dezembro 10, 2008

Notícias Magazine: André Sardet

“Este trabalho é a maior aventura da minha carreira. Precisava disto!”

Do imaginário que agora deixa soltar-se em “Mundo de Cartão”, André Sardet regressa à música com tons diferentes, feitos de memórias de criança, coloridos, alegres, soltos. Da sua infância recorda as brincadeiras de rua na Coimbra dos anos 80, os carros de rolamentos, a bola para a qual não tinha muito jeito, o que lhe valeu a alcunha de “Câmara lenta”, e a música, “sempre”, desde que lembra de começar a sonhar.
Dedica o seu mais recente trabalho “a todos os que gostaram de ser criança”, mas também aos que já se esqueceram, para que voltem a ser emotivas as “viagens ao sabor da imaginação dos nossos filhos”. Sente-se “feliz”, mas não esquece os tempos em que não o foi, conta como quase desistiu de tudo, o passado em que ninguém acreditava no presente que hoje vive, e anseia pelo destino, com um sorriso no rosto.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


Neste “Mundo de Cartão” em que agora se lança, reaparece porventura diferente do André Sardet dos últimos anos...
Sim, tudo começou pela música que fecha o álbum, uma versão de “Anjo da Guarda”, do António Variações, com que costumava adormecer a minha filha. Depois fiz o “Mundo de Cartão”, que dá nome ao álbum, que me deu muito gozo cantar com ela, porque eu começava as frases e ela terminava-as! Achei graça a essa interacção e então comecei a compor mais coisas, dentro deste imaginário dela, dos bonecos, dos brinquedos...


E como surgem as personagens em tudo isto?

Este universo foi crescendo e ganhando uma identidade que não é mais do que o espelho de uma fase muito feliz da minha vida. Quanto às personagens, foram ganhando vida através das músicas... O Palhaço Gargalhadas que era um boneco que lá tinha em casa, a Joana, uma boneca preta que mora na montra de uma loja, a Maria bailarina que a escolhe por ser diferente... e diz: ´Quero aquela boneca de cabelo em pé, que tem olhos de gata e cor de café...`. Quis mostrar isso, como pode ser simples e tão belo, o mundo através do olhar de uma criança.

Foi complicado imaginar, criar e dar vida a todo este contexto partindo de uma base musical?
Tudo isto deu dez vezes mais trabalho que o normal! Sempre fui muito fotográfico a compor, para cada frase associa-se uma imagem e neste trabalho era difícil transmitir tudo o que ia na minha cabeça só com música. Por isso há um universo de comunicação muito maior, das histórias aos personagens que ganharam vida em animação nos telediscos, as histórias, o site criado especificamente para este trabalho...


Porque decide inverter o rumo da sua carreira no seu ponto mais alto?

Este trabalho não é de facto para comparar com tudo o que tenho feito até agora, assumo que é de facto uma fuga para a frente porque tinha em cima de mim a nuvem de um grande êxito, a pressão... Fiz isto sem ligar ao que já tinha feito, sem pensar muito, apenas para compor de ma forma mais livre, mais irresponsável, que é uma coisa que vamos esquecendo ao longo da vida. Acho que com o tempo vamos perdendo o sentido de humor...

Parece quase como que uma pequena fuga artística... é?
Sem dúvida, quis encetar de facto essa fuga, com maior liberdade, mais cor...
Precisava disto artisticamente! Os anteriores trabalhos reflectem um lado mais melancólico, mais nostálgico, mas não sou só isso, tenho sentido de humor, sou brincalhão e quis mostrar este lado de mim agora.

E escolheu o Portugal dos Pequenitos para dar a sua primeira entrevista...
Quero dar a conhecer às pessoas que estou numa fase diferente, e por isso gosto de mostrar um espaço que nos mora na memória colectiva, como os acordes do “Verão Azul”, ou do “Dartacão” que também incluí no disco. Por isso digo que não o fiz para as crianças apenas, mas para todos os que gostaram de o ser, e também para quem já se esqueceu do que é verdadeiramente ser criança!


