dezembro 10, 2008

Notícias Sábado: Portugueses procuram cada vez mais armas ilegais

Desde que a nova Lei das Armas entrou em vigor, há cerca de dois anos, ainda não foi passada uma única licença de porte de arma para civis, situação que tem provocado o pânico entre os armeiros portugueses, com uma quebra de vendas estimada na ordem dos 70 por cento. Por outro lado, no mercado ilegal, a insegurança e a dificuldade em obter uma arma através de meios legais, faz a procura aumentar e os preços descerem. Em poucos minutos, com os conhecimentos adequados, pode comprar-se uma arma ilegal na rua ou até pela Internet.

Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


Existem actualmente cerca de 1,4 milhões de armas oficialmente declaradas em Portugal, entre armamento destinado à caça, ao tiro desportivo e à defesa pessoal.
Em relação ao número de armas ilegais em circulação, várias são as estatísticas que têm vindo a público nos últimos tempos que aventam a possibilidade de existência de um número idêntico ou aproximado, mas tanto o Ministério da Administração Interna como a PSP rejeitam liminarmente esse cenário. “Desconheço o número ao certo de armas ilegais, justamente por serem ilegais”, afirma o ministro Rui Pereira, apontando então para valores menos alarmantes, “na ordem das dezenas de milhar”, assegura.
Também a Direcção Nacional da PSP se apressou a desmentir os números divulgados na imprensa, negando por completo essa possibilidade. O director do Departamento de Armas e Explosivos da PSP. Luís Farinha garante mesmo que “não existe qualquer estudo, nem dados científicos que apontem para a existência de tal número de armas ilegais”, considerando até “impossível que o mercado ilegal tenha mais armas do que as legalizadas. A polícia não tem nem faz estimativas de armas ilegais pois se as conhecêssemos, apreendíamo-las e aí conseguiríamos fazer uma estimativa”, argumenta.
“Se pensarmos que entre as cerca de 1,4 milhões de armas legais se incluem as armas já abatidas, as armas furtadas, as armas exportadas, incluindo as armas produzidas em Portugal e exportadas para outros países, é susceptível de ser praticamente impossível a existência de um mercado paralelo armas ilegais superior ao das legalizadas”, argumenta.

Sem certezas quanto aos números reais, a verdade é que uma quantidade indefinida de armas ilegais, dos mais variados modelos e calibres, continuam a ser transaccionadas um pouco por todo o lado onde se possa imaginar. Entre as armas ilegais mais comummente encontradas no nosso país encontram-se pistolas de alarme (cuja venda oficial é proibida) transformadas em serralharias clandestinas que podem custar 75 euros, mas também metralhadoras soviéticas, Uzi israelitas e as Remington 1100, mais conhecidas por Shotguns, utilizadas em vários assaltos ao longo dos últimos meses.
Qualquer destas peças pode ser encontrada em muitos dos mais de trinta bairros problemáticos situados na orla urbana da Grande Lisboa, de Santa Filomena à Cova da Moura, da Fonte à Quinta do Mocho, por exemplo, onde se encontram traficantes de armas com recursos necessários para comprar armas de guerra em mercados clandestinos e de imigrantes oriundos da antiga União Soviética como a Ucrânia e a Bielo-Rússia.
O Bairro da Apelação, em Lisboa, é um dos locais onde se podem encontrar armas ilegais, com maior ou menor dificuldade. Fala-se mais de balas, do que de bolas a rolar pela rua, em brincadeiras de miúdos que mesmo assim, se vão mantendo por ali.
Valentim Gonçalves, pároco do Prior Velho explica que é preciso fazer mais do que as recentes campanhas de “dersarmamento” levadas a cabo pela PSP, para se resolverem os graves problemas de criminalidade" que assolam o bairro. “Já me chegaram a oferecer um colar feito de cartuchos de armas de caçadeira”, explica, como forma de ilustrar a realidade diária com que lidam os habitantes da Apelação.
Um dos habitantes, sem se querer identificar, não tem problemas em indicar como se podem adquirir vários tipos de armamento, os preços, quem os fornece. “Solução?”. Um sorriso e um encolher de ombros, proporcionam a resposta que nem surge inesperada, uma vez que a esperança parece já não morar por aqui há tempo demais.
“Não podemos ficar muito surpreendidos se estes fenómenos como o do tiroteio na Quinta da Fonte se repetirem, principalmente quando há tantas armas ilegais e gangs organizados”, assinalou o general Garcia Leandro, que preside ao Observatório de Segurança, aponta as dificuldades de integração das comunidades de migração interna, do campo para a cidade, quer de imigrantes do exterior, que geram exclusão.” Existem problemas sociais e económicos graves a nível dessas famílias que tornam mais provável a ocorrência de situações de criminalidade”, explica.

