abril 22, 2009

Notícias Sábado: Duplos à portuguesa



Nunca se lhes vêm as caras e se passar por eles na rua, não os reconhecerá. São homens e mulheres que não gostam do perigo real, mas que têm de conviver com ele para poder trabalhar. Arriscar a vida para a poder ganhar, procurando nos seus limites a melhor proeza visual possível.


Texto
Pedro Coimbra do Amaral
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


No ruído ensurdecedor de travões a roçar no alcatrão quente, por entre a nuvem de poeira que se forma e o extremo odor a borracha queimada que paira no ar... Os vidros partidos na alta rotação de um carro virado do avesso, encostado de pernas para o ar de encontro a uma árvore que não estava prevista no guião mas que tornou a cena ainda mais bem conseguida. Aplausos da equipa de produção. Expira-se fundo por fim, depois de segundos de silêncio expectante. A porta de chapa amassada abre-se. “Mais uma, já está”.
Último episódio da novela Resistirei. Sérgio Grilo, duplo profissional “desde o berço”, é o condutor do Wolksagen Golf comprado propositadamente para ser capotado. “Já teve o seu momento de televisão”, sorri, enquanto lhe dá umas palmadas no chassis amolgado. Sérgio também. Todos lhe dão os parabéns, até os actores pararam para ver a cena, a mais marcante da novela, em termos visuais. Apesar disso, e depois da edição, ninguém o irá reconhecer. “Apesar de também ser actor e fazer publicidade, aqui estou noutro papel. Neste caso, o meu trabalho é apenas proporcionar ao realizador aquilo que ele me pediu, tornar a cena o mais espectacular possível, com o menor risco para mim”.

