abril 20, 2008

Pública: Um dia com... Camané



“O Fado é assim, acontece!”


A música é o lugar onde se encontra na maior parte do tempo. É lá que ganha forma e ecos, numa espécie de equação matemática viajante sem destino, onde as variantes são letra e sentido, história, canção, regresso e saudade... O resto não se explica, sente-se, em silêncio, sempre que o Fado canta.


Texto
Pedro Cativelos

Fotografia
Patrícia de Melo Moreira



“Queres cantar?!”. “Não!”. E fecha os olhos. Com o sobrolho trancado pelas mãos que aprisionam os pensamentos que não escapam para o mundo, para lá do universo que se forma e que o faz cativo, quando a primeira guitarra exala a primeira nota, de um Fado, que se parece sempre com o primeiro...


Tejo, álbum de recordações
“Pirata, anda cá....”. Levanta-se por volta das 11 horas, normalmente toma um café, circula o quarteirão, compra o jornal. Mas não anda sozinho. “Pirata...!”. Lança em tom de aviso. E ele, companhia de há dois anos, obedece . “Num estúdio onde fui gravar, lá estava, pequeno ainda... Trouxe-o! Dá trabalho claro, e exige responsabilidade, mas gosto dele”.
Enquanto isto, o Pirata, pela mancha escura que lhe forma o desenho de uma pala numa das vistas, entretém-se atrás das gaivotas, dos pombos e de tudo o que lhe suscita a curiosidade canina.
No banco de jardim onde se costuma sentar, o sol da Primavera ilumina o Tejo em frente, como quadro sobrevivente dos fados e dos poetas que inspirou, do povo que nele se lavou e sobre ele cantou, durante séculos. Amália surge na conversa, pela primeira vez ao longo do dia, assim como as memórias que o rio presenciou desde sempre, algumas boas, outras nem tanto. “Faz tudo parte da vida não é?! Isso é importante para se conhecer também o Fado, saber o que é a vida. Acredito que é como um bom vinho, é preciso ter algum crescimento, ser adulto, para o perceber e deixar entrar dentro de nós”.
Carlos Manuel Moutinho Paiva dos Santos Duarte. Assim baptizado à nascença, quase de berço lhe chamaram Camané. “Sim, é uma coisa que vem desde miúdo, sempre fui conhecido assim por toda a gente”.
O primeiro contacto com o Fado aconteceu num acaso, quando durante a recuperação de uma doença infantil que o obrigou a ficar em casa por algumas semanas e, sem nada para fazer, começou a ouvir a colecção de discos dos pais. Era desta forma apresentado a Amália, Fernando Maurício, Lucília do Carmo, Maria Teresa de Noronha, Alfredo Marceneiro, Carlos do Carmo. “Os clássicos que comecei a cantar desde os 10 anos e que fazia até com que os outros miúdos não compreendessem e gozassem comigo”. Sorri, em forma de perdão concedido, anos depois.
Descobriu o Fado, encontrou o futuro. “Sempre houve fadistas na família. O meu avô por exemplo, cantou na festa de regresso do Gago Coutinho e do Sacadura Cabral da viagem ao Brasil”. Repousa a vista pelos reflexos do Tejo, pelas gaivotas, demasiado distantes para despertar a atenção do Pirata. “Por exemplo, ali na Torre de Belém, aconteceu um dos meus maiores concertos, com vinte mil pessoas. Quando isso acontece fico contente, claro, mas num dia tenho tanta gente e no outro acordo sozinho! Mas não entro em euforia ou depressão, já encaro isso como uma coisa normal, faz parte. Se alguma vez pensei nisto tudo? Não, mas acho que estava destinado, sei lá... Para mim não é uma carreira é um prazer e um privilégio poder viver disto”.



“Sempre de Mim”
Vive sozinho, cozinha bifes com natas, carbonara e frango assado. Não tem discos seus e... nunca canta em casa. “Ouço-os só quando estão prontos, nada mais. Aprendo a cantar na minha cabeça onde encontro a serenidade para contar cada história, é um processo meu, como o de um actor quando compõe a sua personagem... Eu faço o mesmo com cada canção”.
Perde-se com cozido à portuguesa, a sua ementa favorita. “Querem uma cerveja, alguma coisa?”, pergunta o empregado do restaurante. “Não bebo há alguns anos. Quando nascemos temos direito a um tonel de vinho que devemos ir bebendo ao longo da vida.
Eu excedi o meu bastante cedo”. Sorri com o olhar. “Água fresca, por favor”.
O almoço chega. Cozido, “claro!”. A conversa intercala a degustação. “A minha personalidade tem de acompanhar a minha arte, fui sempre pelo lado mais difícil das coisas, nunca me preocupei em vender, apenas em ser...eu!”.
Depois de sete anos sem gravar um disco, “Sempre de Mim”, o novo álbum, que para além dos inéditos que Alain Oulman compôs exclusivamente para Amália Rodrigues, inclui também poemas de Luís de Macedo, outro nome ligado à fadista, falecida em Outubro de 1999. “É uma honra poder gravar temas inéditos do Alain. Sabe que durante estes anos estive sempre a fazer coisas, e este trabalho foi assim nascendo, dentro de mim. Estou contente com ele, estava na altura de o lançar, mas nunca tive uma estratégia para a vida, quanto mais para a carreira! As coisas vão acontecendo e tenho uma certeza, nunca me quero arrepender do que faço, talvez por isso não permita grandes concessões ao que não gosto porque sei bem o que não quero, mesmo que pareça mais fácil. Sempre fui pelo caminho mais difícil!”.
Café, sobremesa, mais uma água, para o caminho.


Lisboa, casa do Fado

Gosta de conduzir rápido. “Mas em segurança claro! Lembro-me que a primeira vez que bati, foi contra um carro da Polícia que estava estacionado... Fiquei duas horas à espera para lhe contar o que se passou, mas deixou-me ir embora”, humoriza.
Bairro Alto. Conhece as ruas, as pedras da calçada, os restaurantes e as casa de Fado. “Desde pequeno que aqui venho, cheguei até a morar cá durante alguns meses, numa altura em que saí de casa, mas foi complicado porque sempre gostei da noite, de me divertir...”.
A cada três passos, abeiram-se dele. “Olhó Camané”. Cumprimentam-no, dão-lhe os parabéns, como se de um amigo se tratasse. Sorri, retribui. Jovens e velhos, taxistas, caminhantes comuns, na estrada, nos passeios e no eléctrico que preenche os postais da velha Lisboa. “Sempre quis conquistar a minha geração! Já estou habituado a que venham ter comigo, gosto das pessoas e acaba também por demonstrar algum reconhecimento pelo que faço, isso deixa-me satisfeito claro”.
Nas ruas apertadas do Bairro, as memórias vão caindo à tona da conversa. “Olha a Tasca do Chico... Conheci-o quando era miúdo”. Mais à frente, o Faia, depois o Luso... De caminho, uma lembrança. “Lembro-me de ir à casa de fados do Rodrigo, quando tinha 15 ou 16 anos ver o Robert Plant dos Led Zepellin! Era fascinante para mim que, naquela época em que eles estavam no auge, ele viesse a Portugal para ouvir o Fado. Sei até que tem guitarras portuguesas que lhe foram oferecidas por um velho mestre, daquele tempo”.
Do passado, recorda ainda o mote que o guiou, às vezes perto, outras na distância breve de um pensamento. “Lembro-me que desde sempre só tive um sonho... cantar o Fado”.
Uma ruas abaixo, na Avenida da Liberdade, e numa escapatória à sua rotina diária, teria a sua primeira reunião como director. A Time Out, convidou-o para assumir uma das suas edições. “É um desafio diferente, eles já fizeram isso em outros países e é sempre uma experiência nova”, conta.


Fado maior

Canta-se o Fado, no silêncio, como é pressuposto, no escuro, como é mais sentido, com o sentimento à solta , como se torna inevitável.
Mesa dos Confrades, casa de Fados, em Alfama, onde a canção surge, natural, como se estivesse em casa. “Hoje não devo cantar. Isso depende do momento, das pessoas que estão, do ambiente... Acontece na altura, e logo vejo”.
Deixou as casas de Fados há mais de uma década, para se concentrar apenas nos palcos, mas de vez em quando regressa, para ouvir e para cantar. “Gosto até mais de ouvir sabe?!”.
Nos intervalos das várias vozes que vão passando pela sala, Amália retoma às palavras. “É a maior! Na voz, no coração que punha na interpretação... Lembro-me da primeira vez que cantei para ela, ficou ao meu lado no palco. Estava nervoso, muito, mas num certo momento de uma canção, ela chamou-me e segredou-me... ´essa voltinha é minha`. Acalmou-me! Se o Fado é mais feminino ou masculino? Acho que é sentimento e isso é comum a todos, é preciso é saber passá-lo para quem nos ouve, a arte reside aí!”.
Pedro Moutinho, o mais novo dos seus dois irmãos, está por ali. As guitarras começam a trinar, em diálogo sonoro. Nos azulejos centenários da sala, o reflexo das velas acesas transporta uma Lisboa sem tempo e sem fim, num brilho intenso que se ilustra em cada olhar de cada um dos que partilham aquele momento. Camané vive-os solitário, sobrevive e acontece ali, naquele lugar que tem o nome de Fado.
De olhos fechados. Muda a expressão, abandona a mesa, sem sair do lugar. Viaja e regressa, com os aplausos que pautam o final de cada história.
De irmão para irmão, Pedro pergunta-lhe... “Queres cantar?!”. “Não!”, responde Camané.
E fecha os olhos... Silêncio.... “Mas qual?”, pergunta, em tom de quem vai aceitar o desafio. Pedro começa o Fado Menor, num instante maior que o espaço de quem o pode sentir...

