dezembro 10, 2008

Notícias Magazine: Pedro Ayres Magalhães

Música para os sentidos

Três milhões de discos vendidos e quase mil espectáculos depois, uma nova vida, no dobrar de duas décadas de existência, “feitas a pensar em boa música apenas”. Depois da saída de Teresa Salgueiro, os Madredeus regressam, agora acompanhados pela Banda Cósmica, em “Metafonia”, um disco duplo composto de inéditos e temas antigos revisitados em diferentes perspectivas. As duas vozes principais, os sete instrumentistas, a harpa, a guitarra eléctrica, o violino, as percussões traçam novas linhas de carácter, num sonho idealizado para viajar pelo mundo.
A NM foi conhecer o criador dos Madredeus, os segredos da composição das melodias, da libertação das palavras, o roteiro de um destino que se sente no detalhe, e se procura, “passo a passo”.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira



Sente-se sempre algo de diferente, quando se ouve um álbum dos Madredeus... Como o explica?

Ainda bem, o objectivo é esse! Começa logo por gravarmos todos juntos, e a força da música tem a ver também com a magia de termos um grupo de pessoas a tocar ao mesmo tempo, ao contrário da maioria dos discos que hoje em dia são gravados em separado. Não tenho nada contra isso, mas prefiro tocar, ensaiar, trabalhar a interpretação e depois fazer estes takes de dezoito minutos, que são uma maravilha, com uma energia extraordinária.

Sempre foi esse, um dos seus segredos?
Mesmo para quem não perceba nada de música, como por exemplo uma criança quando vê uma banda a tocar, percebe perfeitamente se aquele grupo gosta ou não realmente daquilo que está a fazer. O cuidado com que as coisas são feitas, o gosto, o trabalho que deu a preparar, a chegar ali, àquele momento, tudo isso se sente.

Como é que tudo isto começa a nascer na sua cabeça, tem noção de um determinado momento, ou é um processo que se vai desenvolvendo?
A ideia base é a de inventar uma nova concepção de música cantada em português para grandes espectáculos, inspirada na tradição das suas próprias composições e nos arranjos da música popular da Europa, da África Ocidental, do Brasil… uma espécie de orquestra latina portuguesa. Tudo isto, quando se começa por fazer ao mesmo tempo uma obra, e uma banda...


Duplica o trabalho...

Multiplica! E tens de gostar deste trabalho de uma tal maneira, que nunca fiques sem escolhas! Começa-se pelos arranjos de guitarra, da harpa, e com uma voz que trabalhava connosco como se fosse um modelo num atelier, para aprendermos a pintar sobre uma determinada base. A partir daí avaliamos os arranjos, com esse esboço, que tem de ser cantado para ter uma forma mais próxima do resultado final e vai-se trabalhando, modificando, harmonizando até ao dia em que se diz, ´pronto, é isto`.


E como aparecem estas novas vozes?

Quando soubemos que a Teresa ia sair dos Madredeus, começámos a receber cartas de pessoas a dizerem que eram cantoras e que gostavam muito de trabalhar connosco, o que me surpreendeu!

Com o impacto que tiveram na música feita em Portugal, não era natural que isso acontecesse?
Eu não fazia ideia! Mas o que é facto é que nos poupou ao trabalho de ter de por um anúncio e estar a ouvir não sei quantas centenas de vozes. Cingimo-nos só a essas que se dirigiram a nós e algumas delas acabaram por ficar. Não queríamos cópias da Teresa, alguém que seguisse esse modelo. Tivemos de lhes ensinar as canções como elas são, harmonizar as coisas... Não foi complicado, foi complexo! A voz é uma melodia com uma orquestra dentro da boca, que não é igual se estiver isolada. Só muitas vezes depois de ouvir aquelas vozes, é que tenho a percepção de saber o que elas poderiam dizer cantando aquelas músicas.


É assim que se começa a criar música?

Normalmente começo por aí, mas também pode ser ao contrário, também se pode começar pela letra e depois procura-se uma voz para a interpretar de acordo com a harmonia que se procura.

Novas vozes, instrumentalizações diferentes com guitarra eléctrica, bateria, no fundo um novo som, para uma banda praticamente nova. O resultado sente-se mais quente, o que lhe parece?
A ideia é mesmo essa e já vem de há algum tempo. Costumávamos fazer muitos concertos para duas, três mil pessoas, e funcionava bastante bem. Então queríamos tocar as nossas músicas com uma orquestra maior, com baixo, bateria e guitarra para poder optimizar o som. A banda Cósmica funciona assim como um amplificador dos Madredeus.


Agora, a fase em que tudo ganha vida, perante o público... Não teme que antes de se entranharem, as diferenças musicais apresentadas se estranhem?

Não, sempre mudámos, fomos evoluindo e as pessoas sabem disso. A nossa música é para se ouvir no palco, só pode ganhar com isso, e foi sempre esse um objectivo dos Madredeus desde o começo. É muito diferente tocar numa sala na terça-feira, e tocar no mesmo espaço na sexta, e isso fascina-me!


Chegou a pensar em acabar e começar tudo, com uma nova banda?

Sim, claro que pensei nisso! Desta vez, mantivemos o nome do grupo e acrescentamos Banda Cósmica, que é uma banda nova que no fundo incorpora as músicas que a maioria das pessoas não conhece. Fiz 940 concertos no mundo inteiro, temos 118 músicas gravadas com a Teresa, mas a maioria das pessoas só conhece três, apesar de serem todas aplaudidas quando tocamos ao vivo. Não ia prescindir disso!

