil associação entre estar nu e ter relações sexuais, o que leva a que muitos olhem para tudo isto como um ambiente de promiscuidade, troca de casais e por aí fora. Para lhe dar um exemplo, andamos com um problema na praia da Bela Vista, na Costa da Caparica conotada um pouco com o engate e a homossexualidade. Não temos nada contra isso, obviamente, o problema, é que já temos poucos espaços para andarmos à vontade e estas atitudes acabam por denegrir todos os outros nudistas que só querem ter um pouco de espaço para si e para estarem mais perto da natureza”.
Apesar de não existirem estatísticas oficiais fundamentadas, estima-se que existam em Portugal cerca de dez mil nudistas, de forma regular ou pontual, embora apenas cerca de 1300 estejam associados na Federação. “Temos essa noção pelas pessoas que aparecem nos eventos que promovemos durante o Inverno, nos jantares, nos passeios, na piscina da Penha de França (a FPN tem um protocolo com a Câmara de Lisboa que prevê a utilização da piscina municipal pelos nudistas, uma vez por mês). O progresso também ajuda à evolução mental das pessoas, principalmente dos mais jovens, apesar de na Federação termos pessoas de todas as faixas etárias, de todos os estratos sociais”.

“Bem vindos”. Monte Barão, a poucos quilómetros de Santiago do Cacém. O primeiro sorriso, e as palavras em português com sotaque de Amesterdão, fazem-se acompanhar de uma toalha colorida que flutua com o vento e que deixa perceber o que se irá encontrar para lá do portão. À primeira vista, toda a gente anda nua por ali. “Bem, quase toda a gente”, graceja Jeff, apontando para nós. “Estejam à vontade”, sorri, num convite que se iria multiplicar ao longo do dia.
O lema deste parque naturista é mesmo esse. “Um abraço a todos os que nos visitem, a hospitalidade, o sorriso, a liberdade”, explica Laura, uma holandesa descendente de italianos que se expressa num português quase perfeito. “Sim, a ascendência latina ajuda. Se os meus pais também fazem nudismo? Já cá vieram, mas não!”. Jeff, sorri, até porque desde pequeno que foi habituado a andar nu, uma tradição da sua família. “Eles já cá vieram e adoraram! Poderem fazer aquilo que gostam, ainda por cima no parque do filho, ficaram todos contentes”.
Depois de decidirem abandonar a cidade onde cresceram e se conheceram, procuraram Portugal, pela escassa oferta que existia neste sector, “e que fazia do país, um bom lugar para começar o negócio. Começámos pela Câmara de Santiago que sempre nos recebeu muito bem, assim como os vizinhos que nos dizem que o parque é a alma desta terra! Ao fim de dois anos, encontrámos o terreno e começámos a construir tudo isto, que aos poucos se vai assemelhando com aquilo com que sempre sonhámos porque não nos sentíamos felizes com a vida cinzenta que levávamos lá”.
O monte Barão ainda está a evoluir desde a abertura, há três anos atrás. Nos sete hectares de terreno de azinheiras, sobreiros e pinheiros, cresceram bungalows, algumas tendas e roulotes, uma piscina inaugurada há três semanas, um bar de madeira, balneários e um curral, com porcos, galinhas e cabras. Prepara-se agora o primeiro campo de golfe naturista do país que, estará pronto no próximo ano. “Queremos cá trazer o Tiger Woods”, dizem por graça, enquanto vão edificando outros projectos com o olhar e os gestos à medida que nos apresentam o espaço, “a nossa casa”, dizem orgulhosos.
Por aqui, tudo foi feito por Jeff, Laura e alguns hóspedes que foram ficando, como Gill e Andrew, um casal de ingleses de Sussex, que depois de se reformarem, decidiram vir para Portugal à procura de um lugar para poder viver a reforma de forma... natural. Sentam-se na mesa da esplanada do jardim, ele com uma cerveja na mão, ela apenas sem roupa. “Apaixonámo-nos por isto, estávamos fartos de barulho, carros, confusão... Quando descobrimos este sitio, vendemos a nossa casa e decidimos ficar cá! Ajudamo-los na jardinagem, nas limpezas, há sempre coisas para fazer! É um sonho”. Um ano passou, de então para cá, e não antevêem data de regresso. “Para quê?”, interroga Andrew.
Laura e Jeff estão por perto. “São nossos amigos já, e isto é uma coisa que de facto andarmos despidos nos trás, mais proximidade uns dos outros, porque não há estatutos sociais ou diferenças económicas. Aqui somos todos iguais, comunicamos, sabemos os nomes de toda a gente e vivemos em harmonia. Portugueses que também já temos bastantes e estrangeiros, mesmo durante o Inverno, porque aproveitados a onda de reformados do norte da Europa que procura o sul por causa das temperaturas mais quentes”, explica Laura.
Corre calma a tarde, o tempo parece correr mais devagar, com outra cadência, mais de acordo com a paisagem que nos cerca o horizonte. Ouve-se falar português, perto da piscina. Nuno Frade e Paula Costa, vieram de Lisboa para passar aqui uma semana de férias. Quando trajados, trabalham ambos num escritório mas aproveitam os fins de semana e as férias para se “libertarem” dos “têxteis”, uma denominação comum utilizada por todos os naturistas quando se referem às roupas utilizadas no dia a dia. Fazem nudismo há já alguns anos. Paula pertence também à direcção da FPN. “É muito mais prático, anda-se muito mais à vontade, as malas são muito menos volumosas e sinceramente hoje já não consigo ir à praia com fato de banho, sinto-me desconfortável”, comenta. Nuno, partilha da mesma opinião. “O Naturismo é muito abrangente, pode ou não ter relação com movimentos ecológicos ou ambientalistas, mas cada qual define o seu caminho, de acordo com a sua personalidade. Aqui estamos nus uns com os outros e convivemos de forma natural, nada nos dividindo ou separando da verdadeira natureza humana. Já éramos namorados e depois de experimentar a primeira vez, quando ouvimos um programa na rádio sobre o tema, nunca mais quisemos outra coisa”, sorri, por entre um olhar cúmplice para a namorada.
Com eles está também Alexandre Moleiro, residente em Tavira e vice-presidente da Federação. “Temos de facto bom clima e boas condições naturais para a prática do naturismo, mas faltam é mais infra-estruturas como as que existem lá fora. Conservadorismo? Haverá sempre, acho, mas até isso é uma questão mental... Por exemplo, ninguém se queixa de atentado ao pudor quando está uma sueca na praia em topless....”.