“És para meu desespero
como as nuvens que andam altas
todos os dias te espero
todos os dias me faltas”


...Dividem as estrofes, alcançam o momento, entre irmãos. Do silêncio, nascem aplausos, numa torrente que se transcende, possível apenas, porque aprisionada no açude do silêncio extremo. Pela noite dentro já, disse que não ia cantar, mas cantou. “O Fado é assim, acontece!”.

Pública,
Abril de 2008

abril 15, 2008

Pública: Um dia com... Diogo Infante



“Sou hoje mais genuíno”

Uma vida cheia de papéis, esvoaçantes, efémeros, “como tudo o que é Teatro”, mas cumpridos sem disfarces, com vontade de “fazer sempre melhor”. Diogo Infante deixa-se acompanhar pela primeira vez por uma equipa de reportagem, e abre as portas do seu mundo no dia em que o Teatro fez anos.


Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira



“Anda Samurai...Anda!”. E ele responde. Todas as manhãs são assim, no Clube Hípico de Janas, perto da Praia das Maçãs em Sintra, onde também vive. Ouve-se a voz, percebe-se quem é pelo perfil alto e cuidado. Não gosta de se revelar, prefere contar-se como indivíduo apenas, multifacetado para além dos palcos, das reuniões e das conferências de imprensa. Diogo Infante, o actor, “de papéis diversos”, que por mais que o afastem das tábuas de madeira e da linguagem cénica se considera exactamente isso. “Sou e sempre serei um Actor”.
Dez horas da manhã. Começa a aula de equitação que lhe preenche quase todos os dias da semana. “Comecei a vir para aqui há dois anos, quando finalmente consegui ter cavalos, que eram uma paixão minha desde miúdo”. A lição é pautada pela voz de Sandra Ferreira, monitora de equitação do Centro. “Tenha calma, vá, vá...”, conversa com Diogo, como com os outros alunos. “Isto hoje não correu muito bem. Ele é um cavalo ágil, quente, muito carinhoso. Mas ressente-se quando não estou sereno e hoje o dia vai ser longo”, antevê, com o sobrolho franzido. Apreensivo? “Não, é um dia bom!”.
Cumprem-se exactamente dois anos sobre a reabertura do Maria Matos, numa data em que também é celebrado o dia mundial do Teatro. E Diogo Infante, para além de ser desde sempre um actor, há alguns anos encenador e há outros tantos emprestar a voz a publicidade e o talento ao cinema, é também desde essa data director do Maria Matos. “Só de referir isso tudo já cansa!”, humoriza.
Para descontrair, transforma pequenas rotinas, como andar de carro, ouvir uma boa música, ou montar a cavalo, em singelos momentos de prazer.
“Sim, tenho de descomprimir, sem pensar muito em trabalho, dedicar-me um pouco a mim”, explica enquanto premeia o seu Samurai com cenouras tenras e palavras ternas, de cumplicidade. “Aprende-se muito com estes animais sabe?”.

Memórias vivas
Óbidos. Meio-dia. Da sua rotina habitual fazem habitualmente parte algumas homenagens. “Sim, mas esta é especial! É ao Carlos Avilez, que foi o meu primeiro encenador no Teatro Experimental de Cascais”, recorda.
Cumprimentam-se no salão do Auditório Municipal Casa da Música, relembram momentos com olhar cúmplice. Por ali estão também Eunice Munhoz, Ruy de Carvalho, São José Lapa, Simão Rubim e outros actores e pessoas do teatro. Está calor lá fora, pressente-se o Verão já. Também nas conversas, que ultrapassam sem querer a barreira da amizade, atravessam o tempo, tocam memórias sem idade.
A exposição evocativa dos 50 anos de carreira do encenador observa-se na passada, na vista que provoca “nostalgia”, nas fotografias a preto e branco e nos cartazes amarelecidos de estreias que já encerraram.

Dois anos depois...
Depois de um almoço apressado, entre amigos e velhos conhecidos, hora de regressar a Lisboa. O novo Maria Matos faz dois anos, de vida nova. “Porque aceitei abraçar este projecto...humm... Bem, pensei durante alguns dias na ideia, tentei perceber se poderia implementar conceitos que foram crescendo em mim ao longo da minha vivência artística. Depois aceitei e começou o trabalho”. Dois anos e alguns meses depois... “Estou feliz por ter aceite”.
As rotinas modificaram-se mas o actor... não deixou de o ser. “Acaba por ser um complemento da minha personalidade. Gosto de controlar os processos criativos, de participar na composição cénica... Mas foi um desafio tremendo que hoje considero, até pelas médias de espectadores que temos, pela dinâmica que o Teatro tem, estar alcançado”.
A poucos meses do final do contrato de três anos que o liga à EGEAC, que gere os equipamentos culturais da capital, a novidade. “Se decidisse hoje, e sinceramente, neste momento e depois de termos alcançado alguns objectivos, tenho agora outros e gostava de os atingir. Mas não posso ainda dizer se irei ou não continuar, apenas que gostava”.


“Um brinde”
Nas vidraças abertas para a luz de um dia que se vai esfumando já nas nuvens típicas dos finais de tarde primaveris, o burburinho das cadeiras a arrastarem-se, posicionando-se, diluído nos toques das flutes de champanhe a serem servidas por entre as palavras segredadas, enquanto a espera se denota. “Um brinde”, pede, à sala. “Saúde”.
Para além do aniversário do Maria Matos e da evocação do dia Mundial do Teatro, é também data da apresentação do novo programa da RTP, "À Procura de Sally", um musical que estreia em Setembro no Maria Matos, e cuja protagonista será encontrada num programa da televisão pública, e apresentado por Catarina Furtado.
A sala, cheia de amigos, conhecidos, jornalistas, fotógrafos. O habitual e... Catarina. “Foste tu próprio”, diz-lhe no final, em tom baixo. Diogo sorri. “Somos amigos sim, trato-a por mana, é uma pessoa muito importante para mim”.
Mais umas fotografias, em pose de sorriso cúmplice. “Já estamos habituados, toda a gente sabe a relação próxima que temos e é natural que demonstrem interesse”. O telefone toca. É da RTP. Diogo é um dos intervenientes do debate conduzido por Carlos Malato em directo da Trindade, sobre o Teatro em Portugal. “Há muito mais oferta hoje, não tem nada a ver com o que acontecia há uns anos. Até em termos de qualidade também penso que há uma melhoria, pela pluralidade da oferta e diversidade dos espectáculos que se podem ver hoje em Lisboa e por todo o país”.

“Estou no equilíbrio”
Diogo Infante aparenta ser um homem reservado, de sorriso pronto, mas sem gargalhada, de palavras escorreitas, livres, apenas no conteúdo que lhes quer dar. Homem de mil e uma personagens artísticas que encarna no trabalho e na vida, com serenidade. “Sim, são tudo facetas que procuro cumprir sem me violentar! Não sou cínico em relação a nada. Mantenho o mesmo entusiasmo em tudo o que faço, procuro aperfeiçoar-me, sem pensar muito no que as pessoas pensam ou dizem de mim. Valorizo a opinião dos outros, mas isso não influencia o meu caminho. Tenho quarenta anos, tenho um percurso que me permite aferir o que fiz bem e mal e de facto não me prendo ao que se diz, às invejas, que as há. Não penso nisso e acho que por isso, sou hoje, mais genuíno, estou no equilíbrio, não sinto necessidade de provar grande coisa a ninguém”.
Quanto a sonhos, alguns, que guarda para si, mas um especial, que confessa publicamente. “Realizar um filme”. E depois desse sonho realizado? “Bem, depois viria a edição, que é bem mais complicada!”, sorri. Sobre a melhor forma de se retratar na vida, resposta, simples, breve e então esperada. “Em película, claro”.
Ruy de Carvalho chega. Vai ler uma declaração, a propósito da evocação do Dia Mundial do Teatro. Diogo, acompanha-o ao palco. “Um grande actor”, deixa escapar.
Não pode ficar até ao fim da Ronda Nocturna, de Lars Nóren, na sessão especial gratuita, que encheu os mais de 450 lugares da sala. “É bom ver isto assim”, diz, com o olhar também esgotado de orgulho.

