abril 15, 2008

Notícias Sábado: Academia de Polícia




A NS mostra-lhe o treino, a preparação e o dia a dia da “Polícia do Futuro”.


Chegam de todo o país ainda jovens, irreverentes, civis. Têm sonhos, querem lutar pela justiça, servir protecção da vida, proporcionar segurança pública. No Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, onde vivem durante cinco anos de internato, primeiros momentos do resto de toda uma vida dedicada ao bem comum, procuram uma carreira estável, de onde sairão com emprego garantido e um vencimento bastante superior à média portuguesa.

Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


Começa cedo o dia na Escola Superior de Polícia de Lisboa. Sete e vinte. Pequeno-almoço. A messe preenche-se num movimento contínuo de rapazes e raparigas ainda com demasiado sono para serem conversadores naturais. Os olhares dissipam-se no vazio típico de quem despertou cedo demais. Muitos chegaram há poucos meses atrás mas já se vão adaptando à nova casa com a ajuda dos mais velhos que os acompanham ao longo dos cinco anos do curso. Até saírem para as ruas, chegará a sua vez de acolher quem chega de novo. Por agora, na confusão do ruído dos talheres e das chávenas de café com leite, encharcam o físico de tenra idade no lanche matutino que lhes vai agitar os corpos e despertar para a primeira formatura da manhã.
Dez minutos antes das oito. Camisa azul clara, calça escura, engomada, cinto alinhado, sapatos pretos de graxa bem polida, pele lavada, sem pelos faciais, nem brincos ou especiais adereços capilares. “Aqui acreditamos que a Polícia tem de demonstrar autoridade, respeito e igualmente ser inspiradora dessa consideração por parte de todos os cidadãos que se dirijam a uma esquadra”, explica o comissário Luís Guerra, agora pertencente ao departamento de Relações Institucionais da Academia, depois de uma comissão de alguns anos a comandar a secção da PSP em Elvas.
A revista segue os preceitos do Exército. Normalmente é efectuada por um dos cadetes de quarto ano, que assim começa a ganhar responsabilidade, “a saber lidar com homens, geri-los nos seus mais vários aspectos”. É uma rapariga quem comanda as operações, uma das poucas por aqui. Sónia Henriques, que, aos 28 anos, decidiu abandonar a Lousã, os amigos e a família e vir “aprender mais no Instituto. Para poder ter um futuro melhor e concretizar o sonho de ser oficial de Polícia. Se ser rapariga é complicado? É igual, somos todos iguais aqui!”.