Atílio Silva é o pioneiro da figuração especializada em Portugal. Sérgio é... o seu filho. “Ele vai bem, vai sim senhor...”, comenta com um sorriso feito de orgulho, o maior duplo português de todos os tempos.
Antigo fuzileiro, ferido em combate por terras africanas, aos dezanove anos tornou-se intérprete e condutor de carros de luxo na Hertz. Convidaram-no para chefiar uma frota na Austrália. Foi e por lá ficou durante quinze anos. “Alugávamos uns veículos para filmes americanos que estavam a fazer lá perto. Quando fui às filmagens o coordenador pôs-me a experimentar e achou que fiquei perto. Depois, fiz o curso e nunca mais parei”. Participou então em filmes de sucesso, séries premiadas, como ‘Sangue e Honra’, ou os famosos ‘Mad Max I e II’ pela New Generation of Stunts, que pertencia a Mel Gibson. “Eram outros tempos, havia segurança mas não existiam os meios que há agora. Sempre fui um bocado aventureiro, fiei-me na sorte vezes de mais, isso custou-me algumas coisas, mas ganhei outras”, conta.
Foi por causa de uma dessas aventuras que acabou por regressar a Portugal. “Bati numa rocha e parti a perna em nove sítios! Vim então para cá e abri a Charlot Filmes. Porquê este nome? Porque ele foi o primeiro duplo de si próprio e sempre fui um admirador seu”.
Aos cinquenta e oito anos, os mais de mil atropelamentos e quedas de penhascos, foram-lhe preenchendo uma ficha clínica tão extensa no papel, como nas cicatrizes que lhe ficaram marcadas pelo corpo. Um pé infectado devido a má irrigação, dois AVC , uma operação à aorta, e outras tantas maleitas cujos resquícios ainda hoje lhe apoquentam a rotina diária, agora mais serena. “tem de ser não é?!”. Com mais de trinta e sete anos de carreira, reformou-se há cerca de dois, depois de coordenar ‘O Filme da Treta’ mas continua ligado à empresa que fundou há 18 anos. “Adorava esta vida sabe?”, explica com saudade na voz, o decano dos duplos em Portugal.
Sérgio sorri. Seguiu-lhe as passadas e agora lidera o negócio da família. “Hoje já conseguimos viver disto sim, apesar não sermos uma equipa muito grande, cerca de seis homens e duas mulheres, estas em part-time”. O pai interrompe. “Ele é mais organizado que eu, e lida bem com os realizadores, é bom coordenador”. Quanto a Atílio, dedica-se à gestão da e nos tempos livres vai dando formação aos jovens que querem dar os ossos ao conhecimento do ofício.
Mulher de armas. A “dobragem” de actores e actrizes é a parte mais tranquila do trabalho de um figurante especializado. “Depende do papel”, interrompe. Em Call Girl, Ana Margarette “fez” de Soraia Chaves, não nas cenas mais picantes, mas nas sequências de maior arrojo e audácia. Agora com 24 anos, desde os dez que se tornou perita em lançar-se de escadas, atirar-se de penhascos, ou simplesmente “dar uns murros quando é preciso”, humoriza a professora de informática e barmaid em part-time. “Conheço o Atílio e o Sérgio da minha rua. Precisavam de uma miúda assim mexida e sem grandes medos e fui ficando” . “Ela é terrível”, graceja Atílio. “Medo? Só durante uns segundos, antes de ouvir a palavra ´Acção`”, conta.
Segurança. Em “A Sombra dos Abutres”, começou outro nome conhecido no mundo dos duplos, João Gaspar. Na realidade, só existem em Portugal duas empresas profissionais (vivem exclusivamente da actividade) de figuração especializada. A Charlot Filmes e a B.I., JG Duplos, empresa de João Gaspar que trabalha com Teresa Leal, sua mulher e “braço direito” que também vai dando uma “perninha” na profissão que o marido escolheu há mais de quinze anos. “Fiz o curso de duplos com ele em Seattle, trabalhei na área da produção. Há alguns anos decidi entrar nisto com ele, e trato mais dos detalhes relacionados com a produção, apesar de também fazer algumas cenas” conta. João Gaspar é há anos, um dos duplos mais requisitados do meio audiovisual português. Tem até um curso pela renomada United Stuntemen’s Association, em 2004. “Decidi fazer essa formação por uma questão de actualização de conhecimentos, de troca de experiências que é sempre importante nesta área”.
“Calculamos o abismo, procuramos o limite, mas sempre longe ao perigo”. Apaixonado pela escalada, começou como assistente de realização passo primeiro que o empurraria, há década e meia para o mundo do audiovisual. “Essa experiência é importante porque aqui procuramos proporcionar veracidade às situações do ponto de vista da câmara. Posso dar-lhe um murro verdadeiro que pode não parecer real se filmado... A arte aqui é fazer o contrário, ou seja, não o magoar, mas fazer parecer que foi realmente um impacto violento”, explica.
Atropelamentos, explosões, homens em chamas. Já fez de tudo, ou...quase tudo. “Todas essas coisas se podem fazer, mas requerem um estudo prévio do que se quer, do que se pode ter, dos meios existentes, do orçamento disponível... Uma coisa é que não dispenso nunca, a segurança, a minha e a das pessoas que trabalham comigo, porque têm de confiar em mim para se poderem entregar completamente à cena, a sorte não é para aqui chamada”