Olhar cansado, consciência tranquila
O trânsito atrapalha. “Temos de estar na Trindade às onze”. Faltam poucos minutos já, para a emissão em directo da RTP. O Bairro Alto permanece engarrafado ao estacionamento célere. Porta dos artistas, maquiagem, cumprimentos de ocasião, atrás do palco, enquanto a peça em exibição também transmitida em directo para todo o país não termina, minutos mais tarde transformado plateau. “Vamos embora então!”. Vai.
Uma hora depois, o regresso ao Maria Matos, “para beber uns copos!”, solta com humor breve. “Mas não posso... Porque ainda tenho quase uma hora de viagem até casa, paciência...”.
A noite pressente-se já, no olhar cansado, nas palavras que demoram a soltar-se dos pensamentos. “Dia longo hã... O que pensei quando acordei? Que seria um dia de balanços não finais”. Se foi, ou não, lembrar-se-á durante a viagem de regresso. “Aproveito esse tempo para pensar, para acalmar um pouco”, explica.
Quando chega, a primeira coisa que faz é ligar a televisão na... Eurosport! “Não estava à espera pois não?! Gosto muito de todos os tipos de desporto, até pela minha infância muito ligada à actividade física. Ténis, esgrima, tudo, menos futebol”, sorri.
Rodeado da sua equipa do Maria Matos, recorda um dia que “correu bem!”.
E amanhã? “Descansar e ganhar forças para continuar a ser quem sou e a fazer o que gosto de fazer, sempre com paixão!”. Até lá então.


Pública,
Abril de 2008

Pública: Um dia com... Fátima Lopes




"Alimento-me de Stress"


Levanta-se cedo, deita-se tarde e trabalha tanto, quanto sorri. Desenha todas as suas roupas, descobre modelos, veste futebolistas, lança carreiras. Conheça a mulher por detrás da maquilhagem e dos olhos contagiantes, a figura pública da moda, e a empresária que não é de modas.

Texto de Pedro Cativelos
Fotografia de Patrícia de Melo Moreira


“Normalmente levanto-me por volta das oito da manhã... Depende da fase em que esteja! Mas se estou com muito trabalho, antes de Paris ou do Portugal Fashion, aí quase nem durmo. Nas alturas mais calmas, como esta é que aproveito para descansar, baixar um pouco o ritmo”, releva, com um sorriso que se revela fácil e constante ao longo do dia.
É assim que encara normalmente os seus dias de mais de 12 horas de trabalho, de bem com a vida. “Acordo sempre bem disposta, sempre! Sorrio, é a primeira coisa que faço de manhã! Faz bem ao espírito”.
Depois, “e ao contrário do que possa parecer”, não demora muito tempo a arranjar-se, “depende do tempo que tenha”, confessa. “Consigo maquilhar-me em cinco minutos!”, assinala, com humor.
Na sua casa da Penha Longa, com Sintra à vista, perto dos greens que ladeiam a moradia, onde gosta de trabalhar com mais “serenidade”, vê ao longe os golfistas a caminharem sobre a relva verde que lhe preenche e acalma o olhar. “Não percebo é como gostam de jogar golfe! Mas a paisagem transmite serenidade e calma, até porque tenho escritório também em casa e é importante ter de vez em quando algum recolhimento, até para acalmar das viagens e da confusão constante que faz parte da minha rotina. Mas para lhe ser sincera, não conseguia viver se não fosse assim, gosto de pressão, alimento-me de stress, tenho de estar sempre a pensar em projectos e coisas diferentes e novas, a trabalhar, mesmo que seja só mentalmente”.

Pequeno almoço, pequenos detalhes
Depois de ter começado por criar a Versus, uma loja multi-marcas na Avenida de Roma, no início dos anos 90, concebeu a Face Models. Mudar-se-ia alguns anos depois para um edifício de quatro andares no Bairro Alto, e pouco depois fazia o primeiro grande desfile de moda com a sua assinatura, em Paris, a capital da moda, embora por lá já fosse figura assídua das passerelles há alguns anos. Começava então a ser reconhecida a estilista, mas também a despontar a empresária de sucesso.
O seu pequeno império inclui hoje várias agências de modelos para todos as necessidades do mercado, desde os mais esteticamente perfeitos aos mais absolutamente comuns, passando pelos famosos da televisão e pelos desportistas de selecção. “Temos caras e modelos de todas as idades, personalidades e gostos”, explica. Pelo caminho, abriu outras lojas em Portugal e em Paris, concebeu e desfilou um vestido de ouro e diamantes no valor de um milhão de euros e até lançou uma Barbie com uma réplica desse vestido, convidada pela Mattel.
Do Funchal, onde nasceu há 43 anos à Avenida de Roma, daí para as maiores passerelles do mundo, num trajecto que faz impor a pergunta. “Se já estou multimilionária? Quantos desses há em Portugal, dois, três? Não sou, mas estou bem!”.
Fátima passa muitos momentos do seu dia ao telefone. “É uma ferramenta de trabalho! Logo de manhã, falo com clientes e trato de negócios, faz parte”, explica com sorriso cúmplice, de quem sabe ser essa uma das principais armas para abraçar o sucesso, em dois mundos, a moda e os negócios, ambos ainda dominados por homens. “Sou uma pessoa normal sabe? Acho que a única coisa que me difere é a capacidade de trabalhar muito e com prazer no que faço, e de me avaliar constantemente, estar atenta às pequenas coisas”.
No primeiro piso da sua loja do Bairro Alto, o período é de arrumações, depois do regresso de Paris e do Portugal Fashion. Enquanto fala, desvia o olhar para um dos manequins que estão numa das montra que dão para a rua da Atalaia. “Mas os braços estão trocados!”, lança com uma gargalhada, mudando ela própria os membros dos expositores. “Costumo estar atenta ao detalhe, em tudo, porque no final de contas, é nas pequenas coisas que se fazem as grandes diferenças, não é?”.

Prazeres indispensáveis
Poucos minutos depois da uma e meia da tarde, o telefone toca, invariavelmente com um convite para almoçar. É Carla Ferreira, a modelista de há mais de uma década. “Vamos quase todos os dias almoçar com o pessoal todo da agência. Às sextas por exemplo somos ainda mais porque vem cá a Marisa (Cruz) e outras amigas e é muito giro. Aqui é para trabalhar, mas somos todos colegas e a primeira pessoa a quem exijo é a mim própria. Sabe que demoro até conseguir encontrar alguém que me compreenda inteiramente, no meu pensamento para as criações, mas quando isso acontece, é para a vida”.
Na “Tasca do Manel”, no “seu” Bairro Alto, pão e vinho sobre a mesa ficam sempre bem. “Ao contrário do que as pessoas pensam, como um pouco de tudo e nem tenho grandes cuidados com a alimentação”. Entretanto, e no meio do bulício habitual de um restaurante à hora de almoço, Fernando Almeida e o próprio Manel, homem de bigode farto e grande empatia, cumprimentam-nos. “Então e hoje, o que vai ser?”, pergunta Fernando. Pato assado, faz o menu. O vinho, tinto, é sugestão da casa. “Não tenho vícios, não fumo e não bebo, apenas um copo de vinho à refeição e normalmente a garrafa até dura várias refeições porque fica aqui guardada com o nosso nome”, assinala com um sorriso.
A conversa desenrola-se em tom natural. Falam dos vestidos de noiva que estão a ser preparados, de trabalho, dos portugueses de Paris, das memórias de alguns anos passados em comum. “Gosto do Bairro, é barulhento, está cheio de graffitis nas paredes, mas mesmo assim adoro isto e não penso sair daqui. Não passo sem tomar um café ali na dona Matilde, sinto-me bem ao sair do trabalho e ver esta gente toda multi-cultural. Se já pensei em ir viver para outro país? Como a Madeira não chegava, Portugal também não chega. É muito bonito, é fantástico, mas a verdade é que o mercado é pequeno e quando temos sonhos grandes também temos de pensar em grande, no mundo que está lá fora à nossa espera. Agora apenas para viajar e estar dentro do que se anda a passar, o que para mim, profissionalmente é fundamental. Para viver, gosto muito do meu Portugal”.


