fevereiro 24, 2008

Diário de Notícias: Herman José: “Tenho obrigação de me reinventar”






O passado, o presente e o futuro de um homem que faz rir em cada inspiração. Senhor feliz, apenas contente por vezes, olha os Gatos com “nostalgia”, agradece-lhes a “energia” para continuar a Ser. Conta memórias, revela sonhos e prazeres, e medos também de uma vida de palcos e planos feitos no improviso, como gosta e onde melhor se movimenta no seu humor de perdição.

Por,
Pedro Cativelos


Depois de muitos anos de televisão, foi regressando aos palcos, ao contacto com o público. Sente-se a voltar atrás, ou a iniciar um novo ciclo?
Comecei a fazer espectáculos no início da minha carreira, quando o que se ganhava em televisão não chegava para as despesas. Era um sacrifício, um sofrimento, ficava quase doente uma semana.
Nos anos 90, deixei os espectáculos, quase por vingança.
Depois, acabam por ressurgir na minha carreira com o Café Café, onde começo a fazer umas brincadeiras para ajudar a pagar os ordenados, as dívidas do negócio. E começo a redescobrir isto de outra forma, vou-me divertir, não vou trabalhar!

E hoje em dia, como encara a actuação ao vivo?
Tenho aos 50 anos um imenso prazer antes de cada espectáculo e é até onde dou mais rendimento!
Tenho uma visão fria sobre mim, sou muito desconfiado sobre tudo o que faço mas acho que tenho dos espectáculos aos vivo mais divertidos de que me lembre, mesmo como espectador. Divirto-me que nem um macaco!

Como se sente observado pelo público actualmente?
Tenho muito material, transversal a todas as gerações, tenho militantes de 14 anos. E esta história dos Gatos também me beneficiou, curiosamente. Porque eles conseguiram uma coisa que eu nunca tinha tido, foram líderes de audiências, enquanto eu fui sempre trabalhador para minorias. Mesmo no Herman Enciclopédia, que todo o país conhecia, não era líder de audiências.

Está a dizer-me que os Gatos até o beneficiaram?
Eles tornaram-se num produto de grande consumo e sem saberem, e porque são muito queridos, pessoas bem formadas de respeito e carinho, abriram sem querer uma porta para que produtos meus menos conhecidos regressassem agora um pouco, como os Crimes da Pensão Estrelinha ou o Tal Cana que vai sair agora em DVD fossem agora mais procurados e observados um pouco na sequência do trabalho deles. Até porque há 10 anos que ando em talk-shows e muita gente nova não conhece o meu historial de humorista.

Como os observa, enquanto espectador e humorista?
Eles têm uma energia muito gira que me leva a olhar para o êxito deles com uma certa nostalgia o que não deixa de ser empolgante. E sinto que levei uma injecção de energia ao ver a própria energia e seriedade deles, intelectual e de trabalho. E tudo isto descambou num tipo de... É como se de repente as coisas voltassem ao sitio! Como se me tivessem desarrumado a vida e a casa com uma violência inenarrável chamada processo Casa Pia que está por explicar, por contar...Gostava de saber o que me aconteceu. Fui arrastado para uma coisa sem saber nada, sem conhecer ninguém.

Foi uma altura difícil para si, calculo...
Tecnicamente é o pior que se pode fazer uma marca. Comparativamente com outras pessoas, ainda fui o mais beneficiado, mas fez-me uma mossa gigantesca da qual só agora estou a recuperar. Ainda para mais junto de uma classe etária onde sempre tive os meus maiores apoiantes! Foi violento...um tipo de maldade que ainda hoje não percebo como se consegue ir tão longe.


Tudo numa altura em que o próprio Herman SIC caía a pique!

Foi uma fase complicada, o programa pecou pelo excesso de tentativas para salvar as audiências, perdeu a identidade, levou com o Big Brother em cima, foi abastardado...

Não lhe parece que a determinada altura a sua imagem começou a ficar desgastada?
Isso foi culpa minha, assumo! Gostava do Manuel da Fonseca, queria que tivéssemos sucesso, mas a certa altura, com menos dinheiro já tínhamos entrevistado toda a gente, já tínhamos experimentado tudo! Acho que esta paragem televisiva me vai fazer bem!

