setembro 12, 2008

Notícias Sábado:: Zé Perdigão

“O Fado nasce connosco, não se aprende”
 

Na primeira entrevista da sua ainda curta carreira, a NS levou a nova voz do Fado pelas ruas estreitas de Alfama, a cantar por alguns dos lugares mais típicos da velha Lisboa dos bairros populares, onde o fado se passeia vadio, há mais de um século.

Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira



Nasceu um fadista. Zé Perdigão, abreviativo artístico de José, “porque o fado é para ser do povo e para o povo”, não é de Alfama ou da Mouraria, nunca cantou em casas de fado, não conhece de cor os meandros e as ruelas do fado vadio, mas sente-o, como se fosse o seu, sem o ser, quando começa a trinar a primeira guitarra.
Tem tanta força na expressão com que canta que quase nos deixa desconfortáveis na cadeira, enquanto o silêncio que se pede, sem que se ordene por palavras, é quebrado por figuras de estilo em formas de espanto, de inquietude e olhares que se preenchem não se sabe bem do quê, mas que brilham logo a partir da primeira sílaba. E começa a murmurar-se na sala que se torna mais quente e apertada, enquanto as emoções tomam conta, primeiro do espaço e depois do interior de cada um.
As referências de Zé Perdigão remontam ao fado e à música étnica. Aos 28 anos, lança-se no mercado discográfico com “Os Fados do Rock”, onde transporta para o fado, as canções de um imaginário comum onde, à primeira vista, a guitarra portuguesa não tinha lugar marcado. Dos Gift a Jorge Palma, dos Chutos & Pontapés aos Rádio Macau... “Então e porque não?!”.
José Cid, que o descobriu por acaso, num final de tarde em Guimarães, nunca mais o perdeu de vista. “É algo raro... De vez em quando aparece gente a cantar assim que se há-de fazer!”. Zé sorri, sobe ao palco, canta.



“Fados do Rock” é pensado para passar bem na rádio...
Sim, é verdade, porque mesmo os mais consagrados têm dificuldade em fazerem-se ouvir na rádio e na televisão. Estou a ter uma boa aceitação até agora. Tenho tido uma mescla de reacções de várias faixas etárias, do miúdo de oito anos que gosta de ouvir, ao avô de oitenta, que adorou.


Tem noção de que se arrisca a ser criticado pelos mais puristas. É de Guimarães, não tem a aparência tradicional de um fadista e, inicia a sua carreira com um álbum chamado “Fados do Rock”...

Já pedi e peço desculpa aos mais tradicionalistas por esta ousadia. Mas ela parte de um produtor com 50 anos de música em Portugal, com uma tecitura musical que vai do étnico ao rock sinfónico, com provas dadas internacionalmente, o único com um disco classificado pela Billboard entre os melhores do mundo de rock sinfónico (10 Mil Anos Depois Entre Vénus e Marte). Um homem que tem todo o direito a ser ousado, para que o fado aconteça de uma forma progressiva. Chamo-lhe fado canção, sou simples, e aceito as criticas com humildade.


É em quase tudo, um fadista diferente do habitual... Até a postura é diferente, da comum, consegue explicar isso?

Se ser fadista é meter as mãos aos bolsos... Eu não sou assim, tenho necessidade de me expressar, entrego-me totalmente ao que estou a fazer, nem sei como as coisas acontecem! Faço gestos incontidos, que surgem no momento.


Como o ouvem, a sua família e aqueles que são mais próximos de si?
O meu pai morreu há alguns meses... Sentia-se orgulhoso de mim. A minha mãe é diferente, sempre achou que estas coisas da música não eram trabalho sério! Acho que acreditava no dom que eu tinha mas, também sabia que ser músico em Portugal não é profissão. Queria que fosse qualquer coisa de gabinete, funcionário de uma câmara municipal... (sorri)

Ao contrário do palco, parece-me introvertido...
Sempre lutei muito sozinho, houve alturas em que não senti o apoio de ninguém. Habituei-me a isso... No palco é diferente, não sou eu, é qualquer coisa de transcendente, que por vezes tenho receio de questionar, acontece apenas, não me pertence.


Agrada-lhe este ambiente de uma casa de fado?

Gosto de ir a casas de fado, são fontes necessárias para alimentar a alma, mas por sistema não. Ir ao fado é como o cristão ir à missa, é preciso sentir a necessidade de ir beber àquela fonte.


Lembra-se do primeiro fado que aprendeu a cantar?

Ah... Estranha Forma de Vida!

E continua a ser especial para si, calculo...
É um fado que me toca bastante, na literatura, na composição musical, no sentimento... E depois porque ser fadista é de facto uma estranha forma de vida, em todos os aspectos.

Então?
Ser fadista não é quem quer... Não se aprende a ser fadista, já está connosco desde que se nasce, não é como a matemática.