De volta...ao trabalho
Um dos traços que mais caracteriza Fátima Lopes,, é o visual, à... Fátima Lopes, pleno de tonalidades normalmente escuras, “depende da estação, mas sim, acho que o preto é a cor que mais gosto”, concebido inteiramente por si própria. “Quando saio com uma colecção levo-a toda para casa e vou usando no dia a dia. Toda a roupa que visto é minha, nunca entrei numa Zara, ou loja parecida, não gosto do conceito deles, porque no fundo acabam por ir buscar as referências dos criadores e colocam tudo nas suas colecções e até têm vários processos em tribunal por isso. No entanto, reconheço que ajudaram a democratizar a moda, tornaram-na mais acessível e próxima da maioria das pessoas. No meu caso e também para desmistificar essa ideia, desenho roupa para todos os gostos e carteiras, do pret-a-porter, a outras criações mais elaboradas”, explica, enquanto regressa à agência.
As paredes interiores do edifício estão forradas de fotografias de alguns dos nomes que ajudou a lançar. “Olha aqui a Marisa Cruz. Conheci-a ainda novinha, tornámo-nos amigas, com o tempo. Foi minha madrinha de casamento, sou madrinha da filha dela! Todas as sextas almoçamos juntas. E ali... a Fiona, que também me chegou cá com 16 anos. Gostei logo dela, chegou até a morar aqui!”.
A caminho das duas décadas num meio por vezes olhado de fora “com tanto desejo como com preconceito”, foi assim construindo carreiras, fazendo amigos e alguns... conhecidos. “Sim, gosto de dar a mão às pessoas quando acho que merecem e são trabalhadoras. Claro que não resulta com toda a gente, há algumas com quem me desiludi, mas faz parte não é?! Diz-se que tenho mau feitio, não percebo de onde vem isso! Não sou arrogante nem nunca o fui, não tenho é paciência para estrelas! Acho que ninguém tem muitos amigos, é preciso é que sejam bons e eu tenho essa sorte!” enfatiza. Quanto à relação com os outros estilistas, clarifica. “Não somos todos amigos, mas há lugar para todos!”.
O telefone toca. “Só um segundo”. Acontece várias vezes ao longo do dia. Negócios, pedidos de entrevistas, familiares, amigos de longa data e outros mais recentes. “Já está!”. Enquanto sobe a escada interior que dá acesso à sala da Face Models no primeiro andar, recorda um pouco do princípio de tudo para si. “No início, quando chegámos, a agência parecia grande demais, hoje já é pequena e até temos falta de espaço. Sabe que cheguei a morar lá em cima, no quarto andar? Mas aprendi que trabalhar e viver no mesmo sítio não dá. Foi uma fase complicada, tive dez anos sem férias, acho que foi um exagero!”. Talvez por isso se possa explicar o que conseguiu atingir em cerca de 15 anos. “Sim, trabalhar muito é essencial, mas acho que exagerei um pouco. Às vezes é preciso saber dosear o esforço, até para ser mais eficiente, e hoje continuo a trabalhar bastante, mas de outra forma”. No meio de toda a actividade que ocupa o dia a dia de uma estilista de sucesso, onde fica a vida afectiva? “O meu marido também trabalha muito, estamos os dois habituados a esta rotina e além disso nunca ouviu dizer que mais vale ser desejado que aborrecido?”, humoriza.
O telefone toca novamente. “Agora que tenho mais tempo é assim”, lança, com boa disposição. Enquanto fala pelo headset, vai modificando alguns traços da colecção de Verão no computador. “Isto agora é muito mais fácil. Antigamente se nos enganássemos era uma carga de trabalhos!”. Em pouco tempo modifica um vestido, para exemplificar o funcionamento do programa. “Estão a ver? É assim que desenho as roupas, os sapatos, as loiças, tudo!”.
No final de mais um dia cheio, repete o trajecto para casa. Quando chega, é um pouco igual a todos os outros. “Mas é isso mesmo, acho que sou uma pessoa normal! Vejo mails, descanso na sala, aproveito para ver o Dr. House, o CSI... o Fashion TV? Nem tanto! Mas tenho de ter sempre ali um bocadinho antes de ir dormir, para descomprimir e conseguir adormecer”, conta.
O dia segue longo, e a noite começa a pôr-se, para lá das vidraças foscas que se vêm do outro lado da rua. “Bem, ainda tenho de ir ali aprovar um vestido de noiva, e depois vou para casa descansar, que amanhã... começa tudo outra vez”. Despede-se, com um sorriso.


Pública,
Abril de 2008

Notícias Sábado: Maria Porto



Sexo, Paixão e Dinheiro

"Repetiria tudo!"

Um ano depois, a NS volta a entrevistar a verdadeira Call Girl portuguesa, em que até Soraia Chaves se inspirou para fazer o seu último filme.

Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


Em 2007, o livro A Tua Amiga era lançado pela editora Palavra. O exemplo de Bruna Surfistinha, uma acompanhante de luxo brasileira que também escreveu um livro picante sobre as suas experiências sexuais com estrondoso sucesso comercial servia de prefixo para um êxito esperado, mas inédito em Portugal. Andreia Soares veste-se do pseudónimo de vinil Maria Porto para trabalhar e para escrever quando regressa a casa ao final da noite. Conhece os homens mesmo sem os olhar, pressente-os, nas respirações ofegantes.
“Entre nós, somos putas, é esse o nome que vem no dicionário para a nossa profissão”, diz, enquanto se afasta do estereótipo, encaminhando-o para um aspecto mais mítico do mais velho negócio da humanidade, e por cujos lençóis passaram ao longo dos tempos, reis, imperadores, escritores, poetas e pintores e tantos homens e mulheres comuns cujo tempo lhes apagou a memória. Porque na natureza humana, “a moral também é uma questão de tempo”, escreve Garcia Marquez numa das suas obras, os prazeres da carne não têm julgamento, sem ser o interior. Talvez por isso lhe chamem Lolita, por conhecer o mundo dos sentimentos sem ter aprendido ainda a amar. Talvez.
A poucos meses de lançar o seu segundo livro, Maria Porto, revela os sonhos próprios dos vinte anos cujos traços lhe conservam o rosto de menina, destapa as marcas da experiência humana que deixam toldada, cada palavra que exala, assume-se, sem complexos, como é, e como “gosta” de ser.




Depois do primeiro livro, vem aí o segundo...
Já há algum tempo que venho escrevendo dois manuscritos para editar. Um é mais pessoal, mais literário, que A Tua Amiga, que era uma coisa mais espaçada no tempo e feita com outro espírito, não tão essencialmente literário, sobre uma mulher de quarenta anos que passou por muito na vida, e que funciona como uma visão de futuro de mim própria.
Depois há um outro, uma ficção que incide sobre o mundo das acompanhantes, mais sexual, mais carnal, digamos assim a que dei o nome de Escorting Dummies, mas que não sei se será o título que vai para as bancas, até porque normalmente é a editora que o dá. Eu vivo apenas e escrevo o que sinto!


A Tua Amiga foi um sucesso, em número de vendas e no que se falou dele. Seguirá na mesma linha literária?
O primeiro era um conjunto de textos que ia escrevendo no meu blog, coisas separadas, desta vez, e como gosto de ler e escrever, optei pelo romance.


Que tipo de literatura prefere?
Gosto da literatura erótica, ando há algum tempo para ler o Henry Miller, a Anais, e na Lolita do Nabokov já dei uma espreitadela. O mais recente acho que foi um livro chamado Pacto de Silêncio da autoria de Manuela Pontes, sobre o aborto, mas tantos outros, sei lá, os clássicos como o Pessoa de quem gosto muito.

Foi recentemente convidada para um documentário, é verdade?
Há alguns dias fui contactada por um cineasta espanhol a quem a psicóloga que participou comigo num programa da TVI me recomendou. É um convite para entrar numa longa-metragem. Foi muito porreiro, enviou-me até um curriculum resumido e o resumo do filme em questão. Lie achei muito bom, até vou fazer uma das cenas com o meu namorado porque ele quer explorar precisamente a nossa relação enquadrada no tipo de vida que tenho.





Histórias de adultos

Há um ano dizia não pensar em fazer filmes para adultos, mas recentemente entrou em algumas produções do género. Como mudou de ideias?
Aprendi com o tempo a nunca dizer nunca. Na altura pensava de facto que nunca o iria fazer, mas acabei por lá ir parar! Fui fazendo masoquismo, mas a longo prazo é complicado e comecei a magoar-me a sério. Deixam marcas físicas e não podia trabalhar como acompanhante assim. Nunca mais fiz masoquismo.

Como surge então nesta área da pornografia?
Através dos filmes Sado Maso que fazia, um produtor italiano, conheceu o meu trabalho e viu o meu site, e a seguir ao lançamento do livro convidou-me para fazer filmes para adultos em Itália.

Quanto é que se ganha por um filme desses?
Os cashés variam muito, mas podemos ganhar à volta de 700, 800 euros por dia.

Existe algum tipo de conhecimento ou empatia entre os actores, antes e depois das filmagens?
Não damos muita confiança uns aos outros. São vários, todos estrangeiros, brasileiras, alemães, italianas, a maioria strippers. Comunicamos todos em inglês, mas pouco. E nem há guião nem nada, explicam-nos a história e fazemos.

Não a assustam as doenças sexualmente transmissíveis?
Apenas no sexo oral não se usa preservativo. Em tudo o resto sim!