Como lhe foi surgindo a ideia de elaborar um trabalho deste género?

Foi sendo escrita em vários locais, ao longo dos anos que acompanham as diferentes fases do crescimento da minha filha. Foi ela, sem dúvida, a grande fonte de inspiração de tudo isto que considero o maior desafio musical da minha carreira.

E canta muito para ela ainda?
Canto para ela desde a barriga da mãe!


Mudou-o, o facto de ser pai?

Acho que o filho desperta um lado de imaginação, criatividade... Temos de estar sempre a criar brincadeiras novas porque eles são muito exigentes e cansam-se das novidades em uma hora! Foi fantástico, não quis deixar de escrever sobre isso, sou hoje muito mais feliz e completo!

Nota-se muito de si, nas suas canções, aceita este facto?
Sempre fui auto-biográfico a compor, há fases da minha vida reflectidas em todos os meus trabalhos, mas também histórias que me contam, coisas que observo noutras pessoas... Muitas das minhas musicas são segredos bem guardados!

Como funciona quando está a compor?
Não gosto de fazer as coisas à pressão... Ando sempre com o gravador, porque quando componho não memorizo o que faço, e por vezes sai uma musica do principio ao fim. O “Adivinha Quanto Gosto de Ti” foi assim, composto num hotel em Évora, antes da primeira eco-tour que fiz.


É um dos artistas em Portugal que mais referências faz ao meio ambiente. Tem de facto essa preocupação pessoal?

Tento estar atento àquilo que se passa à minha volta e não ficaria satisfeito se não agisse. Se estou numa fase de carreira em que tenho atenção das pessoas aproveito isso para fazer alguma coisa, e não o faço para cavalgar a onda. Este álbum tem pela primeira vez em Portugal uma embalagem produzida através de árvores com abate controlado e tintas e vernizes feitos com base aquosa, sem solvente numa embalagem da Sony, sem plástico.

Foi Feitiço?

Parece-me uma pessoa bastante exigente, é assim?
Comigo sou exigente, perfeccionista, tento sempre estar atento a tudo, dar o máximo. Confesso que posso ser um bocadinho controlador e chato nesse aspecto porque não acho possível nem lógico que depois de uma entrega tão grande na composição de um álbum não se tenha o mesmo empenho na produção, na gravação, na promoção. Deve-se tudo a uma questão de coerência.

Como se explica o grande sucesso do álbum “Acústico” que acaba por marcar a sua carreira e, quase que por feitiço, ironicamente lhe altera o destino?
Acreditava na altura que tinha um repertório válido mas que não tinha tido grande sucesso e por isso, custava-me fazer mais originais sem ter tido tempo de expor aqueles trabalhos, fruto de uma carreira de dez anos. Acreditei que devia dar uma segunda oportunidade ao meu trabalho..

Acabou por ser esse, um espectáculo para recordar...
Os Coliseus também, sem dúvida, em Fevereiro de 2007. Foi muito intenso tocar naquelas salas, esgotaram duas vezes sem colar um único cartaz, foi mágico. Mas já vieram depois. A gravação do Acústico é onde tudo começa de facto, e aí tenho de te dizer que não foi só a minha entrega total, foi a de toda a equipa que tinha aquela única oportunidade para gravarmos...

E essa noite é decisiva na sua vida... É verdade que já se tinha decidido a abandonar a música?
Foram anos complicados, senti-me muito sozinho, achava que era o único a acreditar naquilo que fazia para além daquela meia dúzia de pessoas que me estava mais próxima.
Não havia já segunda oportunidade, já tinha decidido comigo mesmo que se não acontecesse nada iria desistir, arrumar as botas! Marquei então esse concerto em Coimbra, paguei-o do meu bolso, não houve dobragens, não fui para estúdio corrigir coisas, foi o que foi, e ficou bem.