Daqui para a frente, humor em sketch ou em formato talk show?
Já não tenho pele, como o Jô Soares ou o Jay Leno, para colar bigodes, nem convicção. Como aquelas miúdas que fazem table dance e depois passam a empresárias. Há uma altura para estarmos agarrados ao varão em biquini. E depois há fases em que se está melhor no sofá com um tailleur Channel. Ser puta na mesma mas estar no hotel com uma florzinha na mesa!

Depreendo da analogia, que talk show, um formato que até faz falta à televisão portuguesa...
Com a experiência de vida que já tenho, com as pessoas que já entrevistei, com a cultura generalista que possuo acho que sou um interlocutor privilegiado para um tipo de coisas destas e acho que o posso fazer bem. E é isso que quero e me sinto bem a fazer agora.

E o seu novo programa?
Em termos de televisão estou em paragem absoluta. Vou regressar depois das férias, já tenho um projecto, estou em sintonia com o Nuno Santos, desde o tempo em que estive para ir para a RTP. Mas não posso dizer mais nada, porque ele me pediu!

Não me diga que se está a preparar uma bomba de audiências e vai fazer um programa de humor com os Gatos?
Seria um desperdício! Encontramo-nos a meio as vezes que for preciso. Não faz sentido ter uma lagosta fresca e um belo bife de lombo e de repente fazer uma caldeirada de lombo e lagosta! Se calhar estraga uma coisa e outra. Isto partindo do princípio que sou um bife de lombo...

Pensava que era a lagosta...
(gargalhada) Neste momento são eles!

Dão-se bem todos?
Uma paixão mesmo. Somos muito elevados como seres humanos, numa relação que dura há muitos anos, e nunca houve um minuto que não fosse de simpatia, de brincadeira, de aprendizagem e isso não tem preço. Em contraponto com muitas das relações que estabelecemos neste mundo do espectáculo, onde se joga sujo e há muita gente hipócrita, nós funcionamos a um nível civilizacional tal que a nossa relação é indestrutível!

Tem muitos amigos?
Conheço muita gente, mas a amizade implica muita coisa, por isso são poucos os amigos que tenho. E até tenho alguns amigos com quem não me dou, como o Nicolau porque as nossas vidas não são compatíveis... Mas se me disserem que o mundo vai acabar e tivesse de escolher duas pessoas para meter num bunker... Ía buscá-lo a ele e mais duas ou três, como a Rueff por exemplo, que até levava balas por mim se fosse preciso! Mas qualquer uma das minhas relações de amizade não é uma coisa de grande continuidade, não! Se calhar a minha amiga mais contínua é capaz de ser a minha mãe porque tento estar com ela o maior tempo possível!


O que se passou com o seu último programa?

Não há nada mais triste do que dizer mal da Maria Antonieta depois de ter sido decapitada. Não me apetece lavar roupa suja com a anterior direcção de programas. Percebo que a pressão é enorme, não houve serenidade nem tempo para deixar que o produto se impusesse. Ganhámos o horário, começamos a estabilizar, comecei a ver os sinais na rua, “temos homens ou não temos homens”, e quando comecei a sentir que aquilo começava a crescer a direcção achou que deviamos ir para o Horário dos Gatos que estavam no auge da audiência e no penúltimo episódio. Lembro-me de ter pedido para pelo menos me garantirem quatro semanas naquele horário, para pegar.

Não resultou...
Tivemos um share péssimo, e na semana seguinte começou o descalabro, duas da manhã, três, por aí fora. Sabe que quando o público percebe que o próprio vendedor do produto não o respeita desinteressa-se. Até na Feira de Carcavelos o rapazito que está a vender as suas imitações Lacoste, vende-as com militância e não anda a dizer que com uma lavagem lhes salta o crocodilo! Acho que me aconteceu isso involuntariamente porque eram bons seres humanos que gostavam de mim, mas deixaram a pressão e a instabilidade saírem cá para fora.


Mas na sua opinião, era ou não um bom programa?

Tenho a certeza absoluta, que pelo trabalho e seriedade que pusemos nele, daqui a dez anos será muito mais bem visto. Ainda no outro dia no Youtube tinha um sketch com quase 200 mil visionamentos e um dos comentários era, “que saudades destes bons velhos tempos do Herman”, quando na realidade o que aconteceu foi que por a andar a saltitar de horário não tiveram foi acesso a ele!