Prefere filmar com homens ou mulheres?
As mulheres, não porque goste mais ou menos, mas porque dão menos trabalho. Os homens são mais complicados... Alguns têm de parar algumas vezes por causa da pressão das câmaras, outros por estarem tanto tempo sem ejacular não conseguem fazer o cumshot, que é normalmente o fim da cena.

Nunca teve um orgasmo numa dessas cenas?
É difícil isso acontecer porque estão não sei quantas pessoas em estúdio a olhar para nós!
Na prática não é tão engraçado como na teoria!

Então porque decidiu fazê-los?
Não os fiz apenas pelo dinheiro, não tenho prazer, mas é uma aventura que não me vejo a fazer por muito tempo. E é melhor do que trabalhar na Zara!




Sexo sem máscara

Depois do casamento fracassado, voltou a ser acompanhante.
Gosto de entrar e sair quando quero das coisas, nisto e em tudo!

Trabalha por conta própria?
Nesta vida não há patrões, há chulos e eu não aceito isso. Já que tenho de andar aqui, faço-o por minha conta e risco. Era o que faltava andar a dar dinheiro a alguém com o meu corpo!

E os clientes...?
Há de tudo!

Mas quem está de fora, pode pensar que a maioria dos clientes são feios, porcos e maus... São?
As pessoas abrem-se muito mais debaixo dos lençóis, tiram a máscara. E nesse momento, a pessoa mais asquerosa possível pode revelar-se... diferente e um ser humano interessante. Aprendi assim a conhecer as pessoas, a entender muitos comportamentos sociais que de outra maneira não atingiria.


Tudo isto é mais do que sexo, é isso?

O dinheiro é sempre uma razão, porque senão não o fazia. Mas depois levo uma boa vida, não me falta nada, de vez em quando viajo quando conheço melhor os clientes, passamos o fim de semana fora e assim...

Tem uma boa casa, um bom carro, roupas, sexo e dinheiro. Para uma pessoa da tua idade, tens uma vida que invejaria a muitas raparigas...
Para se ter a vida que eu tenho, tenho de fazer coisas a que a maioria das miúdas não faria.

Reconhece que existe muita gente que não é feliz com a vida sexual que leva?
Como acompanhante, as pessoas vêm ter comigo para satisfazer fantasias menos normais. Desde vestir roupa de mulher, inversão de papéis. Na submissão por exemplo, costumo obrigá-los a fazerem-me felacio no tacão da bota, depende do que a pessoa queira realizar.

Quanto cobra por um fetiche?
São 300 euros.

E por uma relação normal?
Cobro 200 euros à hora. Sou paga por tempo.

E não tem de comprar material para as fantasias mais ousadas?
Normalmente é o cliente que traz o que quer utilizar.

Qual o fetiche mais estranho que já lhe pediram para realizar?
Há um rapazito que costuma vir cá que gosta que lhe aperte o pescoço até se sentir a sufocar... Não me agrada muito porque não gosto de magoar ninguém, mas para mim é normal porque já vi tanta coisa e já estou habituada sabe?

Mas então porque alinha nestas coisas?
Porque acho giro! Mas na minha vida pessoal não utilizo nada disso.


Amor, paixão e... sexo

Já foi uma mulher casada, mas durou apenas alguns dias. Porquê?
Era um fotógrafo que fazia as fotos para o meu site. Conhecemo-nos, saímos durante uns dias e casámos. Mas depressa descobrimos que não tínhamos nada a ver um com o outro.

Mas não foi para a cerimónia como aquelas senhoras que se vestem de branco aos quarenta anos...
Foi no civil e não fui assim, claro! Até tinha sido bom porque me tinha dado mais tempo para pensar duas vezes!

Ele sabia da sua opção de vida, mas aceitou-a depois do casamento?
Sabia, porque era ele que fazia as fotos para o meu book. Mas cheguei a deixar de ser acompanhante só que era muita adaptação junta. E Lisboa para mim não dá, não o conhecia bem, mudar de vida assim é complicado.

Mas a ideia era ir atrás de um sonho de uma vida “normal”?
Não consigo arranjar uma explicação lógica. No entanto ficámos amigos, falamos por email de vez em quando...

Era mais velho?
Tinha trinta, eu tinha 18,

E este namorado agora, chama-lhe “o casado...”.
Pode-se dizer que é meu namorado e é casado sim. É daquelas relações proibidas, mas que toda a gente sabe e acho que é isso que nos mantém juntos. Mas temos um relacionamento normal, até a nível sexual.

Tem a noção que daqui a vinte anos, poderia ser a Maria a mulher...

Exactamente, eu sei disso.

Ou tem a noção de que nunca vai ser a mulher?
Acho que nunca vou conseguir ser sexualmente fiel a uma só pessoa.

Porquê?
O sexo, depois de se conhecer... Só o facto de saber que até morrer só iria estar com a mesma pessoa não funcionava comigo.

Sabe com quantas pessoas já teve relações?
Quinhentas, seiscentas pessoas... Muitos são os mesmos, não posso ter uma noção correcta.

Algum que a tenha marcado?
Por exemplo no livro falo de um deles, um senhor muito idoso, que vou ver todas as semanas, que não tem ninguém neste mundo, não fala com ninguém próximo há anos e permitiu-se gastar o dinheiro dele comigo. Hoje em dia já não cobro, vou a casa dele, falamos, pergunto-lhe como está, nem fazemos nada, apalpa-me apenas!
Depois há outros, que vêm ter comigo em alturas complicadas da vida, quando morre alguém próximo, quando são deixados pela mulher...

As clientes mulheres, são diferentes da clientela masculina?
Sim, as mulheres vêm por outras razões, a maioria, até com os maridos, porque eles têm a fantasia de as ver alguém do mesmo sexo. Se fosse ao contrário, a maioria dos homens não gostariam disso e é aqui que acho que Portugal ainda é um país pequeno de mentalidade, homofóbico, cheio de hipocrisias que se revelam nos olhares, nas palavras, em pequenos sinais preocupantes.

E clientes famosos?
Alguns... futebolistas, políticos, celebridades. Mas não vou dizer os nomes, claro.

O que leva por exemplo, esse tipo de pessoas que têm fama, dinheiro e podem ter o que quiserem, até gratuitamente a vir procurar sexo pago?
Muitos deles, deixaram de vir depois do livro, mas continuo a falar com alguns. Para mim não são mais importantes que os outros. Alguns são normalíssimos, mas outros acham que o grau de interesse que devemos ter por eles deve ser especial, e queixam-se da imprensa por exemplo sem lhes perguntar nada. Há aqueles que fazem disto desporto, coleccionam uma loira, uma ruiva, uma gorda, uma magra...
Agora o porquê... Penso que o que os leva a virem, mesmo podendo ter as mulheres que quiserem acho que é o facto, como nós costumamos dizer, de não nos pagarem para fazer sexo, mas para irmos embora depois! Não tens de a levar a jantar, nem de conversar...

Nunca lhe aconteceu algo do género do que se retrata no filme Pretty Woman, com a Júlia Roberts e o Richard Gere?
(Gargalhada) Não!

E gostava de o conhecer, ou o seu ideal de homem é diferente?
Acho que não... O meu homem ideal?! Tem de ser qualquer coisa menos loiro, não muito alto porque sou pequenina. A sério a sério, aquele que para mim é o homem mais atraente e sexy da televisão portuguesa é o Vítor Norte!

Por causa da voz, do talento...
Vi-o na série Capitão Roby e fiquei apaixonada, por ele e pela personagem.
Gosto de homens mais velhos, mais maduros, que têm conversas mais elaboradas, têm mais charme, até sexualmente, tratam muito melhor uma mulher do que os miúdos da minha idade. E depois também não são muito difíceis de arranjar porque eles gostam de mulheres mais novas!

Consegue olhar para um homem e ver se é bom na cama?
Há certas características que aprendemos a perceber, Se for idoso é complicado, se for mais novo, com 22, 23 anos, têm aquela coisa do polvo, são braços e agarrões por todo o lado. Mas outras características, são mais complicadas de perceber assim só de olhar!

E a eterna questão do ser ou não ser... importante o tamanho, que me diz disso?
É tão importante como o tamanho dos seios da mulher, está tudo na cabeça das pessoas e consegue-se ter prazer de qualquer forma desde que se tenho algum tipo de empatia com a pessoa.

Tem algum fetiche especial?
Nada para além do normal.

Por exemplo?
Sei lá, fardas e assim....

Porque é que todas as mulheres gostam de fardas?
(Gargalhada) Nem vou ao Mcdonalds nem nada porque senão é um problema! Se calhar é porque antigamente representava um alto estatuto, talvez por isso!

Mas a farda representa autoridade, se me diz que é activa...
Então e dominar uma autoridade não é uma coisa desafiante?!

Tem muitos homens apaixonados por si?
Há alguns que são é obcecados!