O que é ser polícia?
Instalada no antigo edifício do Convento do Calvário, em Alcântara, Lisboa, o ISCPSI foi fundado em 1979 com o nome de Escola Superior de Polícia. O objectivo era claro. Formar Oficiais de Polícia civil, a fim de se irem substituindo gradualmente aos Oficiais do Exército que até então desempenhavam as funções de chefia na PSP. Em 1994, o Curso de Formação de Oficiais passou a dar aos seus titulares o grau universitário de Licenciatura em ciências Policiais. Mais tarde, em 1999, na sequência da lei de reorganização da PSP, a Escola passou a denominar-se Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, actual designação.
O super-intendente Machado Silva ainda é desse tempo. “Um dos últimos já!”, solta, olhando nostálgico desde o primeiro andar, a formatura das quatro turmas de cadetes, alinhados sobre o brasão da PSP desenhado na calçada portuguesa do átrio principal. “As coisas eram diferentes, éramos treinados com vocação militar, as condições não eram estas. Aqui tentamos aproveitar o melhor desse tempo, introduzindo novas filosofias”. Quando se começa a desvanecer do imaginário comum, a imagem tradicional do polícia de bigode, camisa esfrangalhada e hálito a cerveja, aqui prepara-se uma nova geração de agentes da autoridade. “Queremos acima de tudo formar pessoas, cidadãos exemplares, homens e mulheres de carácter, cultos, educados, cientificamente preparados, moralmente impolutos. Se reparar, todas essas características são essenciais para qualquer ser humano mas também para a polícia do futuro que, sem estas qualidades, posso dizer de acordo coma minha experiência, nunca chegará a ter uma carreira”.
Na realidade, também esta é uma nova fase da vida de Machado Silva. Nascido no Porto, calcorreou o país, sempre na defesa da Lei, pelo menos até ser nomeado a vir dirigir a Escola, há cerca de ano e meio. Para além da legislação, cabia-lhe agora o papel de implementar os bons costumes, essenciais à sua concretização plena. “É um desafio diferente daquilo a que estava habituado mas acredito neste projecto e na filosofia que aqui temos implantada. Temos de os preparar para uma vida que não será fácil, em que se vão deparar com situações de conflito, com o mundo, com eles próprios, com a morte também. Tentamos dar-lhes as ferramentas para saberem lidar com isso, quando chegar o momento de fazer o que tem de ser feito”, explica.
Por enquanto, vão chegando as aulas para lhes ocupar o tempo e os pensamentos. Toca a campainha que anuncia o dia escolar que se vai iniciar. São agora oito horas de uma manhã ainda fria. Esperam-nos oito horas, repartidas entre a manhã e a tarde, de disciplinas várias. Direito, psicologia, passando por ciência e organização policial, informática, armamento, defesa pessoal ou matemática. E até, Línguas (português, inglês, francês) e Literatura Portuguesa. “Hoje em dia um polícia tem de ser um homem culto, capaz de compreender um mundo em constante evolução. Para isso, e porque grande parte do nosso trabalho tem a ver com comunicação entre colegas e entre cidadãos e forças da autoridade é importante que percebam e saibam expressar-se de forma apropriada à situação que enfrentam”, explica o director educativo, Valente Dias.
Por aqui existem horários para quase tudo, e têm de ser cumpridos. Esse é aliás um dos pontos fundamentais do vigente código de disciplina, caderno de regras que permitirão moldar o carácter destas jovens mentes em função de um objectivo concreto. Querem o destino, sabem quando o alcançarão e isso faz toda a diferença.
“Cultura de Exigência”
A admissão no ISCPSI é bastante exigente. Em 2007 candidataram-se mais de mil pessoas. Poucas mais de três dezenas foram aceites após as provas físicas e intelectuais. Chegam de todo o país. O desemprego, a interioridade, a falta de expectativas de carreira são alguns dos motivos que acabam por os conduzir até aqui. “Promovemos iniciativas de publicitação da Escola por todo o território, em feiras de emprego e principalmente no ensino secundário, onde está o nosso público alvo”, explica o director do Instituto que conta nesta altura com cerca de 130 alunos, a grande maioria, rapazes. No entanto, o número de raparigas tem sido crescente ao longo dos mais de vinte anos do curso. “Notam-se cada vez mais, o que é importante para a própria Polícia”, afirma Machado da Silva.
Nos quatro anos de duração da licenciatura preparar-se-ão para a vida real, para serem oficiais de polícia. O último, o quinto, será passado numa esquadra de polícia de verdade.
É diferente o ambiente escolar por aqui. Através da janela de uma sala de aulas torna-se constatável que a professora não grita, os alunos levantam-se quando ela chega à sala, não falam entre si, têm as mesas arrumadas, não atiram papéis apara o tecto, ouvem música ou afrontam os professores. “Sabe que todo o ambiente aqui é ligeiramente diferente de uma universidade aberta por exemplo. E porquê?! Porque eles vêm para cá com um objectivo, que sabem qual é. Se não o quisessem não o teriam feito. Enquanto que grande parte dos alunos que ingressam no Ensino Superior por exemplo, não sabem o que querem ainda da vida profissional, ou o que os espera. Sabe que a falta de rumo é muitas vezes culpada de uma série de distracções e perdas de tempo que nestas idades são complicadas de gerir”, explica Rocha Machado, professor de psicologia que por estas salas de aula lecciona desde o dia da inauguração instituição, há mais de trinta anos.
Corpo de alunos
O actual edifício da academia de Polícia, resultante da reconstrução após o terramoto de 1755, foi sucessivamente ocupado por diversos estabelecimentos escolares, até que, em 1966, foi atribuído à Escola Prática de Polícia, sendo restaurado e submetido a obras de beneficiação. Em 1995 foram inauguradas as novas instalações, anexas ao antigo complexo, ficando a partir desta data apetrechada com modernas instalações de apoio ao ensino. Um pavilhão desportivo, piscina, ginásio, o maior dojo do país (para a prática de artes marciais), passando por uma carreira de tiro, mas também uma biblioteca e auditório para conferências, mas que também serve de cinema e até para ver futebol aos fins de semana. “Aqui têm tudo o que precisam para serem bons agentes, física e mentalmente. O resto passa-se dentro de cada um deles”, explica Pedro Valente Pinho, director do Corpo de Alunos, uma espécie de organização interna de acompanhamento dos estudantes. “Acreditamos que é importante que tenham o aconselhamento e o apoio dos mais velhos. E porquê? Estamos a falar de pessoas ainda muito jovens, que abandonam o lar, a família, os amigos, por isso tentamos instituir aqui um espírito de família onde nós, os mais experientes e que já passaram por isso, tentamos suprir essa lacuna, que também os ajuda a crescer”.
Hora de almoço. Após a última formatura do dia, a messe volta a encher-se. O ambiente é mais ruidoso que de manhã. Peixe e batatas cozidas servem a ementa de uma refeição pouco apelativa para a maioria dos jovens desta idade. “Não se podem habituar a serem esquisitos com a comida”, graceja o comissário Guerra. Por via das dúvidas, anda sempre um oficial por perto. “Para manter a disciplina e ver se está tudo em ordem”, realça o mesmo graduado.
Por esta altura, nem todos estão a aproveitar as duas horas de pausa a meio do dia para retemperar os estômagos. “Normalmente, eles reúnem-se entre si para fazer algumas actividades durante este período, futsal, ginásio, vóleibol... Até porque tudo isso conta para a nota final do curso porque queremos aqui pessoas que tenham iniciativa própria, que não se cinjam ao programa curricular e queiram, por si próprias evoluir, física e mentalmente”, complementa o comissário que acompanha e incentiva diariamente todas estas acções, “logo desde a chegada” dos futuros polícias à escola.
“Victoria discentium gloria docentium! A vitória dos alunos é a glória dos professores”, complementa Machado Silva com um brilho no olhar, preso na expressão latina que constitui parte do brasão da escola, enquanto presencia os vários grupos de jovens, empenhados nas mais diversificadas tarefas. Tudo em redor é movimento dinâmico, composto de juventude em crescimento. “São o futuro”, complementa.




