abril 20, 2008

Pública: Um dia com... Camané



“O Fado é assim, acontece!”


A música é o lugar onde se encontra na maior parte do tempo. É lá que ganha forma e ecos, numa espécie de equação matemática viajante sem destino, onde as variantes são letra e sentido, história, canção, regresso e saudade... O resto não se explica, sente-se, em silêncio, sempre que o Fado canta.


Texto
Pedro Cativelos

Fotografia
Patrícia de Melo Moreira



“Queres cantar?!”. “Não!”. E fecha os olhos. Com o sobrolho trancado pelas mãos que aprisionam os pensamentos que não escapam para o mundo, para lá do universo que se forma e que o faz cativo, quando a primeira guitarra exala a primeira nota, de um Fado, que se parece sempre com o primeiro...


Tejo, álbum de recordações
“Pirata, anda cá....”. Levanta-se por volta das 11 horas, normalmente toma um café, circula o quarteirão, compra o jornal. Mas não anda sozinho. “Pirata...!”. Lança em tom de aviso. E ele, companhia de há dois anos, obedece . “Num estúdio onde fui gravar, lá estava, pequeno ainda... Trouxe-o! Dá trabalho claro, e exige responsabilidade, mas gosto dele”.
Enquanto isto, o Pirata, pela mancha escura que lhe forma o desenho de uma pala numa das vistas, entretém-se atrás das gaivotas, dos pombos e de tudo o que lhe suscita a curiosidade canina.
No banco de jardim onde se costuma sentar, o sol da Primavera ilumina o Tejo em frente, como quadro sobrevivente dos fados e dos poetas que inspirou, do povo que nele se lavou e sobre ele cantou, durante séculos. Amália surge na conversa, pela primeira vez ao longo do dia, assim como as memórias que o rio presenciou desde sempre, algumas boas, outras nem tanto. “Faz tudo parte da vida não é?! Isso é importante para se conhecer também o Fado, saber o que é a vida. Acredito que é como um bom vinho, é preciso ter algum crescimento, ser adulto, para o perceber e deixar entrar dentro de nós”.
Carlos Manuel Moutinho Paiva dos Santos Duarte. Assim baptizado à nascença, quase de berço lhe chamaram Camané. “Sim, é uma coisa que vem desde miúdo, sempre fui conhecido assim por toda a gente”.
O primeiro contacto com o Fado aconteceu num acaso, quando durante a recuperação de uma doença infantil que o obrigou a ficar em casa por algumas semanas e, sem nada para fazer, começou a ouvir a colecção de discos dos pais. Era desta forma apresentado a Amália, Fernando Maurício, Lucília do Carmo, Maria Teresa de Noronha, Alfredo Marceneiro, Carlos do Carmo. “Os clássicos que comecei a cantar desde os 10 anos e que fazia até com que os outros miúdos não compreendessem e gozassem comigo”. Sorri, em forma de perdão concedido, anos depois.
Descobriu o Fado, encontrou o futuro. “Sempre houve fadistas na família. O meu avô por exemplo, cantou na festa de regresso do Gago Coutinho e do Sacadura Cabral da viagem ao Brasil”. Repousa a vista pelos reflexos do Tejo, pelas gaivotas, demasiado distantes para despertar a atenção do Pirata. “Por exemplo, ali na Torre de Belém, aconteceu um dos meus maiores concertos, com vinte mil pessoas. Quando isso acontece fico contente, claro, mas num dia tenho tanta gente e no outro acordo sozinho! Mas não entro em euforia ou depressão, já encaro isso como uma coisa normal, faz parte. Se alguma vez pensei nisto tudo? Não, mas acho que estava destinado, sei lá... Para mim não é uma carreira é um prazer e um privilégio poder viver disto”.



“Sempre de Mim”
Vive sozinho, cozinha bifes com natas, carbonara e frango assado. Não tem discos seus e... nunca canta em casa. “Ouço-os só quando estão prontos, nada mais. Aprendo a cantar na minha cabeça onde encontro a serenidade para contar cada história, é um processo meu, como o de um actor quando compõe a sua personagem... Eu faço o mesmo com cada canção”.
Perde-se com cozido à portuguesa, a sua ementa favorita. “Querem uma cerveja, alguma coisa?”, pergunta o empregado do restaurante. “Não bebo há alguns anos. Quando nascemos temos direito a um tonel de vinho que devemos ir bebendo ao longo da vida.
Eu excedi o meu bastante cedo”. Sorri com o olhar. “Água fresca, por favor”.
O almoço chega. Cozido, “claro!”. A conversa intercala a degustação. “A minha personalidade tem de acompanhar a minha arte, fui sempre pelo lado mais difícil das coisas, nunca me preocupei em vender, apenas em ser...eu!”.
Depois de sete anos sem gravar um disco, “Sempre de Mim”, o novo álbum, que para além dos inéditos que Alain Oulman compôs exclusivamente para Amália Rodrigues, inclui também poemas de Luís de Macedo, outro nome ligado à fadista, falecida em Outubro de 1999. “É uma honra poder gravar temas inéditos do Alain. Sabe que durante estes anos estive sempre a fazer coisas, e este trabalho foi assim nascendo, dentro de mim. Estou contente com ele, estava na altura de o lançar, mas nunca tive uma estratégia para a vida, quanto mais para a carreira! As coisas vão acontecendo e tenho uma certeza, nunca me quero arrepender do que faço, talvez por isso não permita grandes concessões ao que não gosto porque sei bem o que não quero, mesmo que pareça mais fácil. Sempre fui pelo caminho mais difícil!”.
Café, sobremesa, mais uma água, para o caminho.