Circuito paralelo. Se legalmente, e com despesas de licenciamento incluídas, uma arma de defesa pessoal de baixo calibre pode custar perto de 750 euros num qualquer armeiro, e demorar quase um ano a estar disponível para o comprador, na rua o processo é imediato e custa 10 vezes menos, para além do facto compreensível de se poder adquirir um calibre mais poderoso.
Uma das armas mais comuns que se podem encontrar nas ruas é a 6.35mm, uma das permitidas por lei para os civis, para além do calibre 32 longo. Surgem como as mais baratas e acessíveis porque em muitos casos são pistolas de alarme transformadas em serralharias caseiras espalhadas um pouco por todo o país, visto ser este, um negócio rentável pela procura crescente que se verifica, surpreendentemente ou não, por parte de jovens pertencentes a gangs criminosos que as utilizam para pequenos furtos, mas também por cidadãos comuns. “Sim, dá dinheiro e não é muito difícil de fazer! Cada vez mais as pessoas procuram porque não se sentem seguras e não é só malta daqui do bairro, vem cada vez mais gente que não quer fazer mal a ninguém, só se quer sentir protegida”. Paulo Silva, nome fictício de um jovem residente na Cova da Moura, afirma ter já estado no negócio, abandonado “por causa da polícia e dos meses de prisão”, que passaram por ele, como forma de mudança de destino. “Agora estou limpo”, afiança, sem no entanto deixar de dizer que a alguns metros da sua antiga oficina artesanal no bairro, outras iniciaram funcionamento. “Isto nunca há-de parar, porque a violência traz violência e é cada vez mais difícil e mais caro comprar uma arma legalmente não é?”.
Fonte policial explica à Notícias Sábado a razão do “controlo do tráfico de armas” ser ainda uma verdadeira “meta utópica, devido à ausência de fronteiras que por via do desarmamento dos países de Leste e às máfias que controlam o mercado dos estupefacientes e de armamento faz com que aumentasse brutalmente o número de armas a circular ilicitamente no nosso país”.
Depois, uma outra forma de alimentar o mercado paralelo de armamento releva-se após a divulgação de números da PSP, assinalando que no ano passado foi reportado o desaparecimento de cerca de 31 mil armas, tendo sido recuperadas apenas 2.500, o que para a mesma fonte, significa “que existem armas que alimentam um determinado circuito ilegal”.
Há depois, a questão legislativa que, segundo vários membros das forças policiais contactados, não ajuda em nada “um combate que tem de ser vencido! Quando detemos alguém por posse de armas, para o detido, a pena acaba por ser curta e imediatamente o espaço que tinha no mercado é ocupado por outro”, alerta um inspector da Polícia Judiciária.
Leonel Carvalho, secretário-geral do Gabinete Coordenador de Segurança, corrobora as opiniões dos agentes no terreno. “O tráfico de armas é praticamente incontrolável, sendo que é muito difícil entrar no mercado negro alimentado por material fabricado na Europa, cujo acesso é muito barato e fácil”, conclui.