A palavra “segurança” surge inúmeras vezes no seu discurso. Orgulha-se das poucas lesões sofridas ao longo da carreira, e não gosta mesmo nada da habitual metáfora da “carne para canhão” que, invariavelmente acaba por aparecer, sempre que os duplos são assunto. “Prefiro recordar as cenas mais espectaculares, ao contrário das cicatrizes e dos ossos partidos, porque andamos aqui não para nos aleijar! Repare, se tiver de ser operado tenho de estar não sei quanto tempo sem ganhar dinheiro e não me posso dar a esse luxo”.
Gravação de “Casos da Vida”, série da TVI. São quase quatro horas da manhã e a equipa de produção continua a gravar os diversos takes de uma cena para a qual foi contratada a empresa de João Gaspar. O guião explica um atropelamento de uma criança de seis anos que caminha à beira da estrada acompanhada da sua mãe. A cara que aparecerá na filmagem será a da actriz Sofia Grilo, cuja filha, será atropelada por um Ricardo Carriço descontrolado ao volante. Na realidade, as coisas são bem diferentes. Daniela Macário, devidamente caracterizada, será a mãe que se atirará de uma ribanceira atrás da filha, que é na realidade...um crash test dummie. Quanto a Ricardo Carriço, nem sequer pega no carro, sendo substituído na cena por um duplo perito em condução defensiva.
Casada com Pedro Borges, um outro figurante especializado da Gen 21, uma empresa de duplos do Algarve que costuma trabalhar com João Gaspar, sempre gostou de desporto desde pequena. Da natação às artes marciais, passando pelo curso que está a concluir, “quem corre por gosto não cansa não é?!”, Daniela ainda tem tempo para se dedicar a “estas aventuras”. “Em casa?! Somos um casal normal, não andamos lá a fazer acrobacias. Na universidade é que me estão sempre a perguntar como é, se não me magoo, há uma grande curiosidade por parte das pessoas, ainda por cima sendo mulher”, lança com um sorriso. “Gosto desta vida, da aventura, não gosto de aparecer, nem quero ser reconhecida na rua, não tenho feitio para isso”, vai dizendo enquanto a preparam para se assemelhar com a actriz que vai “dobrar”.
João não vai entrar na cena. Reúne a equipa, dá as últimas instruções a cada um, mantém contacto permanente com o realizador “Trabalho com uma série de pessoas, peritos em acrobacias motorizadas e outro tipo de modalidades especializadas, consoante o serviço pedido e as especificidades da cena que teremos de fazer”, explica. “O nosso mercado não permite que haja duplos especializados, como nos Estados Unidos por exemplo, só em quedas ou em cenas de luta por isso temos de ir fazendo um pouco de tudo e recorrer ao know how que existe por aí. Gosto deste trabalho de coordenação de duplos. Quando corre tudo bem regressamos a casa felizes, bebemos um copo se não estivermos demasiadamente cansados ou moídos. É uma boa vida”.
Mercado a crescer, ou nem por isso... Depois de esgotado o filão das produções estrangeiras que escolhiam Portugal como cenário nos anos 90, o aparecimento em força da produção nacional nos últimos anos faria prever um crescimento do número e da qualidade deste tipo de trabalhos. “Com os filmes franceses que vinham cá rodar nos anos 90 ganhava-se bem, mas deixaram de vir, e hoje fazemos muita produção nacional, publicidade, filmes, novelas. No entanto é raro fazerem-se grandes cenas, porque são normalmente muito caras ainda para a nossa realidade”, explica Sérgio Grilo. João Gaspar tem a mesma opinião. “Pode parecer que há mais produção mas em Portugal as coisas ainda custam um pouco a andar. Na maioria dos casos há pouco dinheiro para investir em sequências de acção, falta uma série ou mais cinema que siga por este caminho, porque afinal, se reparar, as cenas que fazemos acabam sempre por ser as que servem de veículo promocional, por serem mais espectaculares, para chamarem espectadores”.
Apesar desta realidade, novos grupos de duplos vão aparecendo e conquistando cada vez mais trabalho apesar de ainda não se poderem dedicar exclusivamente à actividade, enquanto profissão de tempo inteiro. A Stunts & Co. Duplos e Figurantes Especializados, uma ´unidade` de cerca de vinte elementos constituída por antigos militares que procuram tornar a ficção muito mais próxima da realidade, nasceu durante a novela ‘Desencontros’, em 1993. Há um ano criaram a Associação de Duplos e Figurantes Especializados. Manuseio de armas, habilidades de artes marciais, passos de hip-hop ou acrobacias de ginástica e formação de actores para sequências de acção pura e dura. Nicolau Breyner escolheu-os para formarem Pedro Lima e Sofia Aparício, actores do seu primeiro filme enquanto realizador, ‘Contrato’, a estrear ainda este ano. “Colaboramos fisicamente ou apenas em termos coreográficos em cenas policiais, militares ou de combate corpo a corpo. Mas também damos formação a actores e figurantes para qualquer tipo de cena de acção, algo em que estamos agora a apostar com muita força. Depois é o trivial, conduzimos veículos ligeiros, motos e pesados com arrojo e audácia. Alugamos adereços do nosso guarda-roupa para cenas de polícia ou de forças especiais e também prestamos consultoria às produtoras, em armamento, tácticas de combate e outras coisas que nos peçam”, releva um dos responsáveis pela equipa”, explica Nuno Arrojado, um dos fundadores da Associação.
Vida...dupla. Para lá das luzes da luzes da ribalta, é muito provável que já se tenha deparado com um duplo português num restaurante, num supermercado ou num qualquer departamento do Metropolitano de Lisboa. É o caso de Nuno Arrojado. E se existem casos em que o nome próprio de alguém se ajusta à personalidade ou actividade da pessoa, este é um deles. “Pois... Dizem-mo várias vezes!”, graceja. No entanto, o humor esbate-se quando se fala na fama e na fortuna, esperanças vãs que não podem ainda acarretar, pelo menos para já. “À parte da empresa do Atílio Silva que é o nosso mestre e referência nacional e que devido à sua carreira e grande experiência consegue viver desta actividade, e do João (Gaspar) que também o faz, é ainda impensável viver só disto porque o mercado não comporta muita gente nem grandes despesas com pessoas e feitos especiais, isto apesar de termos essa vontade e de estarmos agora a apostar em especialistas em artes marciais para futuras produções”, assinala.
A opinião é perfilhada por outro dos fundadores da Stunts, o topógrafo Filipe Carvalho. “Como em tudo o resto neste país, falta dinheiro!. Não podemos trabalhar ao preço dos figurantes dos programas da manhã. Se nos pedem coisas mais complicadas, isso custa dinheiro e os agentes do meio não têm por vezes a consciência do que é preciso para se fazer aquilo que nos pedem, com os materiais mais adequados, e em segurança. Se tenho o sonho de viver apenas disto? Isso seria mesmo perfeito, mas até lá vamos fazendo o que podemos”, assinala.
Nuno sorri. “Se gostaria que o meu filho fosse um duplo? Ainda só tem dois anos! Posso-lhe dizer que preferia que ele andasse aqui com segurança do que em outras coisas mais arriscadas, como andar na estrada por exemplo! Mas já o trago de vez em quando para os treinos e ele gosta de andar para aí aos saltos, será um sinal?”.

