agosto 03, 2010

Máscaras Improváveis - Pública : Francisco Moita Flores

Crime, disse ele!


Escritor, inspector, político, e mais algumas coisas ainda que ainda estão por descobrir, numa busca constante, vicio que alimenta o espírito, e as palavras… “Que nunca se esgotem”.

Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira
Produção
Rúben de Melo Moreira


Conceito. Perscrutar o universo do velho romance policial, da sombra opaca por detrás da porta semi-aberta, da pegada escondida debaixo do tapete, do mistério insondável, em busca da verdadeira impressão digital, que revela a pessoa para lá da figura de facetas diversas, conhecida de todos. Francisco Moita Flores embarca no desafio, sem receio de partir em busca de uma fracção do seu passado, que se reflecte ainda bem visível, nas palavras e memórias do seu presente. “Eu gosto sempre destas coisas, de encarnar personagens sabe?! Aliás, nos filmes e séries escritos por mim, acabo sempre por aparecer nas filmagens, como figurante, lá atrás... Dá-me um prazer enorme poder participar numa personagem que construí, de raiz, que veio de uma ideia, passou para o papel, e que depois ganha vida. Neste caso, não fui eu que a criei, foram vocês, mas acaba por se adequar a mim”.
Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Dick Tracy, nomes de figuras que preenchem um imaginário colectivo de romances em que o bem triunfa sobre o mal, com a ajuda da intuição, da dedução, da lógica, figuras factuais que aliadas ao poder da escrita livre e da imaginação sem limites, impulsionam ideias, conceitos, imagens, no caso. “Lembro-me que em pequeno nos juntávamos, em redor da televisão a ver os programas do Inspector Varatojo. Se calhar foi a primeira coisa que disse que queria ser, quando mo perguntaram na quarta classe. ´Polícia e escritor`, respondi, na voz de criança, mas com uma convicção que me levaria a ainda cedo, ter cumprido estes dois desígnios”.
Auto-retrato. Imagens soltas, sem nexo aparente de causalidade, quando se observam as facetas dispersas da sua vivência. Escritor primeiro, inspector da judiciária, escritor ainda, professor, político, escritor sempre. As palavras marcam o seu ritmo e unificam-lhe as passadas, qualquer que seja o próximo rumo a tomar. “Em tudo o que faço, a escrita está sempre presente. Curiosa essa questão dos livros policiais, até porque a maioria dos vinte e tal livros que escrevi não tem a ver com esse assunto. Vou contar-lhe uma coisa que nunca referi publicamente. Aos trinta e poucos anos, tive um AVC, e fiquei com o lado direito do corpo paralisado. Quando acordo, passados quatro dias de coma, e descubro que o meu lado direito, a mão direita com que escrevia não o poderia voltar a fazer, olhei para a janela do corredor e pensei em por termo à vida. Por qualquer razão não o fiz, e acabou por acontecer o contrário, agarrei-me a ela e àquela ínfima possibilidade que existia, de vir a recuperar. Ganhei forças onde não as tinha, lutei contra mim próprio, andava a noite inteira pelos corredores do hospital a exercitar-me, fazia-o constantemente e passados quatro meses, quando deveria começar a fisioterapia, já estava bom. A escrita, ou a ideia de que necessitava dela para sobreviver, salvou-me a vida”.
Palavras, memórias, assuntos cumpridos e outros, por construir ainda. “Se pudesse acabar tudo o que ainda tenho por escrever, e já fiz essa conta, teria de viver até aos cento e cinquenta e três anos!”, conta, com um sorriso breve, e sucinto.
Máscaras improváveis. “Todas o podem ser, quando não são convenientemente vestidas, ou apresentadas. Costumam dizer-me por exemplo, que as minhas personagens femininas são muito reais. Talvez seja essa uma outra máscara, bem real até, a da feminilidade que tenho em mim, porque gosto de mulheres, porque as admiro. Há muitos menos mulheres presas, ou a cometerem actos atrozes, talvez pela consciência uterina, por um universo mais rico de afectos, emoções, porque são mães antes de sermos pais. Tudo isto me fascina na mulher”.
Um cigarro, as golas da gabardina decorada como nos policiais dos anos cinquenta do cinema norte-americano, o chapéu de feltro, típico do investigador misterioso, envolto na nuvem de fumo e cinza que transporta o espaço para outra dimensão. “Não há nada que não tenha vivido que não tenha sido consubstanciado, e essa parte de mim, a busca, a procura por histórias, está sempre viva”.
Da política, que vive por dentro há alguns anos, enquanto autarca da Câmara de Santarém, leva mais algumas, “para contar daqui a alguns anos, quando fechar esse capítulo, e me dedicar aos livros a tempo inteiro, como sempre sonhei”.

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