E se não tivesse corrido bem, chegou a pensar no que faria?
Provavelmente continuaria com a minha empresa de espectáculos que me deu a independência financeira, ao mesmo tempo que tinha uma carreira artística que só me dava prejuízo.


Essa noite, calculo, ficar-lhe-á na memória então...

A partir daí as coisas mudaram na minha vida!

Ainda se lembra da primeira sensação que o invade quando abandona o palco, numa noite que poderia definir toda a sua carreira, e afastá-lo do seu sonho?
Quando saí do palco, estava ansioso por ouvir a gravação, o que fiz no dia seguinte. Era aquilo que queria, o objectivo estava cumprido mas ainda hesitei muito sabe? Gravei-o em 2004 mas só o lancei dois anos depois, porque tinha dentro de mim que era de facto a ultima oportunidade e pensei, pensei... Deixei amadurecer a ideia e só quando estavam reunidas todas as condições para apresentar o trabalho às pessoas é que decidi avançar.

Foi um risco...
Sim, mais a mais, porque nenhuma editora acreditou na minha ideia, e paguei a gravação do meu bolso também! Mas a vida é uma jogada de risco... Temos de estar sempre dispostos a arriscar, e há muitos factores que condicionam o sucesso dos álbuns, a predisposição das pessoas, a própria comunicação...

Ainda para mais, Foi Feitiço até nem era uma canção inédita, mas só da segunda vez é que teve aquele êxito brutal. Como o explica?
Acho que em 2002, quando a música saiu, não foi bem comunicado. Em 2006 já não foi assim, a campanha de televisão mostrou às pessoas que aquelas musicas eram minhas e a partir dai os meios de comunicação perceberam o que o publico queria. Tenho esse orgulho, não foram os meios de comunicação que me impuseram, pelo contrário!

Como se sente nessa altura, depois de dez anos complicados para si?
A minha vida mudou muito em dois anos, muito e demasiado depressa. Tive anos com um único espectáculo e de repente passei a ter 90, dá para imaginar a diferença.
Nesse momento, admito, senti uma pontinha de vingança talvez... Sempre tive a mesma postura, podia ser mais imaturo se calhar, mas quis trabalhar para atingir o que achava que merecia.


Há muitos artistas que se queixam do país ser ingrato...

Essa palavra pode ser perigosa, e o publico nunca o foi comigo! Há pessoas que são cruéis, que não gostam da musica, mas isso é normal. Acho que durante alguns anos sofri foi do estigma de algum preconceito em relação à minha musica.


Por ser considerado um cantor romântico?

Irrita-me essa história de querer rotular as pessoas, sou aquilo que sou, tenho a minha identidade musical. Os rótulos para os músicos são absurdos, é a mesma coisa que dizer que todas as pessoas de uma cidade são boas ou más por exemplo. Cantor romântico é o Júlio Iglésias, não sou eu!

Muitas das suas canções são entoadas por milhares de pessoas, ilustram pensamentos, ajudam porventura em momentos mais complicados... Como retrata o país, para alem da música?
Acho que vivemos numa sociedade que a certa altura promove que estejamos a ser escravos de uma casa que andamos a pagar durante quarenta anos, não colocamos nada em causa, nem pensamos que se estivéssemos noutro local seríamos mais felizes, com outras oportunidades, outra visão da vida... Faz-me confusão isto, a certa altura andamos a empurrar a vida, não a vivê-la! Creio que temos de encontrar o ponto de equilíbrio, entre o que é e não é a felicidade.

É hoje, um homem feliz?
Sou! Mas também sou sincero ao ponto de dizer que nunca se é feliz a cem por cento, falta-nos sempre uma pessoa que já partiu, ou qualquer outra coisa, mas é preciso dar valor ao que de bom se tem! Costumo colaborar com o IPO de Lisboa, e quando algumas pessoas me dizem que estão muito mal, às vezes por razões insignificantes, costumo perguntar-lhes se querem ir comigo ver as crianças que lá estão internadas, para perceberem que mesmo nas piores circunstâncias é possível sorrir!