Não pensa que por ser de Guimarães, e não de Lisboa, a forma como interpreta o fado não se encontre com a matriz original da canção?
Para mim o fado é mais do que isso. Tem a ver com uma mescla cultural, que emana da nossa história ancestral, que se encontra quase misticamente nesta nossa canção. É muito mais que Lisboa ou Coimbra, é uma portugalidade maior, um reino que não se resume sequer ao nosso país, é universal.

E onde se encontra o verdadeiro Zé Perdigão?
É no fado canção que eu me acho a mim mesmo, onde me sinto bem, no melhor de mim. Foi daqui que eu parti para um primeiro trabalho de gravação, tinha de me sentir confortável a fazer o que faço, o futuro será depois.

Gostaria de interpretar os grandes poetas portugueses?
Num outro trabalho quero ir por aí sim, pelos clássicos e pelos novos poetas portugueses. Tenho uma preferência pelo Pessoa, parece quase inatingível, qualquer coisa de transcendental na nossa literatura, muito à frente do seu tempo, ainda hoje o é. Gostaria de representar algo semelhante no meio onde me encontro.


Não será colocar a fasquia um pouco elevada de mais?

Gosto de desafios, não de pisar o risco. Esse é um grande desafio de facto, tenho plena consciência disso. Não vou deixar que nada do que me agrade me passe ao lado, só se vive uma vez e eu gosto de viver.


Aplica esse principio no dia a dia e transporta-o para o palco consigo?

Sim. Amo a vida que tenho e aquilo que faço...


O que é o fado para si?

É uma forma de vida, estranha também, mas para além disso a melhor maneira de contar aquilo que somos enquanto país, enquanto pessoas. Se alguém se esquecer um dia de escrever a nossa história, o fado encarregar-se-á de dizer o que nós somos enquanto sociedade.


E o que lhe dá mais prazer nisto tudo?

Isso mesmo, cantar e contar um povo com a sua própria musicalidade!


Tem referências que lhe sejam especialmente marcantes?

Todos são importantes para que esteja aqui hoje. De Alfredo Marceneiro até à nova geração...todos. Ser sectário aqui é errado. Todos são diferentes, por exemplo, Marceneiro era alma por todo lado, Hermínia Silva era a fadista das coisas populares e alegres, Amália é a eterna de grandes poemas e de grandes fados canção, muitos quase étnicos também... Lembro-me que ela chegava a Itália e cantava canções tradicionais de lá, fazia isso em quase todos os países, recordo-me de ´Summertime` na sua voz... Pergunto-me se isto é fado? É, na voz dela era! Na voz de um português fadista, qualquer tema é fado!


Tem a noção de que quando começa a cantar, as pessoas o sentem de uma forma pouco comum, muitas começam até a chorar, até porque a maioria não o conhece...?

Sim, acontece-me frequentemente. Não sei se é a voz, se a presença... Como canto de olhos fechados, não me apercebo tanto disso, mas é verdade sim, às vezes tenho de me isolar um pouco de quem está à minha frente para a minha voz não ficar embargada. Nesse momento, concentro-me totalmente, no que estou a fazer, não estou a debitar, sinto-o de uma forma que não consigo explicar... Nunca canto o mesmo fado duas vezes, da mesma maneira. Deixo-me levar pelo momento, apenas.

É verdade que, quando aos sete anos entrou para o Orfeão de Guimarães, a missa de domingo começou a encher-se de pessoas que o iam ver cantar?
(Sorri e olha timidamente para baixo). Nunca perguntei a ninguém porque choravam quando me ouviam, não tenho essa ousadia...


O fado está na moda?

Não, nunca sequer passou de moda, é nosso e se outros estilos musicais podem passar, o fado não! Quem interpreta apenas faz isso, o guitarrista toca, o compositor compõe... Até nisso é democrático.

Começa a ser uma figura pública, já pensou como irá lidar com essa exposição, nova para si?
Há pessoas que vêm falar comigo, fazem muitas perguntas. Não as conheço, mas elas conhecem-me a mim e falo com elas, sem problema nenhum. Há uma oração que faço todos os dias de manhã... Peço a Deus que me conserve humilde, que me mantenha assim, que não me deixe estragar, que me dê paz.

É uma pessoa de fé?
Se ser praticante é cumprir os valores, sou sim.

E agora?
Tenho espectáculos marcados, estou a começar, e a gostar de toda esta nova realidade que é nova para mim. A minha vida mudou completamente, deixei Guimarães, tenho menos tempo para a família, para os amigos mas... nasci para isto!

Legendas:
No Clube de Fado canta pela primeira vez ao lado de Fontes Rocha, histórico guitarrista que acompanhou Amália.

Na Casa fermentação, no Largo de São Rafael, em Alfama. “Estranha Forma de Vida”, reinterpreta “o primeiro fado” da sua vida.

Notícias Sábado, Agosto de 2008

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