Armeiros alarmados.
“É uma vergonha o que se está a passar no nosso país”. É desta forma e sem meios termos que a presidente da Associação de Armeiros de Portugal, Ana Ferreira classifica o estado do sector. “Engraçado como a insegurança aumenta a cada dia que passa, mas as vendas de armas desceram a nível nacional, cerca de 70 por cento e muitos armeiros estão a fechar. E porquê? Porque a nova Lei tem coisas positivas mas outras que de facto devem ser alteradas, como o exagero em termos burocráticos, de proibições... Imagine que até os sprays e as pistolas de alarme são proibidas, quando depois se vai à Internet, ou se atravessa a fronteira e se podem adquirir esses mesmos produtos”.
Depois, para a dirigente associativa, há ainda uma outra questão relacionada com os serviços da PSP, que não estarão, segundo a própria, “preparados” para fazer cumprir todas as normas emanadas da nova legislação. “Obrigam-nos a esperar meses com o material em armazém, já pago claro, o que nos provoca prejuízos enormes, como calcula. Posso dizer-lhe que desde que entrou em vigor, ainda não foi passada nenhuma nova licença e já lá vão dois anos, devido à falta de cursos obrigatórios para a obter”, assinala.
Contactada pela NS, a Polícia garante que “esta situação ficará corrigida antes do final do ano”, confirmação que não acalma no entanto as preocupações dos armeiros nacionais. “Admito que esta burocracia e este atraso enorme na concessão das licenças leve de facto algumas pessoas a recorrer ao mercado paralelo até porque, quando existe exagero de um lado, a tendência passa por arranjar forma de fuga”, explica.
Para além das ruas, a Internet é outro meio de conseguir comprar uma arma ilegal. Serão milhares os sites que as publicitam, todos estrangeiros, uma vez que em Portugal é proibida a publicidade de artigos do género, mesmo que feita pelos próprios armeiros.
“Sim, é verdade, até tenho vários processos de lojas que tinham sites, com descrição das armas que tinham para venda e que neste momento foram processados por o fazerem, o que achamos ridículo porque se tratava apenas de uma descrição dos produtos que existiam e não de um meio de venda online”, explica Ana ferreira.
Paralelamente, numa das últimas edições da revista dedicada à caça, Calibre 12, um panfleto da Alvarez, uma empresa espanhola que comercializa vários tipos de armamento, anuncia a venda, com os modelos, os preços e até uma ficha de encomenda de vários tipos de armas de alarme, cuja venda é ilegal no nosso país. “Sim, essa situação é verdadeira, aliás já avançámos com uma queixa. Apesar de serem pistolas de alarme são ilegais no nosso país e não as podemos vender, mas no entanto surgem aqui claramente explicitadas e ninguém faz nada”, assevera.
Carlos Batista, proprietário da José Matos Gonçalves e Irmãos, o único fabricante de armas com marca portuguesa (a NOA, iniciais equivalentes à Nacional Oficina de Armeiros), e um dos mais antigos no mercado, mostra-se também preocupado com o rumo que o sector seguiu nos últimos anos. “Já antes da nova Lei as coisas estavam a piorar, mas desde então tem sido preocupante de facto, não sei mesmo, durante quanto tempo poderemos manter um negócio que já vem do meu avô, há mais de 60 anos”, assinala.

