setembro 28, 2006

Homens sem passado



Angola ocupa a maior parte das suas palavras, até na forma como as traduz para o mundo, com aquele sorriso que lhes coloca, mesmo antes de as imprimir na realidade, como habita nos seus livros… Angola democrática, Angola desenvolvida, Angola desigual, filha de uma África ferida, de uma colónia já longínqua, sobrevivente, persistente nos resquícios da guerra, mas onde também já se soltam, naquele horizonte que nunca acaba, as primeiras centelhas de esperança.
Predadores, ou os homens sem passado usurpadores do futuro, na nova obra de Pepetela.


Por,
Pedro Cativelos



Conte-me a história destes Predadores!

Eu tenho tentado registar um pouco do percurso de Angola, e este livro surge como a tentativa de retratar um grupo social que só apareceu depois da independência, e ao qual podemos chamar de uma nova burguesia, que se vai enriquecendo através de negócios mais ou menos ligados ao aparelho de Estado. Fundamentalmente é isso. O facto que é novo aqui, é que esta nova classe social, é de facto recente na nossa sociedade, e tem pouco a ver com a burguesia colonial, porque esta é eminentemente constituída por cidadãos angolanos.

E a corrupção acaba por ter um papel principal, numa máquina, chamemos-lhe assim, que tem como participantes não só os angolanos?
Esta burguesia angolana, e neste conceito cabem também muitos estrangeiros, incluindo portugueses, tem a ver com a ideia de que hoje, Angola é um sitio onde um certo tipo de pessoas pode enriquecer facilmente, se estiver nos sitio certo com as pessoas certas.
O livro aborda no fundo a ascensão de uma personagem-tipo, alguém que representa um grupo social emergente da independência. São os últimos 30 anos da vida de Vladimiro Caposso, uma história, um pretexto para contar a história de Angola.

Mas este quadro que descreve no livro, este panorama, não é alheio ao seu MPLA?
Já deixei o MPLA há muitos anos. Provavelmente haveria um modelo de desenvolvimento mais justo para o país, gerador de uma sociedade mais equilibrada do que aquela do tempo colonial. Por isso lutámos pela independência, mas houveram tantas interferências externas, muitas contingências resultantes de muitos poderes envolvidos, e muitos erros que nos fazem ser um país independente sim, mas com uma sociedade extremamente polarizada onde há um pequeno grupo muito rico e um grande número de pessoas a viver miseravelmente.

Todavia, e à distância de um continente, chegam os ventos que trazem notícias de esperança no desenvolvimento de Angola, havendo agora uma ideia generalizada de que aquele gigante africano começa agora a erguer-se…
Ultimamente, e especialmente depois da paz, e lamento que só depois de tantas mortes, ela tenha sido efectiva morrendo uma das duas pessoas que faziam a guerra…. Mas é o que se costuma dizer, que por vezes há mortes que vêm por bem! Obviamente que isto é uma ironia, mas o que é facto é que a guerra acabou logo. No entanto, nesse momento em que a paz se concretizou, as pessoas começaram a acreditar mais, e a visão de uma Angola como uma terra de oportunidade aumentou e solidificou-se.
Tornou-se fácil constituir e implementar empresas, o que fez com que verificasse um massivo investimento estrangeiro, que se traduziu também no regresso de muitos angolanos, principalmente jovens que tinham ido para o estrangeiro estudar ou trabalhar.


Mas apesar de tudo, verifica-se uma mudança, ou pelo menos, pressentem-se os primeiros sinais de uma melhoria social…

Do ponto de vista financeiro, económico, está tudo a andar muito depressa. O PIB cresceu 15% o ano passado! É um recorde mundial, este ano vai aumentar ainda mais, a inflação está perfeitamente dominada e há muito investimento estrangeiro! Estas são as boas notícias.
Mas com 13 anos de paz, julgo que já se poderiam ter feito mais coisas. Acho que está a haver um atraso enorme em determinados aspectos, como as vias de comunicação, por exemplo, para unir o país e desenvolver a agricultura.
Mas há indicadores, que aqui em Portugal se chama de macroeconómicos, palavra bonita esta, que são optimistas. Creio que daqui a alguns anos já se poderão ver os primeiros sinais de todo este desenvolvimento.