Lisboa, casa do Fado

Gosta de conduzir rápido. “Mas em segurança claro! Lembro-me que a primeira vez que bati, foi contra um carro da Polícia que estava estacionado... Fiquei duas horas à espera para lhe contar o que se passou, mas deixou-me ir embora”, humoriza.
Bairro Alto. Conhece as ruas, as pedras da calçada, os restaurantes e as casa de Fado. “Desde pequeno que aqui venho, cheguei até a morar cá durante alguns meses, numa altura em que saí de casa, mas foi complicado porque sempre gostei da noite, de me divertir...”.
A cada três passos, abeiram-se dele. “Olhó Camané”. Cumprimentam-no, dão-lhe os parabéns, como se de um amigo se tratasse. Sorri, retribui. Jovens e velhos, taxistas, caminhantes comuns, na estrada, nos passeios e no eléctrico que preenche os postais da velha Lisboa. “Sempre quis conquistar a minha geração! Já estou habituado a que venham ter comigo, gosto das pessoas e acaba também por demonstrar algum reconhecimento pelo que faço, isso deixa-me satisfeito claro”.
Nas ruas apertadas do Bairro, as memórias vão caindo à tona da conversa. “Olha a Tasca do Chico... Conheci-o quando era miúdo”. Mais à frente, o Faia, depois o Luso... De caminho, uma lembrança. “Lembro-me de ir à casa de fados do Rodrigo, quando tinha 15 ou 16 anos ver o Robert Plant dos Led Zepellin! Era fascinante para mim que, naquela época em que eles estavam no auge, ele viesse a Portugal para ouvir o Fado. Sei até que tem guitarras portuguesas que lhe foram oferecidas por um velho mestre, daquele tempo”.
Do passado, recorda ainda o mote que o guiou, às vezes perto, outras na distância breve de um pensamento. “Lembro-me que desde sempre só tive um sonho... cantar o Fado”.
Uma ruas abaixo, na Avenida da Liberdade, e numa escapatória à sua rotina diária, teria a sua primeira reunião como director. A Time Out, convidou-o para assumir uma das suas edições. “É um desafio diferente, eles já fizeram isso em outros países e é sempre uma experiência nova”, conta.


Fado maior

Canta-se o Fado, no silêncio, como é pressuposto, no escuro, como é mais sentido, com o sentimento à solta , como se torna inevitável.
Mesa dos Confrades, casa de Fados, em Alfama, onde a canção surge, natural, como se estivesse em casa. “Hoje não devo cantar. Isso depende do momento, das pessoas que estão, do ambiente... Acontece na altura, e logo vejo”.
Deixou as casas de Fados há mais de uma década, para se concentrar apenas nos palcos, mas de vez em quando regressa, para ouvir e para cantar. “Gosto até mais de ouvir sabe?!”.
Nos intervalos das várias vozes que vão passando pela sala, Amália retoma às palavras. “É a maior! Na voz, no coração que punha na interpretação... Lembro-me da primeira vez que cantei para ela, ficou ao meu lado no palco. Estava nervoso, muito, mas num certo momento de uma canção, ela chamou-me e segredou-me... ´essa voltinha é minha`. Acalmou-me! Se o Fado é mais feminino ou masculino? Acho que é sentimento e isso é comum a todos, é preciso é saber passá-lo para quem nos ouve, a arte reside aí!”.
Pedro Moutinho, o mais novo dos seus dois irmãos, está por ali. As guitarras começam a trinar, em diálogo sonoro. Nos azulejos centenários da sala, o reflexo das velas acesas transporta uma Lisboa sem tempo e sem fim, num brilho intenso que se ilustra em cada olhar de cada um dos que partilham aquele momento. Camané vive-os solitário, sobrevive e acontece ali, naquele lugar que tem o nome de Fado.
De olhos fechados. Muda a expressão, abandona a mesa, sem sair do lugar. Viaja e regressa, com os aplausos que pautam o final de cada história.
De irmão para irmão, Pedro pergunta-lhe... “Queres cantar?!”. “Não!”, responde Camané.
E fecha os olhos... Silêncio.... “Mas qual?”, pergunta, em tom de quem vai aceitar o desafio. Pedro começa o Fado Menor, num instante maior que o espaço de quem o pode sentir...

“És para meu desespero
como as nuvens que andam altas
todos os dias te espero
todos os dias me faltas”


...Dividem as estrofes, alcançam o momento, entre irmãos. Do silêncio, nascem aplausos, numa torrente que se transcende, possível apenas, porque aprisionada no açude do silêncio extremo. Pela noite dentro já, disse que não ia cantar, mas cantou. “O Fado é assim, acontece!”.

Pública,
Abril de 2008

3 comentários:

Anónimo disse...

Excelente

Ana Casanova disse...

Gostei!Gostei de saber mais sobre o Camané que admiro muito e tb da forma como escreves.
Vou voltar mais vezes, concerteza.
Parabéns!

Unknown disse...

Gostei muito. Da maneira simples de contar, mas que permite, ao mesmo tempo, entrar um bocadinho na vida do Camané. É como se estivessemos lá... Gosto muito do trabalho dele e com "Sempre de mim" decobri algo de novo.
Também vou voltar...