Violência. Parece uma consequência indissociável do acesso fácil às armas de fogo ilegais. Com o aumento dos índices de criminalidade violenta que se registaram desde o início de 2008 e que atingiram o auge, em termos de acontecimentos e de mediatismo, em Agosto passado o descontrolo no tráfico de armas em Portugal deixou de ser segredo mas, tão pouco é um facto recente. “Apesar do desmantelamento de pequenas redes ilegais de comercialização de armas, persiste a actuação de estruturas criminosas, de origem estrangeira, que se enformam de um elevado grau de sofisticação e apresentam uma oferta de produtos bastante diversificada”, lê-se numa das alíneas do Relatório Anual de Segurança Interna de 2006.
No entanto, os assaltos a bombas de gasolina, dependências bancárias como a do BES, em Lisboa, e o episódio de violência com armas de fogo na Quinta da Fonte, no concelho de Loures, multiplicaram-se por outros mais ou menos mediatizados, e foram ocupando as conversas de café e espalhando a sensação de insegurança que se reflecte nos números. Nos últimos meses, pelo menos oito pessoas morreram ao serem baleadas e 16 foram feridas, para além dos ainda incalculados pelas seguradoras e vários proprietários atingidos, danos causados pela recente onda de assaltos.
A PSP, mostra-se contudo, ciente dessa realidade “Haverão bairros em Lisboa certamente onde há muito maior concentração de armas e não há incidentes deste tipo, como o da Quinta da Fonte”, explica Luís Farinha, acrescentando “não haver relação com a posse das armas em si, muitas delas se calhar detidas legalmente mas sim com o comportamento humano e com a utilização que as pessoas lhes dão”, sublinha.





Números
-Existem oficialmente registos para cerca de 1,400 milhões de armas em Portugal. Mais de 80 por cento são de caça.
-Um em cada dez portugueses é possuidor de uma arma, na grande maioria, proprietários de apenas uma unidade.
-Em 2007, a PSP e a GNR apreenderam 8 mil armas.
-Em 2008, as apreensões já ascendem às 5 mil.
-31 mil armas foram declaradas como desaparecidas no ano passado. Apenas 2.500, foram recuperadas.


Como adquirir uso e porte de arma
Primeiro, e depois de saber que tipo de finalidade quer dar à arma que irá adquirir, caça, tiro desportivo ou defesa pessoal, inicia-se o processo. Segue-se o requerimento, indicando as razões profissionais ou circunstâncias imperiosas que justifiquem o uso de arma de defesa, depois a declaração do requerente, sob compromissos de honra, em como se encontra em pleno uso de todos os direitos civis e políticos e em como nunca foi condenado ou esteve envolvido em situações relacionadas com estupefacientes que, depois, complementa com o atestado de residência ou fotocópia do cartão de eleitor, identificação pessoal, certificado de registo criminal, declaração passada pela Direcção Geral de Viação onde conste que não foi condenado por qualquer infracção relacionada com a condução sob o efeito de álcool e duas fotografias, a cores, tipo passe.
Existe uma diferenciação entre as pessoas que podem ter o direito a requerer o uso e porte de arma, entre classes B, para todos os funcionários das forças militares, deputados, juízes e armeiros, que têm acesso a um número mais diversificado de calibres, e cujo processo de obtenção é mais célere, e B1, para os civis, com apenas dois calibres, 6.35 mm e 32 longo à disposição, calibres mais fracos em termos de potência.
Nos últimos dois anos, desde a entrada em vigor da nova Lei das Armas, as únicas licenças passadas foram relativas à classse B.
Todo o processo, pode custar ao requerente, para além do valor da arma, entre os 120 e os 200 euros, dependendo das várias categorias e finalidades do uso e porte da mesma.


Onda de violência provocou alteração à Lei
O Governo aprovou há algumas semanas um novo regime jurídico das armas, que prevê a aplicação da prisão preventiva em todos os casos de crimes cometidos com detenção ou com recurso a arma proibida, depois de em 2006, ter entrado em vigor uma nova Lei das Armas que substituía a antiga legislação em vigor, há várias décadas.
“A proposta de lei prevê a aplicabilidade da prisão preventiva em todos os casos de crimes de detenção de arma proibida e de crimes com recurso a arma”, anunciava Pedro Silva Pereira, ministro da Presidência, no final do Conselho de Ministros em que a medida foi tomada.

Notícias Sábado, Novembro de 2008

1 comentário:

chumbos disse...

Este artigo vem reforçar a importância cada vez mais evidente da prática da legislação do uso e portes de armas e a penalização para quem não cumpra com a legislação imposta.