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Factos do nudismo

-Na Grécia antiga era comum a prática de desporto sem nenhuma peça de roupa.
-Era prática usual entre os romanos, banharem-se desnudados em banhos públicos mistos, prática corrente ainda nos países do norte da Europa.
-O naturismo moderno surgiu no início do século XX, na Alemanha. Adolf Koch, um professor de educação física propôs aos seus alunos que os exercícios fossem feitos ao ar livre e sem roupas. Para a história ficou que os seus alunos passaram a ter mais saúde e alegria o que fez com que as famílias aderissem igualmente aos exercícios, nascendo assim o conceito de nudismo, materializado em 1906, com o primeiro campo oficial para a prática do naturismo. Do conceito faz também parte a preocupação com a alimentação saudável, geralmente vegetariana, embora não seguida por todos os nudistas.
- Croácia, França, Holanda, Alemanha e Espanha são os países europeus onde se verifica um maior investimento neste tipo de turismo.
-Cem anos depois, a França é hoje considerada a capital do naturismo na Europa, com mais de 175 campings e resorts, seguindo-se a Alemanha com 155 e a Holanda com 56.
- A Associação Americana de Nudismo Recreativo estima que o sector gera anualmente entre 250 a 330 milhões de euros.
-A Federação Holandesa de Naturismo tem cerca de 40 mil associados e estima-se que metade da população de todo o país já tenha pelo menos uma vez feito nudismo.
-Há relatos dos primeiros nudistas portugueses frequentarem as praias da Costa da Caparica, desde os anos vinte do século passado.


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Primeira intervenção de José Sócrates na Assembleia
A Lei 29/94 de 29 de Agosto, que hoje ainda se encontra em vigor foi a primeira manifestação do reconhecimento público, político e oficial da prática naturista em Portugal. Numa das suas alíneas define-a como “o conjunto das práticas de vida ao ar livre em que é utilizado o nudismo como forma de desenvolvimento da saúde física e mental dos cidadãos, através da sua plena integração na Natureza”.
Há até a curiosidade de ter sido sobre o Naturismo, a primeira posição parlamentar tomada pelo então jovem político... José Sócrates.


Legendas:
FPN – www.fpn.pt
Monte Barão – www.montenaturista.com
Quinta das Oliveiras: www.quinta-das-oliveiras.com


Notícias Sábado, Capa, Julho de 2008

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