Todavia não me parece ainda satisfeito, longe disso até…
Mas de tudo isto não se sente ainda qualquer influência na sociedade, aí é que está! Continuam a haver as mesmas diferenças sociais, a mesma miséria, os mesmos ricos, a gastarem compulsivamente enquanto o resto da população vive mal, os cuidados de saúde, péssimos, o ensino continua fraco. Estamos a partir de tão baixo, que qualquer desenvolvimento é um salto grande.
No entanto também não vejo razões para ser pessimista… Sinto que o país está a caminhar agora com um certo ritmo de crescimento! O próximo ano é muito importante, por causa das eleições. São decisivas mesmo para o nosso futuro enquanto angolanos. Ganhe quem ganhar, é importante que corram bem, que sejam limpas e que não haja contestação! Sabe que há uma parte da população que tem medo de votar, porque acha que depois das eleições vai haver guerra!

O MPLA acaba por ser o único partido com dimensão governativa, por assim dizer?
Em Luanda podem haver surpresas, talvez o MPLA não venha a ter as maiorias que pensa ter, mas no resto do país ganhará esmagadoramente.
Até porque a oposição é muito fraca! É assim como a mangueira, a árvore que dá mangas. A folhagem é tanta e tão espessa, que o sol não passa. Em baixo de uma mangueira não cresce nada! O MPLA é um bocado assim! Os outros partidos da são ínfimos e mal organizados, a UNITA continua a ser o grande partido de oposição, mas perdeu muita influência.

Há ainda uma enorme diferença entre Luanda e o resto do país?
É verdade. Basta dizer que consome mais de 50% do orçamento geral do estado! Luanda tem quase um terço da população de Angola. Metade dos angolanos vivem na faixa litoral. No fundo temos um país quase vazio por dentro.

Como é que Angola o lê?
Os meus livros são bem recebidos. Acredito que algumas pessoas ligadas ao poder possam porventura não gostar de algumas personagens que fui criando! Mas acho que ao nível da população são bem recebidos.
È preciso não esquecer que os livros são um luxo extremamente caro em relação ao salário médio! Só uma minoria pode comprar e ler livros! E em relação ao limite legal do salário mínimo, ninguém se preocupa, é formal, é para a função pública…

Então e fora da função pública?
Paga-se menos que isso ainda! (esboça a ironia com um sorriso)

Luanda continua sendo uma das cidades do mundo onde o custo de vida é mais elevado…
As Nações Unidas fizeram um estudo sobre as capitais mais caras do mundo e Luanda era a segunda, atrás de Tóquio! Para um país onde a população é miserável, e os que têm tempo não o podem desviar dos negócios, porque tempo é dinheiro, ninguém pode comprar livros!

E esses, logo os que tinham dinheiro, são os visados pela ironia frontal deste novo livro!
Ainda por cima! Mas como acham que isso é sempre a falar do vizinho do lado… (lança uma sonora gargalhada!).
Falando um pouco mais a sério, é este o problema dos livros, são sobretudo os jovens que os procuram, mas são esses mesmos jovens que não têm dinheiro, nem sequer bibliotecas onde possam ler! Isto reflecte um pouco um dos nossos dramas, de uma juventude com poucos hábitos de leitura.

Prossegue na sua aventura de professor?
Sou professor de sociologia para arquitectos urbanísticos. Normalmente uma parte deles, quando se formam, conseguem ser arquitectos, uma minoria, a maior parte não o consegue e acaba por entrar no aparelho de estado. O meu curso é uma espécie de anti-política urbana actual! E é interessante que eles depois vão para o estado e começam a autorizar construções e a promover isto e aquilo, e eu nunca estou de acordo com aquilo! Então, quando os encontro digo-lhes, “ eu não te formei para isso que andas aí a fazer!”.
É esta ligação que me prende ao que faço. Fico a conhecer os jovens, mantenho-me perto das suas experiências, das suas frustrações, das suas lutas, que utilizo como material para mim, como pessoa, e como escritor também obviamente.


Regressando um pouco ao campo das letras… Esta aparente mudança de estilo, de Jaime Bunda para os Predadores, como a explica?

O Jaime Bunda no fundo era mais humorado, funcionando como sátira. De vez em quando gosto de fazer outras coisas, diferentes! No fundo preciso de ir mudando, para evitar a repetição! Apesar do tom ser diferente, sou capaz de encontrar uma sequência entre o Mayombo a Geração da Utopia e este…é mais ou menos o mesmo tipo de narrativa, e embora diferentes, funcionam como o registo da evolução de uma sociedade durante uma certa época.

Essa incursão nos policiais foi assumida como uma forma de tentar captar novos leitores. Resultou?
Parece-me que sim, muitos jovens leram esses livros e interessaram-se depois por outros que eu tinha escrito.