Mas quando aconteceu para si, o momento chave, dessa decisão?
No dia em que a Teresa disse que ia embora, fui para casa a pensar. `Bem, agora ou te reformas e vais para casa viver dos louros desta bem sucedida aventura... ou não!`. Ainda demorei algum tempo a decidir-me, mas gosto muito de tocar sabes, de fazer, de sentir a forma anónima como milhares de pessoas estiveram connosco ao longo destes anos, mesmo nesta fase em que ninguém sabia o que ia acontecer, esse movimento de retribuição cósmica puxou-me a querer continuar.

E não ficaram ressentimentos?
Claro que não! Mas houve alguma vez alguma dúvida disso?! Há vinte anos vi a Teresa a cantar, gostei da voz dela e convidei-a, disse-lhe que ia fazer música para ela. Já na altura ela tinha projectos e coisas que gostaria de fazer. Andámos vinte anos juntos, passámos grandes momentos de uma carreira mundial quase ímpar, demos o melhor que tínhamos! E depois chegou o momento de ir fazer outras coisas. Apoiei-a nisso, participei no seu disco, tenho muita admiração por ela, tem uma voz invulgar, uma grande experiência e desejo-lhe toda a sorte!

A viagem, é um conceito inerente aos Madredeus desde o início. Mantém-se essa matriz?
Essa é uma ideia que está subjacente no momento da criação dos Madredeus, há vinte anos atrás. Queria um projecto que fosse virado para andar lá por fora a mostrar Portugal. Neste novo trabalho, vamos concentrar-nos na Península Ibérica para já, depois, logo se verá…

Foi por isso que teve esta ideia, de fazer algo completamente diferente, em 1986?
Lembro-me que fazia espectáculos com os Heróis do Mar, e não havia anfiteatros em condições, os espectáculos eram feitos nas feiras, no meio das barracas das bifanas, e de uma barulheira inacreditável... Foi por isso que criei os Madredeus, engraçado não é ?! Tão simples… Queria fazer um grupo que não tocasse em arraiais, mas sim em jardins, em castelos e anfiteatros. Mas durante cinco anos só fizemos dez espectáculos por ano, demorou tempo, mas fez-se um projecto de vanguarda, que privilegia a solenidade do momento de ouvir música.

Vejo-o olhar para o disco... Nota-se que está orgulhoso, espera que o público o olhe assim também?
Tenho esperança que seja um grande êxito, na minha época, antes de eu morrer. Temos a maior expectativa, trabalhamos que nem cães para que sejamos apreciados. Não penso muito no número de vendas, mas mais na quantidade de espectáculos que temos marcados...

Como retrataria o país em termos musicais?
Não me cabe a mim dizer o que mudou, não me apanhas a dizer que fomos muito importantes! Muita coisa mudou de há vinte anos para cá, até em termos culturais, há mais espectáculos, mais oferta de facto. Mas continua a não haver uma indústria musical no nosso país, o que começa até pela falta de educação musical nas escolas, e que se nota também no público que vai aos espectáculos, em que as pessoas gostam do que ouvem mas muitas vezes não percebem porquê, uma vez que não foram educadas para a música nos seus aspectos mais lúdicos.

Há algum segredo para todo o sucesso que foi atingido nestes vinte anos?
Durante muitos anos andámos pelo mundo todo, a falar português em sítios onde nunca ninguém tinha ouvido falar de nós. Isso não aconteceu por termos caído nas graças de alguém, deu muito trabalho, todos os dias a ter de fazer mais um bocadinho...

E nunca lhe passou pela cabeça ficar num desses lugares por onde foi passando?
Eu gosto muito do meu país, de Lisboa.... Mas pensei nisso sim, quando estive em Belém do Pará, que fica na Amazónia, uma cidade índia. Achei aquilo o máximo, não me importava de me reformar e ficar por lá, abrir a tasca do Guaraná por exemplo... (gargalhada) Mas ainda não é para já!

Se não fosse a música, por onde iria o Pedro? Não o estou a ver de fato e gravata a trabalhar numa seguradora no Saldanha...
(Sorri) Não sei... Sempre pensei na música desde miúdo, fui muito influenciado pelo movimento hippie, por Woodstock, pelo Jimmy Hendrix, pela Jannis Joplin, depois pelo punk... Cresci com esses movimentos de revolução, quando se acreditou que a música podia mudar o mundo, eu sou filho dessas ideias! Este é aliás um álbum punk, à sua maneira!


Biografia
A carreira de Pedro Ayres Magalhães é quase impossível de resumir, tão abrangente se foi tornando com o passar dos anos. Começou na década de 70, por ser baixista, primeiro nos Faísca, um dos primeiros grupos de punk rock portugueses e depois no Corpo Diplomático. Alguns anos mais tarde, forma os Heróis do Mar, referência ainda hoje actual da música portuguesa dos anos 80.
No ano de adesão de Portugal à CEE, em 1986, por coincidência ou não, decide então inaugurar um novo projecto, mais virado para o exterior do país, “por levar Portugal a países que nem sabiam que existíamos”. Surgem assim os Madredeus, ainda com Rodrigo Leão, então vindo dos Sétima Legião e que alguns anos mais tarde acabaria também ele por sair, e com uma então desconhecida voz que marcaria a música portuguesa nas duas décadas seguintes, Teresa Salgueiro.
Alguns anos antes, em 1982, Pedro Ayres Magalhães tinha estado ainda na origem da Fundação Atlântica, onde foi director musical, juntamente com Miguel Esteves Cardoso, uma editora que produziu, entre outros, Anamar e os Delfins. Mais tarde foi de novo preponderante numa outra manobra marcante da canção tocada em português, estando na génese dos Resistência.
Multifacetado no campo das artes, extravasou por algumas vezes o campo musical e chegou a participar como actor em filmes como Longe (1988), De uma Vez por Todas (1986), A Janela Não é a Paisagem (1997), A Janela (2001) e ainda em Lisbon Story realizado por Wim Wenders.

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