Visitas “olímpicas”
Tocam as campainhas. Em poucos segundos, as salas de aula voltam a encher-se. Nos largos corredores do recinto, agora mais desanuviados, passeiam-se alguns oficiais da polícia chinesa, acompanhados pela direcção da escola. Li´Wen, chefe da polícia de Tianjin, uma das cidades que estarão abrangidas no projecto olímpico Pequim 2008 permanece atento e observador. É aliás por isso que aqui está, considerando “essencial este tipo de visitas, principalmente para absorvermos o que de melhor se faz noutros países, e isso acontece aqui, com um modelo de formação que verificamos como interessante e do qual retiraremos ensinamentos”, assinala.
O “reitor” da Escola já está habituado, às visitas e aos elogios. “No âmbito da formação permanente, desenvolvemos actividades promovendo conferências de formação para alunos e forças policiais de todo o mundo, recorrendo a personalidades de méritos reconhecidos em diversas matérias, recebendo-os ou mesmo indo até lá, partilhando informação e conhecimento algo essencial no mundo em que vivemos, com as ameaças que existem à segurança das pessoas”, releva Machado Silva.

Dia cheio
A tarde avança. Num dos breves intervalos concedidos, as máquinas de café expresso ficam rapidamente cerceadas por ajuntamentos de jovens fardados querendo maximizar os dez minutos de interrupção lectiva. Artur Loureiro está por ali de conversa com os amigos. Os anos que já passou na Academia trouxeram-lhe um ar mais sério, mais... policial, diz quem o conhece, “e o espelho que não mente”, humoriza. “Já não sou nenhuma criança, sabe?! Tenho trinta e um anos”, começa por dizer. Tem a fama de ser o mais antigo, mas também o melhor aluno da escola. Sorri de embaraço. “Não sei se é assim... ou pelo menos se será no final do curso, porque aqui tudo conta para a nota final, os exames, a atitude, se calhar até esta entrevista”, assinala. Daqui a um ano estará numa esquadra a lidar com a realidade das ruas, mas o medo das “coisas más”, não lhe tira a vontade de cumprir um destino que é seu “desde pequenino. Sou um daqueles que entrou na escola por já fazer parte da PSP. No entanto e se olhar para estes quatro anos que aqui passei, sinto que mudei muito, cresci, sou uma pessoa diferente! E se algum dia, por acaso tiver de acontecer algo de mau, pois então que seja a fazer o que gosto de fazer, no cumprimento do meu trabalho a ajudar o cidadão”.
A seu lado, um cadete de primeiro ano. Tímido, de olhar fixo para baixo, em sinal de respeito. Embaraçado pela idade. Dezanove anos. Chegou há pouco mais de seis meses. “Sempre foi o que quis fazer, sabe?! E porquê? Porque quero ajudar as pessoas!”, declara com um tom tão marcial, quanto ainda marcado pela verdura do tempo de vida. A Tânia António está na mesma situação. Tem-se adaptado, apesar das saudades da família e das nódoas negras. “Tem sido uma experiência positiva, mas temos sido bem tratados e devemos agradecer por nos terem acolhido. Claro que é duro, mas tem de ser para ficarmos preparados para sermos bons polícias”, declara, quase em tom de encorajamento a si própria. “Vou ser polícia um dia, é o meu sonho”.
Nos pisos superiores, as camaratas não são luxuosas, longe disso. Alguns livros nas cabeceiras, fotografias da família, da namorada, do animal de estimação. Um toque pessoal numa pequena habitação partilhada com mais três ou quatro colegas do mesmo sexo. No entanto os aposentos vão melhorando à medida que se vão ultrapassando os anos lectivos. “Para incentivar o aproveitamento e a melhoria dos conhecimentos, todos os anos mudam para um quarto melhor”, explica o comissário Guerra. Não existem televisões nem grandes distracções. “A ideia aqui é que não se formem grupos, e para isso a sua vida tem de ser feita na academia e não no interior de cada quarto. Aliás, todos os anos mudamos os colegas de divisão, precisamente para que todos se dêem bem”, releva.