Como funciona a sua rotina de escritor?
Quando começo um livro, trabalho-o até o acabar, sem interrupções. Normalmente escrevo de manhã, até ao meio-dia, nalguns caso, raros, continuo à tarde. À noite é que nunca… o que até é estranho porque os primeiros livros foram sempre escritos à noite. Mas depois, a partir do momento em que ganhei uma certa independência, comecei a dispor das manhãs para mim e para os meus livros.
Escrevo todos os dias, excepto ao Domingo. Domingo é dia de praia! Para ser verdadeiro, às vezes Sábado também é dia de praia, que já não fica a 5 minutos de casa, como dantes, por causa do trânsito…

E o Verão é quase uma constante…
No Inverno as praias estão cheias de estrangeiros… A água está aí a uns 20 graus, o que para nós é frio! Quando os russos entram na água até sai fumo (um grande sorriso!).


Angola é um pedaço de chão, conde cabem todos os pedaços do mundo?
Temos desde a floresta equatorial até ao deserto! Todas as paisagens do mundo, grandes planaltos, grande parte do país está a mais de mil metros de altitude ou mais, montanhas, rios, tantos, floresta… Neste aspecto é brilhante! Quanto ao clima, temos o calor do norte e do litoral, e o frio do interior, que chega mesmo a ser muito, muito frio. Há uma grande diversidade, em tudo, por exemplo nos tipos de agricultura, da tropical à mediterrânica.

Sei que, ao contrário da opinião da esmagadora maioria dos angolanos, não lhe agrada muito a ideia de ver Angola no mundial de futebol. Porquê?
Os dias que se seguirão ao jogo que decidiu o apuramento da nossa selecção, foram de facto fantásticos! Gerou-se um espírito de enorme unidade nacional, de alegria, foi uma festa colectiva e nesse aspecto foi muito bom.
Quando faltavam poucos segundos para acabar o jogo saí de casa para ir festejar. No momento do apito do final do jogo, e isto de que lhe falo não é uma imagem literária, ouvi a cidade a gritar! Fiquei arrepiado, e por segundos achei que valia a pena.
No entanto os aspectos negativos vêm agora. Eu sei que isto é politicamente incorrecto, mas o que é verdade é que Angola joga mal, não tem grandes jogadores, e vai gastar-se muito dinheiro com tudo isto! Até porque à margem surge toda uma gente a aproveitar-se deste dinheiro, para viajar e viver bem à custa do Estado!


Da última vez que havíamos conversado, há cerca de dois anos, referia-me que observava os portugueses um pouco tristes, em relação a visitas anteriores que havia feito ao nosso país. E agora, como nos encontra?
Se dantes estavam tristes, agora estão deprimidos! Mas em princípio, como já se bateu no fundo, e como se diz em Angola, é sempre a subir! (sorri)
Mas um pouco mais a sério, se vier de Espanha para aqui nota-se a diferença. Os espanhóis riem-se com muito mais gargalhadas, falam alto, estão muito mais bem dispostos que os portugueses. È um aspecto da cultura dos povos, e aliás é uma tremenda defesa psicológica ser capaz de rir em qualquer sitio, em qualquer circunstância, mesmo da morte. Aliás no caso de Angola, uma das armas que tivemos para resistir ao longo dos tempos foi a capacidade de rir de nós próprios.
Nós dançamos e cantamos nos funerais! E agora levam umas colunas de não sei quantos décibeis, que barulheira…!
Continuo a notar uma diferença na sociedade portuguesa em relação há 6, 7 anos atrás, altura em que os portugueses me pareciam um pouco mais exuberantes, devido à integração europeia. Isso notava-se no metro, falava-se mais alto…há dois anos pressenti uma certa tristeza no ar, e agora também…

Estando quase a terminar a nossa conversa, não posso deixar de lhe perguntar como se sente hoje, nos dias que correm, Feliz?
Estou bem! Com o país… (engelha a face) Esperamos sempre mais! Mas também temos de arranjar uma maneira de refilar, sempre! A indignação é saudável, sabe?! De um modo geral acho que as coisas irão melhorar!
Mas posso dizer que estou razoavelmente Feliz, sim. Não com aqueles dramas existenciais, não muito preocupado com o mundo… O que é verdade é que já não tenho grandes ilusões sobre o mundo! As pessoas são como são, a sua natureza é como é…


Predadores
Pepetela
Dom Quixote

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