E não tem medo?
Alguns já me perseguiram, mas tenho os meus métodos de protecção e nunca tive grandes problemas! E acho até normal, porque se cria sempre uma ligação e por vezes não compreendem que estamos ali porque é o nosso trabalho.

Costuma beijar os clientes, na boca?
Diz-se que não se deve beijar na boca, nem olhar nos olhos, porque quando o fazes estás a dar muito a uma pessoa.

E outras regras, não escritas da prostituição?
Temos um código que não é dito, mas subentendido, em que depois de sair o cliente não existe. Mesmo que nos encontremos, não nos devemos reconhecer, cumprimentar ou falar. É claro que por vezes acontece, por exemplo já encontrei uma vez um cliente meu quando fui comprar móveis e ele nem cumprir a regra e cumprimentou-me com a maior das naturalidades.

Mas e a Maria, segue essas regras?
Eu é mais reverse cowgirl! (sorriso)


Então?

É aquela posição de mulher em cima, mas virada ao contrário. É bom em tudo. É visualmente mais excitante, logo o homem vem-se mais rápido.

Mas quer é despachar o cliente?
O tempo serve acima de tudo, quando o cliente me desagrada. Mas quand é um amigo que já conheço e com quem estou à vontade, não há problema.


Tem amigos nesta área?

Há alguns com quem nunca sequer tive nada. Há por eemplo um rapaz que vinha cá, sentava-se na poltrona e falava nos problemas que tinha com os pais, com a mulher e eu ficava ali a dar-lhe conselhos. Diz-me logo para não tirar a roupa...

E paga na mesma?
Paga, claro!

E com outras prostitutas, tem relação com elas?
Sim, damo-nos todas, e tenho algumas amigas também.

Mas entre vocês, chamam-se de prostitutas?
Entre nós, somos putas, é esse o nome que vem no dicionário para a nossa profissão, que até já cá anda há algum tempo, ou não?!


Já chegou a ter uma relação afectiva também com uma outra acompanhante.

Sim, mas e apesar de gostar de mulheres prefiro homens. Acabamos por chocar em muita coisa sabe?




Ares de Lolita

Tem uma expressão bastante jovem ainda... É uma miúda que não sabe bem o que anda a fazer, ou uma mulher que tomou uma opção de vida consciente?
Sou ambas. Gosto de desenhos animados, mas também gosto daquilo que os adultos fazem e são.

Não tem medo de perder esse ar jovem, de Lolita, a que se vêm várias referências por parte dos seus clientes?
Tenho cuidado com isso, até fisicamente., corro de manhã, faço natação, tenho cuidado com a alimentação. Alguns procuram-me por isso sim, por causa desse ar jovem que tenho e até me perguntam se sou maior de idade. Vejo muitas acompanhantes que com a minha idade faziam aquilo que faço e vejo como estão decadentes agora. Mas não tenho vícios, nem álcool, nem drogas, e tenho esse exemplo para não seguir por esses caminhos.

Mas falava num aspecto mais interior...
Para alguém que veio de uma terra pequenina, interior, fechada, acho que cresci depressa demais. Fui mãe aos 15 anos, isso ajudou-me, mas não é essa a razão pela qual ando aqui. Quero garantir-lhe um futuro promissor, dar-lhe coisas que os meus pais, não me puderam dar. Não são pobres, mas também não são aquele tipo de pessoas que me podiam por numa universidade privada.


Mas o que gostaria de ser?

Gostaria de fazer qualquer coisa relacionada com escrever, sinto-me bem a fazê-lo.

Como começou tudo isto para si?

Aos 15 anos estava a trabalhar numa fábrica de têxteis na minha terra. Era uma merda. Um dia fui comprar tabaco a uma tasca e o dono da tasca convidou-me a ir para um barracão ali perto. E eu, ainda hoje não sei porquê, respondi instintivamente que só ia se ele me pagasse! Demorou pouco tempo, e pensei que já que era sim, decidi ir para uma cidade maior e ganhar dinheiro a sério. Cheguei ao Porto, comprei o jornal, trabalhei como dançarina num clube de strip-tease, pensava que era só para dançar com uns senhores! Mas rapidamente me apercebi que não era só os cinquenta por cento do valor dos copos, também havia sexo à mistura. Vi logo, que afinal não valia a pena e já que era para fazer sexo, ganhava eu dinheiro. Até porque não queria acabar como muitas das minhas colegas, decadentes... Então juntei dinheiro e aluguei casa, pus anúncios e comecei a trabalhar por conta própria.

Noto-lhe uma certa raiva, quando fala disto...
Se é para ser acompanhante não era para ser uma qualquer, estou farta de fazer parte de estatísticas.

Porquê?
Não somos um conjunto de dados e eu não gosto que me vejam pelo meu nome, por uma mãe adolescente, essas coisas todas...

Já amou alguém?

Tirando a minha filha?! Tive sim, um amor adolescente que é o pai dela, mas era muito ingénuo. Amor a sério estou a tentar descobrir o que é. É difícil entender.

Mas o seu namorado sabe disso?
Sou séria com ele e acho que o amo!

Diz-lhe que “acha” que o ama?
Digo, claro, digo tudo, até porque não estou habituada a coabitar para além de mim própria, sou independente, sempre o quis ser e consegui e até por isso é difícil deixar alguém entrar no meu mundo!

Onde se vê daqui a dez anos?
Imagino-me no Porto, e gostava de ter a minha filha comigo, porque desde que vim para cá ela está com os meus pais. Mas estou com ela todos os fins de semana. No entanto sei que não vou estar casada, não terei mais filhos, terei um negócio próprio, se calhar a tal loja de roupa para pessoas com medidas abaixo das standard... Patrões é que nunca, ou alguém a mandar em mim.

Os seus pais, aceitaram mal tudo isto, calculo...
Ao início sim, principalmente a minha mãe! Mas com o tempo melhorou muito a nossa relação. Ainda há alguns dias, e quando o livro foi lançado em Itália, o mostrei à minha mãe e não houve problema.

Como ficou a edição italiana?
Até é engraçado porque as expressões, ditas em italiano, ficam mais giras... Por exemplo uma a que acho muita piada... “amichetti del pompino“, ou os amigos do broche! (gargalhada) E a capa italiana também está melhor que nem gosto muito da da edição portuguesa, que não tem muito a ver comigo.

Não tem medo de um dia, e de um modo geral olhar para as pessoas e, pelo facto de as conhecer a um nível tão profundo e intimo com tudo o que de bom e mau essa experiência pode ter, perder a fé na humanidade?
Sabe que aprendi com o tempo que até as pessoas mais odiosas guardam em si algo de bom. Tenho esse por princípio de vida, e transporto-o comigo na forma como vivo diariamente na vida pessoal e no trabalho

O que mudaria em si, se voltasse atrás?
Gostava de ser mais alta, mas isso não posso comandar! (sorriso) Talvez à excepção do casamento, acho que repetiria tudo sabe?

Porquê?
Porque gosto da pessoa que sou.



Dentro do Armário

Políticos e prostitutas

Ainda recentemente, um senador do estado de Nova Iorque teve de se demitir por se ter descoberto o seu envolvimento com uma prostituta de luxo. Faz sentido isto?
Acho que somos hipócritas. Se um politico deve demitir-se porque requisitou o serviço de uma acompanhante, porque não devem também fazê-lo os professores, médicos, advogados que o fazem igualmente? No entanto, acredito que se sinta pressionado à demissão pela opinião pública. Acho que a palavra hipocrisia se ajusta melhor que preconceito.

Existe a ideia de que há uma grande proximidade entra a política e a prostituição. É verdade isto?
Acho que se deve à "garantia" de confidencialidade. A etiqueta no escorting não nos permite revelar a identidade do cliente, e isso pode dar-lhes um senso de segurança (que no caso do politico dos EUA foi traído, coisa que uma acompanhante sensata não faria). Se um politico mantiver relações sexuais com uma mulher qualquer, corre sérios riscos de ser difamado ou chantageado. Com uma profissional, não existe essa preocupação.

Já esteve com algum político?
Um dos personagens mais caricatos do meu livro é o "Autarca". Sempre o visitei na própria residência dele e é um bom cliente.
O "Autarca" do livro, como está lá, tem um fetish por dogging (gosta que lhe ponham uma trela e lhe façam 'adestramento') mas no geral acho que os politícos são pessoas sexualmente saudáveis como nós, acredito que este caso é uma excepção porque é o único que tem uma tara específica.

Notícias Sábado
Capa
Março de 2008

Notícias Sábado: Academia de Polícia




A NS mostra-lhe o treino, a preparação e o dia a dia da “Polícia do Futuro”.


Chegam de todo o país ainda jovens, irreverentes, civis. Têm sonhos, querem lutar pela justiça, servir protecção da vida, proporcionar segurança pública. No Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, onde vivem durante cinco anos de internato, primeiros momentos do resto de toda uma vida dedicada ao bem comum, procuram uma carreira estável, de onde sairão com emprego garantido e um vencimento bastante superior à média portuguesa.