Último toque
São cinco horas da tarde. O pátio enche-se de novo com o bulício típico de quase centena e meia de jovens atarefados. Apesar das aulas só regressarem amanhã, o dia ainda não acabou, longe disso. O comissário Pinho sorri de orgulho, perante a movimentação simultaneamente desordenada em direcção ao ginásio, à biblioteca, aos cacifos, para ir correr, estudar ou andar de bicicleta. “A partir desta hora eles é que decidem o que fazer. Normalmente juntam-se em grupos e definem as actividades a praticar. Podem organizar um congresso, uma corrida de angariação de fundos, ou um torneio de um qualquer desporto. O importante é que não são obrigados a isso, mas todos o fazem porque sabem que contribui para o seu crescimento, para o seu bem, o que, numa escola tão especial como esta, será o bem de todos nós não é verdade?”.
Quando regressarem, terão o jantar à espera. A noite já escureceu lá fora. O cansaço é um adjectivo comum, que se nota ainda, já sem se notar tanto como nos primeiros dias. “Estamos habituados! E é assim que tem de ser não é?! Temos de aproveitar, dar o máximo todos os dias”, vai murmurando um aluno, entre as colheres de sopa com miolo de pão que lhe fazem lembrar a casa onde cresceu.
Daí a pouco, juntar-se-ão a ver um pouco de televisão. Conversam sobre o dia que passou, de coisas triviais, da vida, da juventude, das aulas, de namorados, amigas especiais... apesar de essas apenas poderem estar lá fora por não serem permitidos aqui relacionamentos que ultrapassem o companheirismo profissional. As regras da casa não ditam recolher obrigatório mas “aconselham” a um reerguer madrugador, esse, escrupulosamente cumprido, de segunda a sexta, para depois recomeçar tudo, uma e outra vez.

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Raízes

A PSP tem origens bastante profundas no tempo, remontando aos antigos Quadrilheiros da Idade Média, os primeiros polícias de Portugal. Depois organizaram-se na Intendência-Geral da Polícia da Corte e do Reino, criada em 1780. Posteriormente as suas raízes ganharam contornos mais oficiais com a criação da Polícia Civil, em 1867. No entanto, o actual nome de Polícia de Segurança Pública seria apenas adoptado na década de trinta do século passado, aquando da reorganização da então denominada Polícia Cívica.


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Admissão

Para entrar na Escola é necessário ser-se português, ter menos de 21 anos, 1,65 metros de altura para os homens e 1,60 para as mulheres e, entre outros, ter aprovação no secundário e nota de candidatura igual ou superior a 10 valores. Depois, há um outro conjunto de alunos, provenientes da própria PSP, que até aos 28 anos podem concorrer ao curso, apesar de terem de ultrapassar os mesmos obstáculos de todos os outros. Há ainda um outro contingente, proveniente dos PALOPS, cujos países de origem os enviam para adquirir conhecimentos e depois reforçar as próprias forças de segurança.


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Os números
- Desde 1986 ano de abertura do curso, do ISCPSI já saíram cerca de 800 oficiais de Polícia.
-Com o tratado de Bolonha, ao fim dos cinco anos do curso os alunos terão uma licenciatura e uma pós-graduação. Depois, serão destacados para comandar esquadras de Polícia de todo o país.
-O corpo docente é constituído na sua maioria por professores da sociedade civil.
-Ao longo dos cinco anos de curso, os alunos não pagam qualquer propina. Têm dormida e alimentação assegurada e recebem uma bolsa de estudo de cerca de 200 euros que vai aumentando com o decorrer da licenciatura.
-Cerca de 25 alunos provenientes de países de língua oficial portuguesa estão neste momento a frequentar o curso de Polícia.


Notícias Sábado,
Capa,
Março de 2008

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