fevereiro 11, 2008

NS: Kabul, O Último Regimento




A NS acompanhou o exercício das tropas especiais que integram o último contingente nacional que partiu para o Afeganistão no passado dia 11 de Fevereiro.

Texto
Pedro Cativelos

Fotografia
António Valente


Teatro de operações. O termo soa a militar, mas é menos assustador que dizer batalha, imaginar um campo minado, ou pensar num lugar de muito perigo. A vida de soldado é assim. Sem esconder o medo, corre-se para o desconhecido, “porque tem de ser”. Poucos dias antes de partir pela última vez para o Afeganistão, os 150 militares da Brigada de Reacção Rápida das Forças Armadas que se vão integrar na Internacional Security Assistance Force da Nato, deixam transparecer em cada olhar, a angústia de um destino que desconhecem. Sentem já a ansiedade de pisar o árido terreno afegão, na adrenalina que lhes incutem, das camaratas aos dias de campo que se prolongam para lá da resistência humana natural. “Andamos há uns meses a treinar e agora está quase a ser a sério”, conta um dos soldados, com o olhar nas colinas, como lhe ensinaram a fazer para precaver o perigo.

As condições recriadas neste último exercício antes da partida, são semelhantes às que irão encontrar em Kandahar, região do sul afegão, o pior dos cenários que se podem encontrar à face da terra. Pelo menos, tentou-se isso. Mas estamos ainda no Alentejo, em Beja, nos terrenos anexos ao regimento de infantaria número 8. Pisa-se a lama, sente-se o frio, pressente-se o risco.


Cenário real

Depois do briefing matinal, a coluna abandona o quartel na lenta rotação dos motores. Silêncio de expectativa. Saem homens de cada viatura numa vigia que se dissipa com um toque de capacete, sinal ensaiado para assinalar que se pode prosseguir. Simular-se-á uma situação de emboscada. Por agora já se sabe que ela vai acontecer, mas desconhece-se o seu paradeiro e como irão os insurgentes desferir o ataque. A tensão é palpápel, no silêncio rompido por comunicações encriptadas, nos olhares bem dispertos, dispersos num vazio trabalhado para afugentar emoções inimigas, nas G3´s em riste, carregadas de cartuxos sem pólvora para matar.

Um pequeno riacho preenchido pela chuva dos últimos dias divide amigos, camaradas e inimigos por agora. De súbito, do meio de um nada que soava a estranho por ser tão demorado... Explosão! Ouvidos feridos, salpicos de água que encharcam a vista, pânico controlado. Hora de combate.

Tiros de metralhadora, obuzes, ruído brutal que lança chamas e ateia os ânimos. “Fogo, fogo, fogo”, grita-se como se não houvesse amanhã. Não se vê o “inimigo”, disfarçado nos arbustos da colina adjacente e no fumo colorido que é lançado para mascarar a sua localização. Registam-se baixas. Neste tipo de “profissão”, esse é um risco factual, o maior de todos, o derradeiro, para o qual tem de se estar preparado. “É verdade. Já lá estive e é assim mas faz parte do trabalho”, explica João Bernardino, Major responsável pelas Comunicações Operacionais que já perdeu a conta às missões que integrou. Por isso, é muito procurado pelos mais jovens. “Sim, eles têm-me algum respeito, vêm ter comigo para me poderem perguntar pela minha experiência no terreno e terem uma melhor ideia do que os espera”, conta. Desta vez não vai para o Afeganistão, está aqui para isso mesmo, como conselheiro de batalha, enquanto prepara os seus homens para outro cenário de risco, o Kosovo. “Compreendo que estejam ansiosos, mais de metade já lá estiveram, mas para muitos é a primeira vez. Se já tive medo da morte? Temos de aprender a conviver com isso e é bom para termos mais atenção, principalmente com os nossos camaradas. Lembro-me que morreu um homem logo na minha primeira missãio, há mais de vinte anos... Foi duro. Desde aí prometi que isso nunca mais iria acontecer, mesmo que me custasse a vida e não voltasse a ver as minhas duas filhas. Não aconteceu!”, suspira.


Dias do Fim


Ordens cruzadas, por detrás da barreira formada pelos todo-o-terreno. Como no teatro, todos conhecem a sua posição, e automatizados no gesto, enfrentam os “talibãs” do exercício Kabul 081, por enquanto militares descaracterizados. A salvo, no topo da outra colina, a Inspecção Geral do Exército acompanha as operações. Têm de assinar o aval à saída do contingente para o cenário de guerra real e detectar o que não está de acordo com o necessário para a partida, tanto como para o regresso “em total segurança”, como explica o Major General Carlos Jerónimo, encarregado pelas operações a partir de Portugal.

A missão é de manutenção de paz, mas terão de operar por todo o Afeganistão. “Onde houverem problemas”, graceja o tenente de infantaria António Coutinho. Será esta a última vez que um contingente português partirá para terras Afegãs. O primeiro voo levanta no dia 11 de Fevereiro. No dia 28, parte o seguinte que regressará apenas em Junho próximo. Depois, a presença portuguesa ficará reduzida a um avião C130 da Força Aérea e a alguns elementos com funções de assessoria às forças locais.

Passam-se largos minutos. O tiroteio intensifica-se e a ambulância militar entre em cena, atravessando o campo pejado de cartuxos queimados e alguns homens tombados. A sirene está ligada e quase que se funde com o fragor das balas, banda sonora a que os ouvidos começam a ficar alheios. Lança-se o pedido para o apoio aéreo, sinal de que a operação está perto do fim.

Explosão, uma outra, e outra ainda. Revolta controlada, insurrectos em fuga. Gritos de vitória. Ganhou-se uma batalha, quando a guerra ainda nem começou, pelo menos para eles, e nem tem meio de acabar, mesmo após o seu regresso. Já morreram no Afeganistão alguns milhares de homens de várias nacionalidades. Portugueses, foram dois, o último em Novembro passado. É o tempo do presente, feito de diferenças erradas. “Se acredito que podemos mudar alguma coisa? Tenho fé nos meus companheiros, sei que posso morrer ao lado deles. Em prol de quê?! De uma missão que nos foi atribuída e que temos de cumprir. Haverá sempre guerras no mundo, e a nossa vida faz-se no meio delas, em qualquer lado onde se estejam a cometer atrocidades ou atropelos aos direitos humanos”, explica Jerónimo, nome de luta, e um dos soldados que pela primeira vez vai embarcar para uma luta que não entende muito bem ainda.

Entre os gritos de vitória e os urras de festejo, o pedido de uma foto muito especial. “Aqui, para a minha mãe que está um pouco assustada com a minha partida. Vai correr tudo bem”, garante o soldado. Vários outros companheiros juntam-se ao jovem de 20 anos num até breve que pode ser sempre adeus não anunciado. São ainda rapazes, feitos homens à pressa. Retiram as rações de combate, alimentam o cansaço com uma barra de cerais, bebem água fresca e colocam as mochilas para regressarem ao mato raso da planície, para continuar o trabalho. Para nós a guerra fica por aqui. Para eles, está quase a começar. Num derradeiro piscar de olho, interrompe-se a despedida... “Nada disso, é só um passeio lá para longe. No Verão já cá estamos, não se preocupem”. Sabem que não é assim e partirão no próximo dia 11 de Fevereiro.


Notícias Sábado,
Fevereiro de 2008

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