Efeitos especiais. Ricardo Reynaud é um dos técnicos de efeitos especiais que mais aparece na ficha técnica de muitas produções portuguesas. “Costumo testar os materiais e os efeitos num armazém. Depois é por em prática seguindo os resultados, aprendendo com os erros. Se uma bolsa de sangue não arrebenta, ou se por exemplo uma explosão não deflagra, perdemos tempo e dinheiro e isso é coisa que nesta área não existe assim com tanta abundância”, humoriza.
Enquanto fala, mostra as várias caixas de ferramentas forradas de adereços que encheriam de curiosidade os mais fanáticos pelas aventuras de bastidores do cinema de acção. “Compro os materiais a um fornecedor inglês credenciado para este tipo de finalidade e como não existem no nosso país muitos técnicos deste ramo, acabo por ter bastante trabalho”. Alguns dos seus trabalhos mais visíveis aconteceram em Vingança, Deixa-me Amar ou no Max e, na sua perspectiva, a tendência é de melhoria. “Começam cada vez mais a surgir produções com cada vez maiores ideias. Ainda agora num filme português, tive de fazer um dragão deitar fogo pela boca, e incendiar o braço de um dos actores! E tudo com segurança para ninguém se magoar”, recorda.
Começa muitas vezes aí o trabalho de proximidade com os duplos, alguns com quem já convive profissionalmente há “muitos” anos. “Normalmente o corpo em chamas, o tiro de pólvora seca, a explosão, passa-se ou com eles a darem o corpo ao manifesto! Por isso é que temos de trabalhar quase sempre em conjunto, passar horas a planear para que ninguém se magoe e possamos ir todos para casa ao final do dia felizes da vida”.



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Factos

. A primeira cena de um duplo já tem mais de um século de existência e aconteceu no primeiro western da história. Foi uma queda de cavalo no filme O Grande Assalto ao Comboio, de 1903.
. Rémy Julienne, destacado “louco” pelo rallycross e campeão francês de motocross é ainda hoje considerado pelos seus pares como o maior duplo de cenas com automóveis da história do cinema. Participou em mais de 100 filmes, incluindo seis ‘James Bond’. Os dois filhos Dominic e Michel seguiram-lhe as pisadas e tornaram-se também eles figurantes especializados.
. No mercado hollywoodesco, as remunerações chegam aos milhares de euros por produção e existem até cerimónias anuais criadas para distinguir as melhores acrobacias, as sequências de acção mais realistas, os maiores saltos e os profissionais mais completos do ramo. Fala-se mesmo há alguns anos numa nova categoria inserida na cerimónia dos Óscares que os distinga.
. Em Portugal, e dependendo do tipo de cena efectuada, um duplo ganha em média, cerca de 500 euros por dia de trabalho.

Notícias Sábado, Janeiro de 2009

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