Mas tem noção que há várias pessoas que dizem isso, que o Herman, já passou...
É difícil gerir isso. Não há nada mais destruidor que o tempo. Como nos romances, a tristeza com que as pessoas se separam, rodeadas de boas recordações, de noites de sexo louco, de viagens maravilhosas... tudo no passado. Mas na carreira temos de nos reinventar e assumir humildemente esse fenómeno. Agora tenho pessoas apaixonadas pela minha versão dos anos 80, mas as pessoas olham para aquele Herman como outro... Eu também, já não sou aquele Herman.


E como se ultrapassa isso?

É só olhar para o lado. Basta ver o que aconteceu com o Sinatra, que estava em todo o lado, caía na sopa. Cansaram-se dele, inventaram coisas... Um dia ressurgiu porque as pessoas estavam com saudades. Há uns anos fiz um espectáculo com ele no Porto que é um dos pontos mais altos da minha vida artística. Há que ter essa humildade e pensar em reavaliar a situação, partir para a frente. O Nicolau por exemplo, queria ser humorista... acabou por se reinventar e tornar-se um grande actor sério. Eu tenho obrigação de me reinventar também! Quando voltar, quero fazê-lo mais denso, mais profissional, menos desleixado...


Como se faz isso no dia a dia.

Basta viajar. Damos valor a muita coisa, por exemplo ao estatuto que temos no próprio país.

Nunca lhe apeteceu não regressar?
Para lá ficar teria de ser recepcionista de hotel, ou director de restaurante, não artista! Em Nova Yorque encontram-se os melhores artistas do mundo em cada esquina! São lições de humildade que nos obrigam a não perder essa normalidade! Até porque quando isso acontece vem a decadência. Um dia um gajo acorda com a sensação que é muito bom, começa a encarnar a Greta Garbo, a Maria Callas, o James Dean... E Portugal está cheio de James Deans e Callas formidáveis na sua decadência...


Chegou a pensar numa carreira internacional?

A certa altura podia ter apanhado o comboio sim. Há um momento em que começo a filmar muito para fora, tinha aceitação em muitos mercados! Tive convites para França, Alemanha e até um, feito pelo próprio Merv Grifith, para apresentar a Roda da Sorte em Los Angeles, nas férias do apresentador. Mas não aceitei por qualquer forma de preguiça ou segurança que me fez ficar aqui.


Qual é o seu maior prazer?

São pequenas fotografias do momento, dou-lhe alguns... Estar num fim de tarde no Algarve, a ver o Bullets Over Broadway... Ou por exemplo, quando pego na minha lancha rápida, já me deixei dos elefantes brancos, que foram bons para perder os complexos e saber que podia ter coisas como os ricos, e vou para o meio do mar. Paro, deito-me, ponho música e deixo-me estar. Ou acabar de ver uma peça num domingo à tarde na Broadway com a Katleen Turner... Quem tem medo de Virginia Woolf, sair, andar a pé com um batido de morango na mão, a ver as montras, com os reflexos do sol, em Nova Yorke...

Mas era capaz de pegar em algum desses momentos e prolongá-lo até ao final da vida?
Não! São belos porque são efémeros, pedaços ricos para os sentidos, perfeitos, que apenas servem para nos apoiar quando estamos mais longe deles.

E daqui a vinte anos, onde estará, Herman?
Gostava de estar na TV2 a fazer um programa de entrevistas, sério e chatérrimo! (sorriso)

É feliz?
Sou! Mas assusta-me a perspectiva de que um dia tudo isto vai acabar!

Mas sempre teve essa consciência?
Comecei a tê-la no dia em que o meu pai morreu, sabe?! Estava no topo das suas faculdades, da sua experiência, no seu melhor... Assusta-me isso, o facto de sentir que quando estamos no máximo da nossa evolução pessoal, quando podemos começar a contribuir e a partilhar o melhor de nós, o corpo já não nos acompanhe.

E até lá?
Vou-me divertindo! Como a música dos Monthy Python, (Começa a cantar) Always Look at the bright side of life...!


Diário de Notícias,
Fevereiro, 2008

Imagem da autoria de Pedro Leitão

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