Texto
Pedro Cativelos
Fotografia
Patrícia de Melo Moreira


Começa cedo o dia na Escola Superior de Polícia de Lisboa. Sete e vinte. Pequeno-almoço. A messe preenche-se num movimento contínuo de rapazes e raparigas ainda com demasiado sono para serem conversadores naturais. Os olhares dissipam-se no vazio típico de quem despertou cedo demais. Muitos chegaram há poucos meses atrás mas já se vão adaptando à nova casa com a ajuda dos mais velhos que os acompanham ao longo dos cinco anos do curso. Até saírem para as ruas, chegará a sua vez de acolher quem chega de novo. Por agora, na confusão do ruído dos talheres e das chávenas de café com leite, encharcam o físico de tenra idade no lanche matutino que lhes vai agitar os corpos e despertar para a primeira formatura da manhã.
Dez minutos antes das oito. Camisa azul clara, calça escura, engomada, cinto alinhado, sapatos pretos de graxa bem polida, pele lavada, sem pelos faciais, nem brincos ou especiais adereços capilares. “Aqui acreditamos que a Polícia tem de demonstrar autoridade, respeito e igualmente ser inspiradora dessa consideração por parte de todos os cidadãos que se dirijam a uma esquadra”, explica o comissário Luís Guerra, agora pertencente ao departamento de Relações Institucionais da Academia, depois de uma comissão de alguns anos a comandar a secção da PSP em Elvas.
A revista segue os preceitos do Exército. Normalmente é efectuada por um dos cadetes de quarto ano, que assim começa a ganhar responsabilidade, “a saber lidar com homens, geri-los nos seus mais vários aspectos”. É uma rapariga quem comanda as operações, uma das poucas por aqui. Sónia Henriques, que, aos 28 anos, decidiu abandonar a Lousã, os amigos e a família e vir “aprender mais no Instituto. Para poder ter um futuro melhor e concretizar o sonho de ser oficial de Polícia. Se ser rapariga é complicado? É igual, somos todos iguais aqui!”.





O que é ser polícia?
Instalada no antigo edifício do Convento do Calvário, em Alcântara, Lisboa, o ISCPSI foi fundado em 1979 com o nome de Escola Superior de Polícia. O objectivo era claro. Formar Oficiais de Polícia civil, a fim de se irem substituindo gradualmente aos Oficiais do Exército que até então desempenhavam as funções de chefia na PSP. Em 1994, o Curso de Formação de Oficiais passou a dar aos seus titulares o grau universitário de Licenciatura em ciências Policiais. Mais tarde, em 1999, na sequência da lei de reorganização da PSP, a Escola passou a denominar-se Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, actual designação.
O super-intendente Machado Silva ainda é desse tempo. “Um dos últimos já!”, solta, olhando nostálgico desde o primeiro andar, a formatura das quatro turmas de cadetes, alinhados sobre o brasão da PSP desenhado na calçada portuguesa do átrio principal. “As coisas eram diferentes, éramos treinados com vocação militar, as condições não eram estas. Aqui tentamos aproveitar o melhor desse tempo, introduzindo novas filosofias”. Quando se começa a desvanecer do imaginário comum, a imagem tradicional do polícia de bigode, camisa esfrangalhada e hálito a cerveja, aqui prepara-se uma nova geração de agentes da autoridade. “Queremos acima de tudo formar pessoas, cidadãos exemplares, homens e mulheres de carácter, cultos, educados, cientificamente preparados, moralmente impolutos. Se reparar, todas essas características são essenciais para qualquer ser humano mas também para a polícia do futuro que, sem estas qualidades, posso dizer de acordo coma minha experiência, nunca chegará a ter uma carreira”.
Na realidade, também esta é uma nova fase da vida de Machado Silva. Nascido no Porto, calcorreou o país, sempre na defesa da Lei, pelo menos até ser nomeado a vir dirigir a Escola, há cerca de ano e meio. Para além da legislação, cabia-lhe agora o papel de implementar os bons costumes, essenciais à sua concretização plena. “É um desafio diferente daquilo a que estava habituado mas acredito neste projecto e na filosofia que aqui temos implantada. Temos de os preparar para uma vida que não será fácil, em que se vão deparar com situações de conflito, com o mundo, com eles próprios, com a morte também. Tentamos dar-lhes as ferramentas para saberem lidar com isso, quando chegar o momento de fazer o que tem de ser feito”, explica.
Por enquanto, vão chegando as aulas para lhes ocupar o tempo e os pensamentos. Toca a campainha que anuncia o dia escolar que se vai iniciar. São agora oito horas de uma manhã ainda fria. Esperam-nos oito horas, repartidas entre a manhã e a tarde, de disciplinas várias. Direito, psicologia, passando por ciência e organização policial, informática, armamento, defesa pessoal ou matemática. E até, Línguas (português, inglês, francês) e Literatura Portuguesa. “Hoje em dia um polícia tem de ser um homem culto, capaz de compreender um mundo em constante evolução. Para isso, e porque grande parte do nosso trabalho tem a ver com comunicação entre colegas e entre cidadãos e forças da autoridade é importante que percebam e saibam expressar-se de forma apropriada à situação que enfrentam”, explica o director educativo, Valente Dias.
Por aqui existem horários para quase tudo, e têm de ser cumpridos. Esse é aliás um dos pontos fundamentais do vigente código de disciplina, caderno de regras que permitirão moldar o carácter destas jovens mentes em função de um objectivo concreto. Querem o destino, sabem quando o alcançarão e isso faz toda a diferença.
“Cultura de Exigência”
A admissão no ISCPSI é bastante exigente. Em 2007 candidataram-se mais de mil pessoas. Poucas mais de três dezenas foram aceites após as provas físicas e intelectuais. Chegam de todo o país. O desemprego, a interioridade, a falta de expectativas de carreira são alguns dos motivos que acabam por os conduzir até aqui. “Promovemos iniciativas de publicitação da Escola por todo o território, em feiras de emprego e principalmente no ensino secundário, onde está o nosso público alvo”, explica o director do Instituto que conta nesta altura com cerca de 130 alunos, a grande maioria, rapazes. No entanto, o número de raparigas tem sido crescente ao longo dos mais de vinte anos do curso. “Notam-se cada vez mais, o que é importante para a própria Polícia”, afirma Machado da Silva.
Nos quatro anos de duração da licenciatura preparar-se-ão para a vida real, para serem oficiais de polícia. O último, o quinto, será passado numa esquadra de polícia de verdade.
É diferente o ambiente escolar por aqui. Através da janela de uma sala de aulas torna-se constatável que a professora não grita, os alunos levantam-se quando ela chega à sala, não falam entre si, têm as mesas arrumadas, não atiram papéis apara o tecto, ouvem música ou afrontam os professores. “Sabe que todo o ambiente aqui é ligeiramente diferente de uma universidade aberta por exemplo. E porquê?! Porque eles vêm para cá com um objectivo, que sabem qual é. Se não o quisessem não o teriam feito. Enquanto que grande parte dos alunos que ingressam no Ensino Superior por exemplo, não sabem o que querem ainda da vida profissional, ou o que os espera. Sabe que a falta de rumo é muitas vezes culpada de uma série de distracções e perdas de tempo que nestas idades são complicadas de gerir”, explica Rocha Machado, professor de psicologia que por estas salas de aula lecciona desde o dia da inauguração instituição, há mais de trinta anos.
Corpo de alunos
O actual edifício da academia de Polícia, resultante da reconstrução após o terramoto de 1755, foi sucessivamente ocupado por diversos estabelecimentos escolares, até que, em 1966, foi atribuído à Escola Prática de Polícia, sendo restaurado e submetido a obras de beneficiação. Em 1995 foram inauguradas as novas instalações, anexas ao antigo complexo, ficando a partir desta data apetrechada com modernas instalações de apoio ao ensino. Um pavilhão desportivo, piscina, ginásio, o maior dojo do país (para a prática de artes marciais), passando por uma carreira de tiro, mas também uma biblioteca e auditório para conferências, mas que também serve de cinema e até para ver futebol aos fins de semana. “Aqui têm tudo o que precisam para serem bons agentes, física e mentalmente. O resto passa-se dentro de cada um deles”, explica Pedro Valente Pinho, director do Corpo de Alunos, uma espécie de organização interna de acompanhamento dos estudantes. “Acreditamos que é importante que tenham o aconselhamento e o apoio dos mais velhos. E porquê? Estamos a falar de pessoas ainda muito jovens, que abandonam o lar, a família, os amigos, por isso tentamos instituir aqui um espírito de família onde nós, os mais experientes e que já passaram por isso, tentamos suprir essa lacuna, que também os ajuda a crescer”.
Hora de almoço. Após a última formatura do dia, a messe volta a encher-se. O ambiente é mais ruidoso que de manhã. Peixe e batatas cozidas servem a ementa de uma refeição pouco apelativa para a maioria dos jovens desta idade. “Não se podem habituar a serem esquisitos com a comida”, graceja o comissário Guerra. Por via das dúvidas, anda sempre um oficial por perto. “Para manter a disciplina e ver se está tudo em ordem”, realça o mesmo graduado.
Por esta altura, nem todos estão a aproveitar as duas horas de pausa a meio do dia para retemperar os estômagos. “Normalmente, eles reúnem-se entre si para fazer algumas actividades durante este período, futsal, ginásio, vóleibol... Até porque tudo isso conta para a nota final do curso porque queremos aqui pessoas que tenham iniciativa própria, que não se cinjam ao programa curricular e queiram, por si próprias evoluir, física e mentalmente”, complementa o comissário que acompanha e incentiva diariamente todas estas acções, “logo desde a chegada” dos futuros polícias à escola.
“Victoria discentium gloria docentium! A vitória dos alunos é a glória dos professores”, complementa Machado Silva com um brilho no olhar, preso na expressão latina que constitui parte do brasão da escola, enquanto presencia os vários grupos de jovens, empenhados nas mais diversificadas tarefas. Tudo em redor é movimento dinâmico, composto de juventude em crescimento. “São o futuro”, complementa.