O sucesso

Os 160 mil discos vendidos, a fama, o sucesso e tudo o que de bom e mau lhes está adjacente assustaram-no quando começou a perceber que estava a chegar a sua vez?
Sim, assustou-me, claro! E preocupou-me também, porque é sempre perigoso subir e descer com tanta rapidez. Não era isso que estava na minha cabeça, mas tentei gerir tudo com profissionalismo e consistência. Era a única forma de não desiludir as pessoas... trabalhei, trabalhei, trabalhei...

Lida bem com a exposição pública?
Sinto que o público me impôs, tenho essa dívida de gratidão com as pessoas, não é um frete para mim falar com quem para falar comigo! Tenho tido boas reacções na maioria dos casos, lembro-me até de uma engraçada, uma senhora no outro dia que me disse que as minhas músicas lhe davam sono, por exemplo! Mas tenho sentido de humor!

Acha que teria todo esse à vontade se tivesse alcançado o êxito, logo no início da sua carreira?
Ainda bem que não! Provei o sucesso com dez anos de insucessos. E como tenho boa memória não me subiu à cabeça, lembro-me de ter feito o caminho das pedras e tenho noção de que há um risco de isso voltar a acontecer.


Regressando um pouco aos palcos, como é que se sai de um concerto com milhares de pessoas, se vai de carro para casa provavelmente sem conseguir evitar ouvir a própria música, que passava dezenas de vezes por dia na rádio e se retoma um quotidiano feito de pequenas rotinas?

Não tenho uma profissão, tenho uma coisa que me dá um prazer enorme e que sempre foi o que quis fazer! Não me considero mais importante do que qualquer pessoa, faço as coisas normais do dia a dia, à noite estou no espectáculo, vou dormir a casa e ao outro dia já me estou a levantar cedo para ir levar a minha filha à escola, ir ao café, comprar o jornal, como toda a gente!

Tem algum ícone musical, algum ídolo com quem gostasse de partilhar um palco?
Gostava de cantar com o Sting! Em termos internacionais é o meu ídolo, tem-se mantido coerente ao longo dos anos, tenho em relação a ele um respeito brutal.

Para acabarmos como começámos, e regressando um pouco a si, à sua infância, imaginou algum dia realizar-se desta forma, através da música?
Ser músico sempre foi o meu sonho! Só me comecei a levar mais a sério quando comecei a compor de facto, na adolescência. Costumo dizer que a musica é o meu Xanax, passou a ser uma necessidade absoluta que não dispenso e, quando se descobre esse lado, é difícil pô-lo de parte. Mesmo que tivesse acabado o meu curso de engenharia mecânica, ou seguido por outros caminhos, acredito que a música estaria sempre presente na minha vida.



Biografia
Aos 32 anos, natural de Coimbra, André Sardet gravou o seu primeiro trabalho ainda jovem, em 1996. "Imagens" incluía canções como "Frágil", "Não Mexas no Tempo" e "Um Minuto de Prazer" que recuperaria anos mais tarde.
Veio depois "Agitar Antes de Usar". Sem muitos concertos agendados, e apesar de trabalhar na sua própria empresa de produção de espectáculos, aproveitou o tempo livre para estudar, viajar e... regressar com o autobiográfico trabalho, que baptizou com o seu próprio nome, e onde acaba por desvelar nas letras e nas melodias, alguns dos mais íntimos momentos da sua vida, com a colaboração de Rui Veloso, Luís Represas e Mafalda Veiga.
Sem grande sucesso comercial na primeira década da sua carreira, grava “Acústico" para assinalar o momento, num registo que inclui 15 das suas músicas já editadas, gravadas ao vivo no Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra. “Foi Feitiço” tornou-se então genérico de telenovela e canção obrigatória nas playlists de todo o país. Mais de 160 mil discos vendidos depois, a confirmação de que a música seria mesmo o destino que sonhava desde pequeno.

Notícias Magazine, Outubro de 2008

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