Visitas “olímpicas”
Tocam as campainhas. Em poucos segundos, as salas de aula voltam a encher-se. Nos largos corredores do recinto, agora mais desanuviados, passeiam-se alguns oficiais da polícia chinesa, acompanhados pela direcção da escola. Li´Wen, chefe da polícia de Tianjin, uma das cidades que estarão abrangidas no projecto olímpico Pequim 2008 permanece atento e observador. É aliás por isso que aqui está, considerando “essencial este tipo de visitas, principalmente para absorvermos o que de melhor se faz noutros países, e isso acontece aqui, com um modelo de formação que verificamos como interessante e do qual retiraremos ensinamentos”, assinala.
O “reitor” da Escola já está habituado, às visitas e aos elogios. “No âmbito da formação permanente, desenvolvemos actividades promovendo conferências de formação para alunos e forças policiais de todo o mundo, recorrendo a personalidades de méritos reconhecidos em diversas matérias, recebendo-os ou mesmo indo até lá, partilhando informação e conhecimento algo essencial no mundo em que vivemos, com as ameaças que existem à segurança das pessoas”, releva Machado Silva.

Dia cheio
A tarde avança. Num dos breves intervalos concedidos, as máquinas de café expresso ficam rapidamente cerceadas por ajuntamentos de jovens fardados querendo maximizar os dez minutos de interrupção lectiva. Artur Loureiro está por ali de conversa com os amigos. Os anos que já passou na Academia trouxeram-lhe um ar mais sério, mais... policial, diz quem o conhece, “e o espelho que não mente”, humoriza. “Já não sou nenhuma criança, sabe?! Tenho trinta e um anos”, começa por dizer. Tem a fama de ser o mais antigo, mas também o melhor aluno da escola. Sorri de embaraço. “Não sei se é assim... ou pelo menos se será no final do curso, porque aqui tudo conta para a nota final, os exames, a atitude, se calhar até esta entrevista”, assinala. Daqui a um ano estará numa esquadra a lidar com a realidade das ruas, mas o medo das “coisas más”, não lhe tira a vontade de cumprir um destino que é seu “desde pequenino. Sou um daqueles que entrou na escola por já fazer parte da PSP. No entanto e se olhar para estes quatro anos que aqui passei, sinto que mudei muito, cresci, sou uma pessoa diferente! E se algum dia, por acaso tiver de acontecer algo de mau, pois então que seja a fazer o que gosto de fazer, no cumprimento do meu trabalho a ajudar o cidadão”.
A seu lado, um cadete de primeiro ano. Tímido, de olhar fixo para baixo, em sinal de respeito. Embaraçado pela idade. Dezanove anos. Chegou há pouco mais de seis meses. “Sempre foi o que quis fazer, sabe?! E porquê? Porque quero ajudar as pessoas!”, declara com um tom tão marcial, quanto ainda marcado pela verdura do tempo de vida. A Tânia António está na mesma situação. Tem-se adaptado, apesar das saudades da família e das nódoas negras. “Tem sido uma experiência positiva, mas temos sido bem tratados e devemos agradecer por nos terem acolhido. Claro que é duro, mas tem de ser para ficarmos preparados para sermos bons polícias”, declara, quase em tom de encorajamento a si própria. “Vou ser polícia um dia, é o meu sonho”.
Nos pisos superiores, as camaratas não são luxuosas, longe disso. Alguns livros nas cabeceiras, fotografias da família, da namorada, do animal de estimação. Um toque pessoal numa pequena habitação partilhada com mais três ou quatro colegas do mesmo sexo. No entanto os aposentos vão melhorando à medida que se vão ultrapassando os anos lectivos. “Para incentivar o aproveitamento e a melhoria dos conhecimentos, todos os anos mudam para um quarto melhor”, explica o comissário Guerra. Não existem televisões nem grandes distracções. “A ideia aqui é que não se formem grupos, e para isso a sua vida tem de ser feita na academia e não no interior de cada quarto. Aliás, todos os anos mudamos os colegas de divisão, precisamente para que todos se dêem bem”, releva.

Último toque
São cinco horas da tarde. O pátio enche-se de novo com o bulício típico de quase centena e meia de jovens atarefados. Apesar das aulas só regressarem amanhã, o dia ainda não acabou, longe disso. O comissário Pinho sorri de orgulho, perante a movimentação simultaneamente desordenada em direcção ao ginásio, à biblioteca, aos cacifos, para ir correr, estudar ou andar de bicicleta. “A partir desta hora eles é que decidem o que fazer. Normalmente juntam-se em grupos e definem as actividades a praticar. Podem organizar um congresso, uma corrida de angariação de fundos, ou um torneio de um qualquer desporto. O importante é que não são obrigados a isso, mas todos o fazem porque sabem que contribui para o seu crescimento, para o seu bem, o que, numa escola tão especial como esta, será o bem de todos nós não é verdade?”.
Quando regressarem, terão o jantar à espera. A noite já escureceu lá fora. O cansaço é um adjectivo comum, que se nota ainda, já sem se notar tanto como nos primeiros dias. “Estamos habituados! E é assim que tem de ser não é?! Temos de aproveitar, dar o máximo todos os dias”, vai murmurando um aluno, entre as colheres de sopa com miolo de pão que lhe fazem lembrar a casa onde cresceu.
Daí a pouco, juntar-se-ão a ver um pouco de televisão. Conversam sobre o dia que passou, de coisas triviais, da vida, da juventude, das aulas, de namorados, amigas especiais... apesar de essas apenas poderem estar lá fora por não serem permitidos aqui relacionamentos que ultrapassem o companheirismo profissional. As regras da casa não ditam recolher obrigatório mas “aconselham” a um reerguer madrugador, esse, escrupulosamente cumprido, de segunda a sexta, para depois recomeçar tudo, uma e outra vez.

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Raízes

A PSP tem origens bastante profundas no tempo, remontando aos antigos Quadrilheiros da Idade Média, os primeiros polícias de Portugal. Depois organizaram-se na Intendência-Geral da Polícia da Corte e do Reino, criada em 1780. Posteriormente as suas raízes ganharam contornos mais oficiais com a criação da Polícia Civil, em 1867. No entanto, o actual nome de Polícia de Segurança Pública seria apenas adoptado na década de trinta do século passado, aquando da reorganização da então denominada Polícia Cívica.


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Admissão

Para entrar na Escola é necessário ser-se português, ter menos de 21 anos, 1,65 metros de altura para os homens e 1,60 para as mulheres e, entre outros, ter aprovação no secundário e nota de candidatura igual ou superior a 10 valores. Depois, há um outro conjunto de alunos, provenientes da própria PSP, que até aos 28 anos podem concorrer ao curso, apesar de terem de ultrapassar os mesmos obstáculos de todos os outros. Há ainda um outro contingente, proveniente dos PALOPS, cujos países de origem os enviam para adquirir conhecimentos e depois reforçar as próprias forças de segurança.


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Os números
- Desde 1986 ano de abertura do curso, do ISCPSI já saíram cerca de 800 oficiais de Polícia.
-Com o tratado de Bolonha, ao fim dos cinco anos do curso os alunos terão uma licenciatura e uma pós-graduação. Depois, serão destacados para comandar esquadras de Polícia de todo o país.
-O corpo docente é constituído na sua maioria por professores da sociedade civil.
-Ao longo dos cinco anos de curso, os alunos não pagam qualquer propina. Têm dormida e alimentação assegurada e recebem uma bolsa de estudo de cerca de 200 euros que vai aumentando com o decorrer da licenciatura.
-Cerca de 25 alunos provenientes de países de língua oficial portuguesa estão neste momento a frequentar o curso de Polícia.


Notícias Sábado,
Capa,
Março de 2008